Carnavalesco da Beija-Flor, João Vítor Araujo é um dos poucos pretos a vencer o carnaval do Rio


João Vítor Araújo escreve seu nome na História como o único carnavalesco preto retinto a vencer o Carnaval do Rio em trabalho solo, rompendo barreiras em um espaço ainda restrito. Após anos de luta em escolas com poucos recursos e rebaixamentos injustos, sua trajetória ganha um novo capítulo com a conquista pela Beija-Flor de Nilópolis, em um desfile que celebrou a própria escola e a despedida de Neguinho da Beija-Flor. O carnaval, apesar de enaltecer a cultura negra, ainda marginaliza seus protagonistas nos postos criativos. No Grupo Especial, apenas três carnavalescos negros atuam, enquanto na Série Ouro são quatro. A presença feminina também é mínima, com apenas duas mulheres assinando desfiles entre 28 escolas. Estruturas de poder mantêm-se excludentes, priorizando perfis acadêmicos, em sua maioria brancos, sob o pretexto da excelência técnica. Joãosinho Trinta, crítico da elitização do carnaval, questionava esse modelo, ecoando preocupações que seguem atuais. Em meio a desafios e desigualdades, João Vítor simboliza resistência e mudança, pavimentando novos caminhos no maior espetáculo da Terra

*por Vítor Antunes

É João Vítor Araújo o nome dele! Carnavalesco da Campeã Beija-Flor, campeã do Grupo Especial do carnaval do Rio de Janeiro. Finalmente reconhecido, seu talento brilhou após anos de luta em escolas com poucos recursos, enfrentando desafios e injustiças. Um dos momentos mais duros de sua trajetória foi o rebaixamento da Acadêmicos do Cubango em 2022, quando apresentou um enredo sobre Chica Xavier (1932-2020). Além disso, sofreu uma dispensa desrespeitosa da São Clemente no Dia da Consciência Negra, em meio à pandemia de 2020. Naquele ano, o presidente da escola anunciou um enredo de surpresa em uma live no Instagram, apenas para, pouco tempo depois, demitir o carnavalesco. Com o adiamento do Carnaval devido à pandemia, a escola mudou de tema e decidiu homenagear Paulo Gustavo (1975-2021), mas acabou rebaixada à Série Ouro, onde permanece até hoje.

Para além do simbolismo de sua vitória, há um marco histórico: João Vítor Araújo é o único preto retinto a ser campeão do Carnaval carioca assinando um trabalho solo, considerando-se a partir de 1960, quando a profissão de carnavalesco foi consolidada por Fernando Pamplona (1926-2013). Antes dele, Paulino Espírito Santo, também homem preto retinto, venceu em 1984 com a Portela, ao lado de Edmundo Braga, este, branco. Além deles, destacam-se os não-brancos Joãosinho Trinta (1933-2011), campeão nove vezes, e Fernando Pinto (1945-1987), que venceu duas. Importante lembrar que essa lista não inclui os carnavalescos da Beija-Flor, que compuseram sua comissão de 1998 a 2019, um grupo que variava constantemente, dificultando uma contabilização exata.

Desfile da Beija-Flor de 2025 foi o de despedida de Neguinho (Foto: Alex Ferro/RioTur)

Gentil e humilde na essência, este é o momento de colheita para João Vítor, que, merecidamente, levou a Beija-Flor de Nilópolis ao título em um ano profundamente autorreferente. A escola homenageou sua própria história e celebrou a despedida do intérprete  Neguinho da Beija-Flor, após 50 anos de dedicação.

A presença negra no Carnaval sempre foi marcante, mas, geralmente, relegada a funções como o sambar, tocar na bateria ou ser destaque. Raros são aqueles que ocupam postos de comando no fazer artístico e conceitual. Atualmente, no Grupo Especial, apenas João Vítor Araújo assina um desfile sozinho. Na Portela, há uma dupla preta: André Rodrigues e Antônio Gonzaga. Ou seja, entre as 12 escolas da elite do samba, há apenas três carnavalescos pretos.

Alegoria da Beija-Flor. Escola homenageou Laíla, seu baluarte (Foto: Alex ferro/RioTur)

Na Série Ouro, antiga Série A, a realidade não é muito diferente. Apenas três carnavalescos pretos assinam trabalhos solo: Guilherme Estevão (União do Parque Acari), Mauro Leite (São Clemente) e Marcus Paulo (Estácio de Sá). Guilherme Diniz, preto, divide a função com Rodrigo Marques, branco. No total, em 16 escolas, apenas quatro carnavalescos são negros.

A questão racial não é a única desigualdade evidente no Carnaval. Em ambas as divisões principais, há apenas uma mulher carnavalesca, Annik Salmon, do Arranco. A outra seria Márcia Lage (1960-2025), que, após falecer, teve seu trabalho assinado postumamente ao lado de Renato Lage, na Mocidade. Isso significa que, entre 28 escolas, apenas duas mulheres ocupam o posto de carnavalesca. Se olharmos para as vozes femininas no carro de som, o cenário é ainda mais alarmante: não há nenhuma mulher puxando samba-enredo nas duas principais divisões do Carnaval carioca.

O machismo e o racismo são os principais motivos que explicam a ausência de negros e mulheres em cargos de comando no Carnaval. Também existe uma predileção por profissionais com formação acadêmica, que, majoritariamente, são brancos. Essa visão de “qualidade” e “precisão” teria origem na influência de Fernando Pamplona, um acadêmico branco, no universo do samba. Até mesmo Joãosinho Trinta (1933-2011), nordestino e não-branco, foi apadrinhado por Pamplona, embora nunca tenha tido formação formal em artes. Trinta sequer desenhava seus figurinos, tarefa que cabia a Viriato Ferreira (1930-1992).

Até mesmo Candeia (1935-1978) criticava essa tendência. Para ele, Pamplona e Trinta foram responsáveis pelo embranquecimento estético do Carnaval e pela desconexão preta nos desfiles. No livro Árvore que Esqueceu a Raiz, Candeia denunciava que as escolas passaram a atender “ao que os brancos entendem por bom gosto”.

Lorena Raíssa é a Rainha de Bateria da Beija-Flor (Foto: Alex Ferrro/RioTur)

Diante desse cenário, a pergunta que fica é: além do racismo, que outras barreiras os negros precisam enfrentar para serem reconhecidos na intelligentsia carnavalesca? O Carnaval continua sendo uma festa onde muitos têm seus papéis predeterminados: as mulheres no chocalho da bateria, nos postos de beleza ou na função de musas e rainhas; e os negros no sambar, no cantar e em atividades menos intelectualizadas.

Felizmente, temos João Vítor Araújo para, esperamos, quebrar esse estigma e abrindo caminhos para um futuro mais diverso e igualitário no maior espetáculo da Terra.