“Construir um ambiente de trabalho diverso e inclusivo é uma meta que cada vez mais vem se impondo às organizações, sendo refletida em indicadores de valor para colaboradores, investidores, consumidores e outros stakeholders. E é importante discutir a trajetória de mulheres no mercado de trabalho, os desafios enfrentados diante desigualdades que ainda as atingem e as estratégias possíveis para a equidade de gênero e inclusão”. Assim Marcelo Ramos, antropólogo e gerente de Desenvolvimento Estratégico Sustentável do SENAI CETIQT, deu o start ao segundo videocast da série Cultura Inclusiva, promovida pelo SENAI CETIQT, lançando luz sobre “Equidade de Gênero – Desafios e Estratégias para Mulheres no Trabalho“. As convidadas para o debate foram Mariana Barbosa, especialista em Comunicação e Cultura do WWF Brasil, e Vanessa Sarmento, diretora de Gente e Gestão da Dress To. Elas são exemplos de mulheres e profissionais potentes que venceram o desafio de uma sociedade que, ainda, muitas vezes insiste em colocar como coadjuvantes aquelas que, como elas, também são protagonistas. A cultura inclusiva cria um ambiente de trabalho onde os funcionários se sentem valorizados, com o genuíno sentimento de pertencimento, independentemente de suas origens, orientações sexuais, raças e gêneros e é preciso também cada vez mais ações concretas nas empresas de acessos igualitários de oportunidades de crescimento.
Mariana, especialista em Comunicação e Cultura do WWF Brasil, revisitou os caminhos que precisou trilhar para se destacar no mercado profissional: “Não foi fácil. Não digo isso para me vitimizar, mas para mostrar que nosso caminho é mais árduo, especialmente em uma sociedade machista e patriarcal. Foi uma jornada com um alto custo emocional e de bem-estar. Nas organizações, temos falado sobre bem-estar e felicidade, mas no percurso das mulheres, esse aspecto é fragilizado. O mercado de trabalho não considera as necessidades específicas das mulheres. E aqui entra a questão da interseccionalidade, já que sou uma mulher negra. Quando se quer alçar voos mais altos, surgem dificuldades. Comigo não foi diferente. Precisei identificar quais eram minhas possibilidades no mercado de trabalho. Eu gosto de desafios, então, sempre que tinha um desafio eu ia “namorar” esse desafio. “Casei” com alguns deles algumas vezes. Mas também porque eu percebi que se eu não me movimentasse, não fizesse nenhum movimento autônomo, nenhuma política pública ia fazer isso por mim e eu não ia ter essa chance de forma tão fácil como eu via outros pares e outras pares tendo no mercado de trabalho. Tenho uma trajetória bem-sucedida, mas difícil. Gostaria que tivesse sido apenas bem-sucedida, fácil e leve. Infelizmente, não foi assim”.
Diretora de Gente e Gestão da Dress To, Vanessa destaca que sua carreira sempre foi na moda e que, nesse segmento, onde há muitas mulheres, “as lideranças femininas são naturais. Não se sente tanta resistência ou impacto. Mas, ao atingir posições mais estratégicas, você começa a perceber certas vivências que levam à reflexão. Isso se tornou mais evidente para mim quando minha carreira se encontrou com a maternidade”, observa ela, ressaltando que o quadro na Dress To é atípico, com 80% de mulheres, inclusive nas lideranças.
Quanto mais estratégica a posição e mais você avança na carreira, mais lida com questões estruturais. A maioria delas não é consciente; são reflexos de como a sociedade foi construída. É importante não assumir uma postura de vitimismo, mas sim trabalhar estrategicamente para abrir caminho para as que vêm depois, que é o maior legado que podemos deixar. Sou mãe de adolescentes e tenho uma intenção muito grande nesse sentido -Vanessa Sarmento
Segundo Vanessa Sarmento, “na Dress To, nós entendemos que, somente quando nossos colaboradores realmente vivenciam o bem-estar, podemos comunicar esse mesmo bem-estar aos clientes, refletindo o estilo de vida e a visão de mundo da empresa. Temos algumas flexibilidades. Embora nosso modelo seja majoritariamente presencial, oferecemos um dia de home office para que as mulheres possam se organizar em relação aos filhos. Às vezes, uma colaboradora precisa trazer a criança para o trabalho, o que não é incomum e não é visto como estranho. Embora não seja uma prática regular, é possível. Se for necessário levar o filho a um tratamento ou ao médico, existe na Dress To uma cultura de compreensão e empatia em relação a essas situações”.
