Promover diversidade e inclusão tornou-se uma prioridade na agenda das empresas no Brasil. Essas iniciativas não apenas geram igualdade e justiça social, como viabilizam resultados concretos em termos de desempenho, inovação e fortalecimento da reputação das marcas. Segundo uma pesquisa realizada em 2023 pela Cegos, empresa especializada em treinamento e desenvolvimento, com exclusividade para a CNN Brasil, 75% das organizações nacionais identificaram o racismo como a principal forma de discriminação nos ambientes de trabalho. O quinto videocast da série Cultura Inclusiva, iniciativa do SENAI CETIQT, joga luz sobre o tema “Desigualdade Social e Racial no Trabalho”. Neste episódio, Marcelo Ramos, antropólogo e gerente de Desenvolvimento Estratégico e Sustentável do SENAI CETIQT contou com a presença de Andréa Lopes, pós-doutora em Sociologia, cientista social, professora e vice-coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da UniRio, e Claudia Abreu Campos, jornalista, socióloga e fundadora da Usina da Comunicação.
De acordo com o Ministério da Igualdade Racial, 56% da população brasileira é negra, porém as desigualdades dentro das organizações ainda são comuns. Construir um ambiente diverso e inclusivo é uma meta que vem se impondo às organizações. Essa é uma demanda antiga dos movimentos sociais, do Legislativo, de organismos internacionais e, atualmente, até do mercado. Ela tem se refletido nos valores das organizações perante diferentes públicos, incluindo sua capacidade de atrair e reter talentos”, analisa Marcelo Ramos, acrescentando: “A gente encontra muito no campo da diversidade, da equidade e da inclusão no mundo corporativo uma prática de, num determinado momento do ano, falar sobre porque todo mundo está falando. Mas, internamente nas organizações, as práticas estão distantes disso”.
Marcelo ressalta ainda que uma questão fundamental é que os ambientes de trabalho são mais homogêneos que heterogêneos — e por isso falamos de diversidade nesses lugares. “É importante falar de diversidade e de políticas de inclusão. Eu queria que vocês falassem como percebem o mundo do trabalho uma para a mulher negra. Como vocês veem esse universo? É claro que existem especificidades de um campo para outro mas, no geral, como se apresenta o mundo do trabalho para a mulher negra hoje? Quais são as barreiras, as dificuldades enfrentadas?”
A jornalista Claudia Campos destaca que as organizações refletem a sociedade em que estão inseridas, trazendo para o ambiente corporativo as desigualdades do meio social: “Percebo uma disparidade evidente de oportunidades. A mulher negra, e há dados que comprovam isso, enfrenta uma trajetória de imenso sacrifício – não que a mulher branca não encare desafios – e precisa superar enormes barreiras para alcançar determinados cargos. Muitas vezes, nem chega a esses postos, esbarrando no chamado ‘teto de vidro’. Ela avança com muito esforço, mas chega a um ponto em que se depara com um racismo velado, subliminar, que a impede de progredir. Na minha visão, a mulher negra carrega um verdadeiro ‘saco de cimento’, tanto na vida profissional quanto na pessoal. É uma luta exaustiva em todos os sentidos”.
A mulher negra ocupa, historicamente, a base das relações sociais, o que reflete diretamente sua posição no mercado de trabalho. Ela está frequentemente em funções mais subalternas. “De um lado, estão aquelas que desempenham trabalhos precarizados, por exemplo. Atualmente, usamos o termo ‘trabalho invisível’ para descrever atividades que passam despercebidas, como ao chegar a uma empresa limpa sem se dar conta de quem fez a faxina antes”, explica a socióloga Andréa Lopes. “Por outro lado, há aquelas que conseguem acessar o mercado de forma diferente, mas ainda enfrentam inúmeros desafios, incluindo barreiras subjetivas que afetam sua autoestima. Um exemplo é a limitação de usar o cabelo da forma que desejam. Muitos fatores definem a realidade da mulher negra no campo das organizações, entre eles a dificuldade de ascender profissionalmente e a limitação no exercício pleno de sua identidade”.
