SENAI CETIQT: Live lança luz sobre ‘Gênero e sexualidades’ e a importância de se quebrar paradigmas


Moderadora por Marcelo Ramos, antropólogo e assessor da Diretoria Executiva do SENAI CETIQT, a live contou com o mestre e doutorando em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) André Santos Francisco; o psicólogo, sexólogo e gerontólogo Pedro Sammarco e ainda com a participação de Rosa Basin, professora do SENAI CETIQT e de alunos.

Precisamos falar sobre gênero. E também sobre sexualidades no contexto contemporâneo. Tudo com urgência, pois os dois assuntos devem ser conversados com seriedade e conhecimento de causa. O SENAI CETIQT incluiu a live “Gênero e Sexualidades” na Semana de Responsabilidade, organizada anualmente pela faculdade da instituição e aberta à sociedade. Segundo o moderador Marcelo Ramos, antropólogo e assessor da Diretoria Executiva do SENAI CETIQT, a discussão tem sido acalorada nos últimos anos. “Muitas vezes, porém, esse debate traz um viés que dificulta a compreensão da discussão sobre gênero e a importância dessa reflexão e de ações para garantir maior equidade, considerando as desigualdades geradas pela construção social da diferença entre homens e mulheres”, pontua.

Segundo Marcelo Ramos, “o tema também permite a reflexão sobre o conceito de sexualidade e o esclarecimento sobre o que se fala quando se discutem gêneros. Fundamentalmente é uma discussão sobre relações de poder e hierarquia, sobre dominantes e dominados em determinada estrutura social, sobre essa construção social que é internalizada por meio das diferentes educações, tanto a formal como a familiar e a que nos vem pela mídia e por diferentes meios e que muitos reproduzem e geram desigualdades, diferenças de oportunidades, submissão, discriminação para alguns que estão mais marginalizados dentro dessa estrutura de gênero”.

O mestre e doutorando em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) André Santos Francisco, que também é sexólogo, foi o primeiro a falar: “Esse debate é importantíssimo, porque gênero e sexualidade podem afetar a vida social a ponto de uma pessoa adoecer. Adoecimento não é só uma questão física e fisiológica. Estamos falando também de saúde mental e emocional. Gênero é uma construção social. Temos que nos manter sempre atentos a isso. Quando falamos sobre tais assuntos, produzimos novos conhecimentos para que cheguem a outras pessoas, para que certos preconceitos sejam quebrados e barreiras sejam rompidas para uma sociedade mais igualitária”.

Nesse ponto, Marcelo Ramos comenta sua experiência com o estudo de gêneros: “Comecei estudando a condição feminina. Quando conheci uma literatura sobre mulheres feita por mulheres, notei que havia um foco na luta pela igualdade. E me perguntei: mas e a condição masculina? Afinal, o homem também é um paciente dessa construção social que é o gênero. Ele também sofre. É interessante falar sobre a perspectiva dos males que a construção do gênero traz para o masculino, do peso que ele carrega para ser o chamado ‘homem de verdade’”.

André Santos Francisco ilumina a questão do ‘tornar-se homem’, de se construir como um ser humano do sexo masculino: “Bato muito na tecla da construção. Faz muita falta uma reflexão sobre o gênero como um todo. Ele não é natural, não é dado, não vem da natureza, não é por conta do seu corpo. Pensa-se muito a partir do corpo. Acredita-se que, magicamente, vão surgir características e comportamentos ‘típicos de homem’. Mas não é bem assim”.

Outro ponto muito importante é refletir e se conscientizar de que não existe um único modo de ser homem ou mulher. “Apesar de se desenhar um padrão, podemos exercer a masculinidade ou a feminilidade de várias formas”, observa André Santos, acrescentando: “A gente vem de uma tradição secular de aprendizados que afirmam que seu gênero e sua sexualidade estão colados ao seu corpo. Com a ultrassonografia, antes de nascer já se é designado homem ou mulher com base em características físicas. A partir daí, cria-se uma série de expectativas, várias construções sociais nos permeiam e aprendemos a reproduzi-las ou a refutá-las. Identificar alguém pelo genital no máximo define a pessoa como macho ou fêmea. Nosso gênero não é da natureza, não vem de uma divindade. Vem do convívio com os outros, da estrutura social. É um processo relacional e situacional. Ao longo do tempo, vamos nos construindo como homem ou mulher por uma série de aprendizados”.

“A gente cresce com muitos preconceitos, muitas ideias pré-concebidas acerca do que é ser homem e do que é ser mulher, de quais papeis temos que cumprir. A partir dessas reflexões sobre masculinidades, começamos a entender que é preciso quebrar esses preconceitos porque existem formas diferentes de ser homem no mundo. Para ser homem, não é preciso ser igual ao seu pai, ou àquele jogador de futebol ou ao ator da novela. Você pode ser você mesmo e ser homem sendo diferentes dos modelos, dos padrões. Diferentes do padrão que é entendido como a masculinidade que chamam de hegemônica, o que é diferente de orientação sexual também”.