É importante lembrar que a flexibilidade está relacionada a iniciativas para promover a equidade, permitindo que as mulheres tenham as mesmas oportunidades que os homens para se desenvolverem e não ficarem preocupadas como elas vão administrar um dia de 24 horas para estar no trabalho oito, cuidar dos filhos, ter que levar ao médico quando precisa e todas essas estratégias que são fundamentais. “O que estrutura as práticas é uma cultura. Quando discutimos diversidade e inclusão, abordamos como essas questões de desigualdades de gênero são estruturais”, sugere Marcelo Ramos.
De acordo com Mariana Barbosa, a flexibilidade precisa ser intencional:
As organizações devem querer ser flexíveis, em vez de apenas esperar que as coisas aconteçam por conta própria: “É necessário que as organizações estabeleçam políticas e ações intencionais para garantir a equidade. Embora seja ótimo quando as mudanças ocorrem de maneira mais simples e orgânica, isso geralmente não é suficiente. Na verdade, eu diria que nunca é suficiente. Precisamos definir claramente as regras do jogo, especialmente quando se trata de diversidade. Ao falar sobre diversidade, equidade e a importância das mulheres no mercado de trabalho, é crucial, na comunicação e na cultura, adotar essa intencionalidade – Mariana Barbosa
Marcelo Ramos destaca que muito se comentou sobre mulheres que falam “será que eu vou conseguir dar conta daquele trabalho tendo que conciliar com a maternidade e com as outras questões da minha vida? Será que eu vou conseguir alcançar aquele lugar devido à minha trajetória, à minha origem, às dificuldades que eu tive?”. E ele pergunta para as duas profissionais: “Quais foram os principais desafios de cada uma de vocês como mulher para chegarem no lugar onde estão hoje?”
Mariana Barbosa analisa dois problemas enfrentados pelas mulheres negras no ambiente de trabalho: a autocobrança exacerbada e a desconfiança muito profunda de seu valor, a chamada síndrome da impostora. “Eu sei que a síndrome da impostora aparece em mulheres negras e não negras, mas especialmente nas mulheres negras esse é um ponto que impede que avance mais rapidamente na carreira. Em muitos momentos, e isso tem a ver com a falta de representatividade, eu não consigo nem lembrar qual foi a empresa em que eu estive que tivesse alguém no board que fosse uma mulher ou um homem negro. Nunca. Às vezes, até inconscientemente eu pensava: ‘Acho que eu não tenho espaço nessa organização, não tem ninguém que se pareça comigo, nem fisicamente, nem na origem. Todo mundo já fez intercâmbio, todo mundo fala três línguas, todo mundo estudou num colégio incrível. E eu comecei a estudar francês anteontem. Será que tem espaço para mim?'”
E ela acrescenta: “Aí você fala: eu preciso de um lugar de segurança, de onde eu não vou ser mandada embora porque eu não falo francês”, ainda que ninguém tenha dito nada disso para você. Mas a sua impressão quando olha em volta é de ninguém aqui se parece comigo, vou em busca de um lugar onde se pareçam mais comigo. Essa questão da impostora bateu forte e a autocobrança também, porque a gente não quer errar”.