“Na nossa experiência aqui, de trabalho com empresas, inúmeras vezes ouvimos depoimentos de mulheres negras sobre como apontam para os cabelos delas. Reparam nas tranças que usam como algo que não está dentro de um padrão que o ambiente considera arrumado, que, em geral, é o cabelo liso, é o cabelo sem tranças, é o cabelo não natural da mulher negra. Elas sofrem, volta e meia, com considerações de pessoas que dizem: “Você fica tão mais bonita quando está com o cabelo mais ‘profissional’…”. Chega-se a chamar o cabelo de “mais profissional”. É como esse racismo se manifesta no dia a dia nas nossas relações e que muita gente sem consciência política não consegue perceber que, naquela fala, existe um racismo violento que impede as pessoas de se expressarem como são no ambiente de trabalho”, analisa Marcelo Ramos.
Claudia Campos compartilhou um case que ilustra claramente as dificuldades de exercer plenamente sua identidade racial. A jornalista relata que, no início dos anos 2000, quando já atuava com sua agência, uma cliente sugeriu, em tom de conselho amigável, que ela fizesse uma escova antes de uma reunião. O motivo? Um cliente importante estaria presente e gostava que todos estivessem “bem arrumados”. Na época, Claudia, apesar de se sentir desconfortável, ela não tinha a mesma consciência que tem hoje e decidiu fazer a escova. “Aquilo não combinava comigo, não era meu estilo. Mas fiz porque queria conquistar aquele espaço”, recorda.
Diante do relato da fundadora da Usina da Comunicação, o gerente de Desenvolvimento Estratégico do SENAI CETIQT levanta a questão sobre quais estratégias podem ser adotadas para combater essa realidade e se existem ferramentas capazes de romper com esse tipo de discriminação no ambiente de trabalho. A jornalista responde: “O ideal seria contar com a conscientização das altas lideranças, como CEOs, diretores e presidentes, para promover uma mudança na cultura organizacional. No entanto, sabemos que essas posições são, majoritariamente, ocupadas por homens brancos e heteros. Salvo exceções, muitos não têm consciência de seus privilégios nem um pensamento crítico sobre questões de raça ou racismo. Em geral, a iniciativa não parte deles, mas sim de grupos de colaboradores engajados e atentos ao tema, que começam a pressionar e fazer movimentos dentro da instituição. Também é válido, pois é necessário provocar mudanças de alguma forma, mas acredito que o processo seria mais eficaz se viesse de cima para baixo”.
Acho muito interessante quando as empresas conseguem ter a maturidade de entender que, antes de começar a fazer ações de sensibilização, palestras, workshops, promovem um diagnóstico, fazem um censo de colaboradores a partir de uma consultoria. Para mim, o primeiro passo é sermos honestos e entender quem somos nós para, depois, começar a criar comitê de diversidade, políticas de boas práticas e saber aonde queremos chegar. Não acredito que vamos chegar a algum lugar de forma genuína, com raízes, sem saber quem somos. Quando entramos numa organização em que temos essa abertura, o primeiro passo é o diagnóstico – Claudia Campos
As instituições reeditam o racismo estrutural ao reproduzir a organização da sociedade e a naturalização de posições sociais sob o disfarce do mérito e da competência. “A primeira iniciativa de ação afirmativa surgiu nos Estados Unidos, quando o governo determinou, por lei, que empresas interessadas em contratos públicos deveriam ter um número significativo de pessoas negras em seus quadros. Essa ação afirmativa teve origem no mercado de trabalho”, explica Andréa Lopes. “No Brasil, o debate foi sobre diversidade e começou a ganhar força nos anos 1990 e 2000. No entanto, o conceito de diversidade vem dando lugar a discussões mais profundas sobre justiça social. Quando falamos em ação afirmativa no mercado de trabalho, estamos tratando da promoção da igualdade de forma crítica. Não se trata apenas de números, mas das posições que as pessoas ocupam e de como vão ascender na corporação”.
É por meio das ações afirmativas que a inclusão se torna realidade. Compreender essa estrutura que é produzida e reproduzida por todos esses meios e entender que esse movimento das ações afirmativas ou, pelo menos, o que se pretende, é o que promove de fato a inclusão. É adotar políticas de equidade que garantam a cada indivíduo os recursos necessários para ter igualdade de oportunidades com os demais – Marcelo Ramos
“É importante contextualizar: o que significa ‘perfil de um profissional’? Precisamos entender que o perfil é definido por quem está recrutando. Se esse perfil é definido de maneira parcial, racista, que o recrutador imagina que seja o ideal, obviamente não vai ter ninguém para acessar aquilo. Todo processo de recrutamento é um processo de definição prévia de perfil que não é nada naturalizado, é construído, artificial, frisa Andréa Lopes.
