*Por Brunna Condini
Se ele hoje brilha e é requisitado para papéis de peso no audiovisual, também reconhece e se lembra sempre da trajetória que o trouxe até aqui. Porque como dizem por aí, ‘quem vê sucesso, não vê corre’. Silvero Pereira vem dedicando sua vida à arte de atuar há 20 anos e sem abrir mão dos seus princípios e movimentos por uma sociedade mais diversa e inclusiva nas escolhas profissionais. Da casa de chão de barro batido no Ceará para o rol de melhores atores da sua geração, ele teve uma trajetória de muita luta. E hoje pode afirmar: “Há 17 anos faço um teatro político e social, por escolha. E acho que foi isso que me salvou das adversidades que a vida colocou na minha frente e me trouxe para o lugar que estou. Quero oferecer isso para as pessoas através da minha arte”.
E das adversidades, o que mais o marcou? “A pobreza. Desde pequeno era muito claro para mim que eu fazia parte de uma classe que não era aceita. Estudei em escola pública, morava em uma casa que não tinha cimento batido, era de areia o chão. Passamos fome e sede. A roupa que eu usava era de doações. Nunca fui convidado durante a minha infância para festas de aniversário, porque sabiam que eu não teria como estar bem vestido e nem dar presente. Fui expulso de alguns lugares por estar vestindo roupa rasgada. Então, o que mais me machuca ainda hoje é o lugar da pobreza. De saber o quanto você pode ser discriminado pelo o que te obrigaram a ser. Uma questão maior. De políticas públicas, oportunidades. De dar para todo mundo o mínimo e digno para se viver: roupa, casa e comida”.
Na TV, Silvero Pereira pode ser visto em seu primeiro e memorável papel, Nonato/Elis Miranda, na edição especial de ‘A Força do Querer’. E, no teatro, até quinta-feira (17), ao vivo e online no espetáculo ‘Guerra em Iperoig’, gratuitamente, através do Youtube do Oi Futuro, sempre às 20h. “A peça é da Mundana Companhia de Teatro e vai ser uma experiência cênica audiovisual sensorial incrível. Estão neste trabalho a Mariana Ximenes, o Aury Porto, que também é um dos criadores da Companhia. Estaremos no teatro, ao vivo, mas o público vê de casa, por conta da pandemia”, diz. “É a história da guerra de Iperoig (hoje Ubatuba, São Paulo), travada entre portugueses e tupinambás. É muito sobre a História do Brasil e como isso os indígenas foram agredidos. Como isso destruiu a cultura, nossa língua e, principalmente, a população indígena que até hoje é massacrada. Depois do dia 17, a peça fica on demand no canal do Oi Futuro”.
O ator , que mora em Fortaleza, no Ceará, conta que não viajava desde o início da pandemia e veio para o Rio de Janeiro fazer a peça e filmar. “O longa interrompemos agora por conta desta segunda onda da Covid-19, para manter as pessoas ainda mais em segurança. Voltaremos a filmar em janeiro. Ele é produzido pela Cleo Pires e tem o título ‘Quem matou Antuépia Fox?’. Quem interpreta Antuérpia é a Vera Fischer e o filme se passa ao redor deste mistério e estou do lado dos vilões. Faço um mafioso que vem para roubar um certo segredo na história. É uma oportunidade interpretar um vilão e fazer comédia. Esse filme tem mistério, tem humor, tem romance”, detalha sobre a produção dirigida por Hsu Chien, que tem no elenco ainda, Fábio Jr, Fiuk, Sergio Guizé, Kaysar Dadour, Stênio Garcia, Carla Cristina e Cris Vianna.
Ator com assinatura
No momento, ele tem se realizado revendo seu Nonato/Elis Miranda, em ‘A Força do Querer’, personagem que possibilitou ao ator falar sobre diversidade e gênero na TV aberta. “Acho muito necessário a novela voltar neste momento. Essas questões precisam ser faladas muito claramente. As pessoas dizem que a novela é didática e ensina sem ser chata. E o meu personagem tem muito essa função na novela: ensinar. Mas acho que o essencial nesta história é que abre uma visão sobre o que é esse mundo horroroso da violência, da discriminação, da falta de respeito pela diversidade, principalmente em gênero. Essa novela é como se fosse uma ponta de iceberg, porque tem muita coisa que ninguém vê. Ela está aí para nos manter atentos para essas histórias, o que acontece e que precisamos lutar contra isso”.
Com uma cartela de personagens bem distintos e marcantes – coroados recentemente pelo cangaceiro justiceiro Lunga, em ‘Bacurau’ , Silvero, que levou o Troféu Grande Otelo de Melhor Ator, no Grande Prêmio de Cinema Brasileiro, por sua performance no longa, afirma que o destaque que seu trabalho vem ganhando é bom, mas que carrega junto uma expectativa do público. “Vem a responsabilidade de tentar manter esse padrão que as pessoas esperam de você. O que hoje as pessoas esperam do Silvero é que ele traga para dentro de um projeto esse lugar do benefício, do sucesso, de que vai ser bem executado, bem recebido. Eu sinto um pouco dessa pressão hoje quando sou convidado para alguns projetos. Claro que talvez não seja uma pressão por parte do contratante. Da minha parte, tem sempre a responsabilidade de manter o patamar de qualidade com o meu trabalho, na maneira como eu o executo, de como sou estudioso, dedicado. Faço tudo com muito foco, entrega”.