Revela ainda que trabalhou durante a pandemia em uma empresa e já tinha um filho de três anos. “E ele começou a aparecer nas lives, porque a gente começou com aquela rotina de live todo dia. As pessoas perguntavam: você tem filho?. Era algo que, para mim, era muito importante deixar escondido para as pessoas não duvidarem de que eu era capaz de fazer horas extras intermináveis, de ser a primeira a chegar, de fazer qualquer coisa que me pedissem: “Tem que ir para o Japão durante uma semana”: “Eu vou”. Só as pessoas com quem eu tinha um relacionamento muito próximo sabiam que eu tinha filho. Que loucura! Eu estava escondendo o meu filho por medo de ser julgada e de não ser chamada para algumas oportunidades ou acharem que eu me atrasei por causa dele”. Mariana diz que houve uma evolução pós-pandemia: “Não tem mais tempo de a gente ficar com algumas questões que são bastante simples. As mulheres têm filhos e precisam lidar com seus filhos no dia a dia apesar do trabalho ou com o trabalho. Antes, para mim bateu forte a questão da autocobrança, de não errar, de não precisar de nenhuma política que me protegesse porque eu não precisava ser protegida, e a questão da síndrome da impostora: será que esse espaço tem alguma cadeira em que eu consiga sentar, mesmo com as minhas características, mesmo com a minha história?”
Vanessa Sarmento diz que sentiu mais os desafios quando precisou conciliar maternidade. “Tive filhos que não foram planejados exatamente, me vi mãe, e deixei de aceitar alguns convites na primeira empresa em que eu trabalhei. Um convite para ir para São Paulo, que seria muito importante para a minha carreira. Mas como levar as crianças, como me afastar? É uma ideia que, para o homem, é fácil: eu vou trabalhar em São Paulo e volto na sexta à noite. Para a gente as coisas não são assim”. No entanto, ela avalia que percebe uma melhora muito grande na relação hoje da mulher conciliar trabalho e maternidade. “Eu tenho muito a contribuir, principalmente pelo que a gente consegue fazer lá na Dress To”, afirma, acrescentando que no nosso país ainda exista uma mentalidade improdutiva: a de que a questão de a gestão humanizada ser contrária ao drive do resultado. Não é. Inclusive elas só existem juntas. O drive do resultado só existe quando o ser humano está no centro. É o ser humano que traz o resultado para as organizações”.
E quando a gente pensa em mulheres, principalmente as líderes que são mães, que são mais empáticas, que possibilitam a diversidade. A diversidade é rica, eu não consigo nem explicar o quanto a diversidade traz de riqueza, de pluralidade de olhares – Vanessa Sarmento
Neste ponto a especialista em Comunicação e Cultura do WWFBrasil chama atenção para mulheres que estão privilegiando a maternidade, e não a carreira: “E não tem nenhum problema com isso. Uma mãe que fala que não vai assumir uma diretoria porque tem dois filhos pequenos e quer estar com eles nessa fase está tudo bem”. No entanto, Mariana Barbosa em algum momento se “sentiu culpada” de ser mãe e dar primazia à vida profissional. “Durante muito tempo eu fiquei muito culpada, me perguntando que tipo de mãe sou eu. Depois eu comecei a pensar que eu sou o tipo de mãe que vai dizer para o filho que tudo bem quando ele quiser privilegiar sua carreira, tudo bem quando ele olhar para a carreira dele e falar ‘Esse é o momento em que eu preciso colocar a minha carreira na frente'”.
Para Vanessa Sarmento, essa postura de colocar a carreira em primeiro lugar pode ser uma forma de criar um adulto mais consciente: “Quando você fala sobre o que o seu filho vai sentir por você não ter ido na festinha, acho que além de ele ter o exemplo da mãe que luta, que trabalha, que está construindo uma carreira, tem também o quanto você está contribuindo para um homem apoiar a sua esposa ou o seu parceiro se eles decidirem ter filhos e tiverem que fazer escolhas parecidas. Além de a gente tentar abrir um caminho para as nossas filhas, tem também que participar da criação de homens mais colaborativos e sensíveis.”