Ela revela uma história pessoal: “Quando me formei, participei de uma seleção para trainee para uma multinacional. A primeira prova foi de inglês. Mais tarde, percebi que era o TOEFL (que está entre as principais certificações internacionais da língua inglesa). Por que aplicar o TOEFL para selecionar trainees? Obviamente, um jovem de 20, 22 anos de idade tem um perfil de classe muito definido. Quando estabeleço que a prova de entrada, a primeira prova, é de inglês, estou dizendo qual é a classe social que quero atingir. Então, dizer que não tem ‘o perfil adequado’ corresponde muito mais ao perfil que você entende como adequado do que, de fato, a uma adequação mais ampla. Não avaliavam habilidades como criatividade ou capacidade de relacionamento interpessoal”.
Ou seja, na definição dos perfis e dos critérios estabelecidos para a seleção já está sendo feito um recorte. Que é um recorte de gênero, racial, com todos os vieses que acabam privilegiando já privilegiados – Marcelo Ramos
Nesses contextos, o papel do RH é fundamental. “Lutamos por uma educação antirracista nas escolas, tanto públicas quanto privadas, mas ela também precisa estar presente nas organizações. Vejo as empresas como atores sociais, organismos vivos que devem evoluir e assumir responsabilidades. Hoje, nos ambientes de inclusão e diversidade, já se fala em justiça social. No entanto, as políticas ainda são fortemente pautadas por resultados como produtividade e inovação, por exemplo. Existem inúmeros estudos que mostram que empresas com grupos diversos conseguem abordar problemas de maneiras mais variadas, pois lidam com mentalidades distintas – isso é quase óbvio. Mas é crucial ter essa base social histórica de justiça social. Acredito que, quando existem consciência e educação, as políticas se tornam mais enraizadas e menos suscetíveis a serem desmanteladas por razões políticas ou governamentais”, reflete Claudia Campos.
A implementação de práticas de educação antirracista nas empresas pode contribuir para combater o racismo recreativo, frequentemente disfarçado de “brincadeiras” ou “piadinhas”. Comentários como “Daqui a pouco não vamos poder falar mais nada” ou “Vocês estão exagerando” ilustram a resistência a essa mudança. Sobre o tema, a jornalista observa: “No ambiente corporativo, usamos o conceito de microagressões que, na verdade, não deveriam ser chamadas de ‘micro’. Embora pareçam ‘pequenas’, são extremamente violentas. ‘Não se pode mais brincar?’ Não, isso já deveria ter parado há muito tempo. Vidas estão em jogo. Acredito na educação, um processo longo, diário e exaustivo. Também acredito que é fundamental conscientizar sobre o que constitui crime: racismo é crime, homofobia é crime. Se não for suficiente, que venha pela Justiça. É um tema ausente em muitas organizações, que precisam instruir seus profissionais de que essas atitudes são criminosas”.
Minimizar o racismo também é racismo. Minimizar a agressão também é racismo. Isso é profundamente importante, mas passa por querer entender isso. É preciso que se entenda isso na empresa, porque só políticas de diversidade ou de enfrentamento pró-forma não vão adiantar. É o quanto você consegue entender o quanto o racismo constitui a sua estrutura organizacional. Isso é enfrentar com seriedade. Quantos querem fazer isso? – Andréa Lopes
É comum que questões raciais enfrentem desqualificação no processo jurídico, o que muitas vezes resulta na ausência de sanções adequadas. “A sanção tem um papel pedagógico. Hoje, os indivíduos estão cada vez mais confortáveis para expressar racismo, especialmente nas redes sociais, sem enfrentar consequências. O problema maior não está na legislação, que já prevê punições, mas na aplicação das leis. E será que as pessoas têm coragem de denunciar? Denunciar dentro de uma empresa pode significar colocar o emprego em risco”, destaca Andréa Lopes. Claudia Campos complementa: “Vejo avanços. Já há experiências bem-sucedidas. Muitas empresas implementaram canais de denúncia externos, justamente para evitar situações comuns no passado. Antes, eu poderia denunciar que você cometeu um ato racista contra mim, mas, por ocupar um cargo hierárquico superior, o problema ficava restrito à organização, sem solução efetiva”.