Empatia e visibilidade
Aos 38 anos, ele lembra que começou a carreira aos 17, fazendo teatro. E foi em Fortaleza que fundou o Coletivo As Travestidas, composto por atores e atrizes transexuais e travestis e artistas transformistas. “Esse grupo surgiu em 2002 por conta de um espetáculo que montei, ‘Uma flor de dama’, inspirado em um conto do Caio Fernando Abreu. E esses artistas se fortaleceram muito através deste coletivo. Se formaram como atrizes em Artes Cênicas, as primeiras no Ceará. É um grupo potente, sobre questões LBGTQIA+. Hoje em dia, nossa grande luta é fazer contratações dentro do universo LBGTQIA+. Queremos desconstruir preconceitos, esclarecendo e promovendo uma maior compreensão através da arte”, analisa. “Ainda tem um percurso longo, mas acho que a iniciativa mais necessária neste momento é que nós que estamos dentro da ‘máquina’ precisamos inverter a ‘máquina’. Perceber os nossos lugares. Hoje, eu nego papéis por conta da necessidade de espaço para o protagonismo de travestis e transexuais. Fui me reeducando, antes não percebia assim. E isso não é uma iniciativa só minha. É importante esse movimento, que a gente permita que as meninas apareçam e tenham seus espaços de contratação para mostrar seus trabalhos”.
Alguns acham esse tipo de postura um pouco ‘radical’, afirmando que um ator pode fazer qualquer tipo de papel. O que você diria? “Acho que um artista pode fazer sim, qualquer tipo de papel. Desde que a gente não estivesse vivendo em um espaço de opressão. Se realmente os direitos fossem iguais. Se não fossemos preconceituosos com relação às questões de gênero e diversidade. Aí poderíamos transitar pelo que quiséssemos numa boa. Mas como não temos essa estrutura social, é importante fazermos as diferenças, porque se não fizermos isso, não estaremos dando oportunidade para que as figuras oprimidas possam mostrar os seus trabalhos”, diz o ator, assumidamente LGBTQIA+.
E falando sobre empatia e ‘fazer sua parte por aqui’, Silvero afirma que fica feliz em ajudar a família e os amigos. “Esses dias dei um fogão para a minha mãe, dona Rita Invenção. Sim, esse o nome dela, é maravilhoso, né? Pensei muito em colocar meu nome artístico de Silvero Invenção, desisti porque fiquei na cabeça com o bullying que sofria quando falava o nome dela na infância. Mas voltando ao fogão. Pensei muito se deveria postar ou não a alegria dela em receber. Não gosto de ficar divulgando o que faço. Tenho essa preocupação de ajudar principalmente com os meus pais, que abdicaram de muito para criar os quatro filhos. Então me sinto muito responsável, o que posso fazer para amenizar de alguma esse sacrifício deles, faço. Meus pais me ensinaram a vida toda sobre dignidade, honestidade e caráter. Isso me guia e quando posso, dou oportunidade para as pessoas também”.
Paternidade solo
Separado do dramaturgo Rafael Barbosa há um ano e meio, com quem foi casado por 10 anos, o ator diz que está solteiro, mas segue com o sonho da paternidade. “Sempre quis ter filhos. Sou paternal. Assumi, inclusive, dois sobrinhos meus que moram em Fortaleza, onde fazem faculdade. Ajudo os dois com apartamento, com coisas que precisem. Mas já avisei que é só até o final da universidade (risos). Depois, têm que fazer a vida deles”, divide. “Na minha infância, meu pai trabalhava três, quatro meses fora e ficava pouco em casa. Quando ele retornou para morar em casa direto, eu sai. Hoje meio que reproduzo meu pai. Fico uns meses fora da minha casa e volto. Mas como não tive essa figura do pai presente no dia a dia, então talvez por isso queira ser pai, viver isso. Tenho um cachorro e um gato, que hoje divido a guarda com Rafael, mas ter um filho me interessa muito. Isso só está parado hoje por conta da quantidade de trabalho que tenho”.
E revela: “Tenho esse desejo independente de estar em uma relação. Quero ser pai solteiro mesmo (risos). Estou insistindo com duas amigas minhas que são casadas, para ver se temos filhos juntos. Vamos ver”.
A virada de chave
O ator exalta as conquistas: “O mais louco, é que todo mundo acha que minha vida mudou dentro da TV, mas foi o teatro que começou a mudar minha trajetória. A maior parte do que tenho, foi o teatro que me deu. Essa chave virei quando percebi que era um artista multifacetado. Desde o início da carreira, aprendi a produzir, dirigir, escrever projeto, vender ingresso, quando vi tudo que podia fazer, a vida mudou. Todo meu caminho, tudo que passei me ensinou a respeitar uma história, não esquecer de onde vim e que não sou melhor que ninguém”.
Ser requisitado hoje te deixa mais confortável? “Não, pelo contrário. Nunca sei quando o trabalho vai vir. Estou feliz porque em 2021 não sei mais onde encaixar trabalho. Tudo bem que esse foi um ano atípico e as coisas acumularam. Mas ainda estou recebendo convites e fazendo malabarismos para fazer o que desejo. Isso também é um privilégio hoje, faço questão de saber quais os caminhos dos projetos que me envolvo, morro de medo de ir contra os meus princípios, daquilo que luto e penso. Acho que as pessoas também querem trabalhar comigo por conta do comprometimento que tenho. Sou focado, disciplinado e atrevido. Quanto mais desafiador o processo, mais interessante para mim. Acho que minha disciplina e atrevimento interessam às pessoas”.
Em meio à pandemia e situação política e social do país cada vez mais crítica, Silvero comenta o que é viver no Brasil hoje para ele: “É deprimente. Estar no país que você ama, percebendo as potências que ele tem, ver tudo que foi plantado em termos de orgulho e do quão você poderia expor isso, sendo destruído. Eu estou muito decepcionado com o Brasil hoje. Tenho muita fé neste país, mas estamos sendo governados por pessoas extremamente agressivas, violentas e assassinas”.
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