Afinal, a sensibilidade não tem gênero. Frases como “para essa posição eu preferiria um homem” estão se tornando cada vez mais raras. No passado, havia uma ideia de que a sensibilidade era algo negativo e que uma pessoa sensível não poderia gerenciar negócios com eficácia. “Há uma grande confusão. As pessoas misturam força com agressividade e sensibilidade com fragilidade. Apesar de estarmos discutindo temas importantes como a felicidade no trabalho, e a Geração Z, que não vê sentido em ser infeliz no ambiente onde passa oito ou nove horas por dia, ainda há uma dificuldade em compreender os líderes que têm uma escuta aberta e ativa, com o colaborador no centro. Parece que é necessário ‘dar murro na mesa’ para que as coisas funcionem, mas cada vez menos é assim”, aponta Vanessa Sarmento.
Precisamos de uma liderança muito atuante, que esteja próxima e atenta. Não devemos confundir liderança humanizada com liderança permissiva; não é sobre isso que estamos falando. Tudo que é inegociável precisa estar muito claro: os prazos precisam ser respeitados, nosso padrão de entrega também, e precisamos guiar as pessoas com base nisso. Mas lembremos que são pessoas, não máquinas. Por isso, digo aos meus líderes: você compra um iPhone, paga caro por ele e segue todas as instruções, evitando calor excessivo e contato com água. Mas, quando se trata de pessoas, espera-se levá-las ao limite. Faz sentido? Você respeita a máquina, mas não a pessoa. Que sentido isso faz para a produtividade e para a saúde mental? – Vanessa Sarmento
Atualmente, o bem-estar no trabalho e a questão da diversidade – o ESG – são fatores competitivos importantes. As marcas, além de vender produtos, comunicam uma visão de mundo. As pessoas tendem a apoiar mais empresas cujos valores estão alinhados com os seus. O cancelamento de marcas que se posicionam de maneira socialmente negativa tornou-se comum. As empresas estão mais conscientes da necessidade de se conectar genuinamente com seu público. Isso deve fazer sentido para ser eficaz. Além de ser um fator competitivo, também influencia a longevidade da marca. Marcas que não consideram esses aspectos em algum grau estão comprometendo sua existência a longo prazo.
O lugar onde trabalho hoje é uma organização da sociedade civil, portanto, a natureza do nosso negócio é diferente. Estamos aqui para proteger a vida e criar um mundo melhor para as pessoas e a natureza. Só conseguimos fazer isso se as pessoas estiverem bem consigo mesmas. Já entendemos que pessoas mais felizes, tranquilas e seguras geram um impacto melhor. É nisso que precisamos focar. Compreendemos que é necessário estar íntegro e inteiro para produzir algo que se conecte com você e com sua vivência. Acho que não há nenhuma organização no Brasil que esteja em um ponto ideal em relação a esses temas. Todas estão aprendendo e cometendo erros. Tentam uma coisa, voltam atrás, tentam por outro caminho – Mariana Barbosa
E o gerente de Desenvolvimento Estratégico do SENAI CETIQT, Marcelo Ramos faz uma importante indagação: “E qual atenção deve ser dada às mulheres para garantir a equidade, assegurando que tenham as mesmas oportunidades e possam alcançar os resultados profissionais que desejam?”. A especialista em Comunicação e Cultura do WWFBrasil responde: “Serei bastante óbvia: oportunidade, não tem outro caminho. Para as mulheres terem oportunidades a gente precisa dar oportunidades. Será que não precisamos de políticas? Será que não precisamos de metas, de termos mais mulheres na liderança para chegarmos num ponto de equilíbrio?. Em algumas companhias a resposta é não. Na Dress não precisa, pois há muitas mulheres líderes, mas em outros lugares talvez isso seja necessário, talvez esse equilíbrio seja alcançado com ações intencionais. Oportunidades geram oportunidades. Isso serve para mães, mulheres negras, mulheres trans. Estamos falando de várias camadas. É importante pensar de que mulheres estamos falando. De quantas mulheres estamos falando”.
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