Hoje eu tenho algumas experiências de auditorias internas que conseguem mapear desde o início da denúncia, como se deu, como é a punição, se já está previsto, se é sabido. Quando o profissional entra na empresa, assina um termo e passa a ter conhecimento das regras; se não levar a sério, o problema não é da vítima, é do criminoso racista – Claudia Campos
E qual o caminho que está sendo trilhado para o futuro? A professora Andréa tem uma perspectiva otimista em relação à luta antirracista: “Desde os anos 70 tem havido um esforço muito grande para denúncias de casos de racismo, para trazer o tema raça e racismo para um centro de debates na sociedade. Temos observado um esforço significativo na denúncia de casos de racismo. Avançamos bastante. Se compararmos aos anos 90, quando as ações afirmativas começaram a ganhar força, hoje temos uma sociedade bem mais atenta à questão racial, com pressões para que instituições se posicionem como antirracistas, legislação, e mecanismos de inclusão nas universidades. Além disso, temos uma geração mais consciente sobre as relações raciais, que se afirma como negra, reivindicando o uso de sua corporeidade. Apesar desses avanços, o racismo ainda estrutura muitas dinâmicas sociais, como a violência e o desemprego”.
Marcelo Ramos lembra que, recentemente, diversas reportagens têm destacado um movimento de empresas, especialmente nos Estados Unidos, que estão dissolvendo seus departamentos, suas áreas de diversidade e inclusão. Aquelas que se estruturaram para lidar com essa questão estão, aparentemente, deixando de investir nisso. Dizem elas que não deixarão de atuar na causa, que continuarão seguindo todos os protocolos e políticas necessárias, mas não teriam mais departamentos exclusivos para tal finalidade.
“Movimentos frequentemente motivados por política levaram governos a minimizar esses temas, mas sigo otimista. No Brasil, vejo programas ganhando fôlego e empresas que antes não tinham departamentos de diversidade e inclusão começando a criá-los. Antes, essa responsabilidade recaía sobre colegas de marketing, sustentabilidade ou RH, que se uniam para formar comitês. Agora, vemos a abertura de setores dedicados exclusivamente à gestão da diversidade. Não há como ter retrocesso”, comenta Claudia Campos, enquanto Andrea Lopes adota um tom mais cauteloso: “É preciso estar atento e forte. Porque todos os avanços nos campos da raça, da etnia, do gênero, da sexualidade são resultados de muitas lutas realizadas em ambientes inóspitos, hegemônicos. A gente está ganhando espaço num ambiente que não quer que isso aconteça. Todas as conquistas têm que ser, de fato, brindadas. Que bom que temos conquistas. Mas não podemos ficar desatentos, porque é um ambiente do retrocesso. O desafio é nos mantermos firmes, pois tudo o que alcançamos pode ser desfeito num piscar de olhos”.
Para que isso não aconteça, deve-se contar com aliados dentro e fora das companhias. O caso de Theo van der Loo, ex-presidente da Bayer do Brasil, ilustra bem essa questão. Apesar do nome europeu, Theo é brasileiro e se encaixa no perfil do branco heteronormativo. Claudia Campos relembra: “Em 2017, ele recebeu a ligação de um amigo negro relatando um episódio de racismo em um processo seletivo no qual o recrutador afirmou abertamente que não contratava pessoas negras. Theo ficou chocado e decidiu expressar sua indignação em um post no LinkedIn. A publicação viralizou e chamou a atenção da mídia, sendo destaque na revista ‘Exame’. Esse caso evidencia algo triste: a necessidade de um aliado branco para dar visibilidade a uma denúncia de racismo. Se a história tivesse sido contada diretamente pelo homem negro que a vivenciou, provavelmente não teria causado o mesmo impacto. É lamentável que ainda seja necessário que uma pessoa branca valide as experiências de racismo enfrentadas por pessoas negras”.
Andréa Lopes considera que ter aliados é essencial. “Até porque nosso projeto não é de poder, é de igualdade. Não é sectário, trata de qualidade de vida, democracia, igualdade, inclusão, justiça. É uma luta de todos, não só dos que, de fato, são minoria ou estão em posição de subalternidade. Encontrar aliados é encontrar gente disposta a entender seu local de privilégio, porque sair dele é difícil. Para um homem entender a igualdade com mulheres é sair de um local muito confortável”.
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