“Espaço: a fronteira final. Estas são as viagens da nave estelar Enterprise, em sua missão de cinco anos para a exploração de novos mundos, para pesquisar novas vidas, novas civilizações, audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve.” Essa locução, sublinhada pela música-tema de Alexander Courage, leva semanalmente milhões de telespectadores mundo afora, desde meados dos anos 1960, aos fantásticos confins do universo em “Jornada nas estrelas” (Star Trek), uma das franquias mais icônicas e longevas do cinema e da televisão, famosa em todo o planeta e reprisada ad eternum. E esse texto de abertura poderia perfeitamente funcionar como epitáfio na lápide de Leonard Nimoy (1931-2015), o ator que deu vida por quase cinquenta anos ao Sr. Spock – um dos mais emblemáticos personagens não apenas da sci-fi, mas de todas as mídias audiovisuais.
O ator, nascido em Boston numa família de imigrantes judeus ucranianos, conseguiu ir com sua criação mais adiante que qualquer outra criatura imaginada pelos papas da ficção científica, sejam eles Jules Verne, H. G. Wells, Ray Bradbury ou Isaac Asimov. Um feito e tanto para alguém que, de certa forma, fracassou em sua empreitada como artista justamente a partir do retumbante sucesso, ficando praticamente conhecido – entre 28 filmes e 88 participações na TV – como intérprete de um personagem só. Mas, convenhamos, e que personagem! Tão marcante e espetacular quanto um Carlitos, uma Carmen Miranda, uma Marilyn, um James Bond, um James Dean…
Nimoy morreu nesta sexta-feira (27/2) de doença obstrutiva pulmonar crônica resultante das décadas em que fumou, mesmo tendo abandonado o vício há cerca de trinta anos. Seu legado, entretanto, é inestimável para a cultura pop e ele representa um papel vital no mundo pós-contracultura, justamente pela capacidade que o seu Sr. Spock teve de despertar no público um sentido pleno de moderno cosmopolitismo, perfeitamente antenado com o mundo midiático que se desenhava nos anos 1960/1970 e que viria a ser consolidado com a globalização.
Concebido como um oficial de ciências desprovido – ou pelo menos controladíssimo, já que é filho de mãe terráquea – das emoções humanas que tanto podem turvar a percepção, o alienígena vulcano se tornaria – como mesmo confirmaria o criador da série, o roteirista e produtor Gene Roddenberry – a “alma do programa”. Com seu aguçado grau de observação e provido da mais profunda lógica, Spock se comporta sempre como uma criança prestes a descobrir o mundo à sua volta e é esse completo despudor pueril, na hora de avaliar tudo aquilo que o cerca e amplificado pelo carisma do ator, que possivelmente o tornou um dos símbolos máximos da cultura pop a partir da Era Beatles. Despido daqueles preconceitos que poderiam tomar corpo em qualquer outro ser, ele preconizou nas telas o comportamento de quem está pronto para absorver o impacto das novas ideias, sem jamais julgá-las, a não ser pela ótica do bom senso. E, diga-se de passagem, esse significado antecedeu com pelo menos 20 anos a onda do politicamente correto que varreria o planeta até os dias atuais, culminando na sociedade da informação globalizada que hoje todos domina.
Em seu périplo para convencer os executivos das emissoras de televisão a embarcar na sua ideia, Roddenberry levou quase dois anos para tirar tudo do papel e por no ar, entre a concepção em 1964 e a estreia da série em 1966. Do episódio-piloto com Jeffrey Hunter como protagonista no papel do Capitão Pike até o efetivo seriado, praticamente ninguém do elenco original sobreviveu, exceto o Sr. Spock. E, embora fosse questionado pelos engravatados da NBC sobre a presença de um alienígena de orelhas pontudas, que poderia ser confundido com um diabo (ou um russo!?!) pelos telespectadores justo em um momento em que o mundo vivia sob os demônios da Guerra Fria, o produtor insistiu na manutenção daquilo que considerou o maior trunfo do programa. Deu no que deu.
“Star Trek” traz em seu cerne a modernidade dos anos 1960 e da revolução de costumes, não apenas nos figurinos e penteados em estilo mod futurista, mas na sua essência. E a principal mensagem – a aceitação da diferença, aqui representada pela diversidade de espécies intergalácticas – foi rapidamente captada pelo público que, mesmo após o cancelamento do seriado após três temporadas, continuou enviando incessantemente cartas anos a fio às emissoras de televisão solicitando sua exibição, o que permitiu que o programa fosse reapresentado ininterruptamente mundo afora pelo sindicato nos anos setenta, se tornando cult, até chegar aos cinemas em releitura assinada por Robert Wise (“West Side Story” e “A noviça rebelde”): “Star Trek: o filme” (Star Trek: The Motion Picture, Paramount, 1979). Daí, para a franquia de filmes em Hollywood e as séries derivadas foi um pulo.
A importância de “Star Trek” para a cultura ocidental é inegável e, dentro desse aspecto globalizante, o Sr. Spock encabeça uma tripulação composta por alienígenas, norte-americanos, irlandeses, japoneses, russos, escoceses e negros, muito antes da telefonia celular encurtar as distâncias. De certa forma, o efeito de dobra que faz com que a espaçonave singre rapidamente distâncias incomensuráveis no espaço sideral equivale à significativa diminuição do Planeta Terra pela tecnologia da comunicação. E são inconfundíveis os desdobramentos que fizeram com que a série permanecesse no gosto popular e se afirmasse como genuíno produto pop.
Basta dizer que, quando pensou em se desligar do programa, a própria Nichelle Nichols – intérprete da Tenente Uhura, protagonista do primeiro beijo interracial na televisão norte-americana, no episódio “Plato’s Stepchildren” (1968), dado no Capitão Kirk (William Schatner) – recebeu uma ligação de Martin Luther King pedindo que não o fizesse, pois sua presença como oficial na ponte de comando da Enterprise representava inspiração para milhões de cidadãos afroamericanos, acostumados a se verem retratados em papeis de serviçais. Sim, a série clássica coincide cronologicamente como o caldeirão fervente de mudanças que o mundo viu transbordar nos anos sessenta.
Diante disso, é naturalíssimo que o Sr. Spock ocupe no imaginário popular um espaço carinhoso de gente que está acima do bem e do mal, como Pelé e Gisele Bündchen. E, pelo visto, a famosa saudação vulcana, com a palma da mão à mostra e um ‘V’ aberto entre os dedos médio e anular, seguida das palavras “vida longa e prosperidade” faz todo sentido na hora de constatar que a presença de Nimoy no coração do público irá perdurar.
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