Exatamente como disse Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. A escritora Elisabeth Badinter, também francesa, parafraseou sua conterrânea no livro “XY”, em que trata da eterna luta do homem para enquadrar-se em padrões de comportamento que confirmem e reafirmem sua virilidade. “Não se nasce homem, torna-se homem”, escreveu madame Badinter. “A questão é que, quando se determina o que é ser homem ou mulher, também se determina tudo que não é. E esse ‘tudo que não é’ é estigmatizado, gera preconceitos etc. Essa discussão é importante para se falar de diversidade e inclusão, sobre como incluir esses ‘outros’ que não são o homem e a mulher definidos na construção do gênero”, observa Marcelo Ramos.

O psicólogo, sexólogo e gerontólogo Pedro Sammarco, formado pela PUC-SP, levanta questões importantíssimas: “O sexo biológico é composto pelas características físicas e cromossômicas. Ao longo do tempo, a sociedade foi organizando o seu funcionamento em torno desse sexo biológico. Os machos da espécie são chamados de homem e precisam ter um órgão sexual chamado pênis. As fêmeas são chamadas de mulher e devem apresentar uma vagina. Mas a natureza tem nuances. Pessoas denominadas intersexo têm o órgão genital considerado ambíguo. Pode haver elementos considerados de macho e de fêmea. Essa pessoa vai se identificar com qual gênero?”. E ele acrescenta: “Na sociedade, o homem-macho-pênis é identificado com o que é denominado masculino. São formas de ser, falar, vestir, gesticular impostas socialmente. Isso varia muito de acordo com a época, o local. O gênero é vivo, ele muda. O que é considerado feminino hoje não é igual ao que era feminino no século XIX numa sociedade da Nova Guiné, por exemplo. Tudo é relativo”.

Até pouco tempo atrás, crianças intersexo eram submetidas a uma cirurgia para modificar a genitália, tornando-a feminina. Construía-se uma vagina e era imposto à criança a agir como o gênero feminino. “Uma violência. Essa criança crescia e não conseguia se identificar com o que lhe era imposto, o feminino, por exemplo”, comenta Pedro Sammarco. “Tudo parte do órgão sexual. A partir daí é definido socialmente pelo gênero ao qual a pessoa pertence. A sociedade costuma pensar o gênero como algo binário: masculino ou feminino. Mas, entre os dois, existem pessoas que têm o gênero-fluido, por exemplo, que não são binárias, não se identificam nem com um, nem com o outro”.

A professora do SENAI CETIQT Rosa Basin conta sua história: “Eu nasci no sexo feminino e sempre me senti inadequada, como se não habitasse o meu próprio corpo. Minha identificação é com o gênero masculino e minha orientação sexual é para o masculino – um masculino bastante desconstruído e feminino. Quando comecei a me ver como um ser que não se encaixava em definições, sofri com o preconceito. Sempre me identifiquei com a vestimenta do homem, o estilo despojado, por exemplo. E sempre gostei do masculino-feminino. Posso dizer que aprendi a feminilidade com homens femininos. Este universo masculino cheio de feminilidade me encanta”, conta Rosa.

“Existe um preconceito imenso quando você é um ser que não se encontra dentro de uma definição que a sociedade considera. Quando viam meu estilo masculino, achavam que eu era lésbica e diziam: “Mas quando você vai se assumir? Você tem que namorar uma menina”. Mas, eu nunca gostei de menina, nunca senti essa atração. E isso nunca seria um problema para mim. Na verdade, é um processo dia sair do armário e o mais importante é a gente se olhar para se aceitar, porque o preconceito maior vem da gente, quando você se deixa abater pela crítica ou pelo julgamento do outro dizendo que você não existe. Então, muitas vezes, você não vai entrar no embate. Porque é muito difícil: como o mar vai caber num copo d’água? Nós temos essa maleabilidade e fluidez que a sociedade não consegue entender. Eu vejo pelos meus alunos, pelos jovens que eles já transitam por essas possibilidades sem medo. Preconceito? Sim, eu vejo demais”.

Apesar de sofrer com o preconceito, Rosa foi se construindo e se fortalecendo aos poucos. Em 2000 teve o que chama de “momento de despertar para novas possibilidades de existência”. E tornou-se quem é: uma pessoa forte e completa. Mas o pré-conceito não desapareceu: “Existe preconceito não somente dos heteronormativos, mas também dos homossexuais que olham para você como um ser que não pode existir. Meu lugar é o universo gay. É onde eu me sinto à vontade e observo que também existe preconceito desse lado. Mas a gente vai quebrando isso”.

André Santos Francisco associa este tipo de preconceito a um modelo muito específico de machismo estrutural direcionado à crítica e à desvalorização do feminino. “O preconceito está muito enraizado. É ligado a toda uma estrutura de relação de poder, de inferiorizar determinados indivíduos para se colocar no lugar superior. Isso perpassa toda a nossa construção de gênero, nossa construção de identidades e até a questão da sexualidade. Essa reflexão é importante para entender que é preciso quebrar os preconceitos, pois são danosos, prejudiciais e causam sofrimentos”, afirma.

A live abriu espaço para a participação de três jovens alunos do curso de Design de Moda do SENAI CETIQT: Letícia Dias, Francisco Braga e Marcela Kopanakis. Eles fizeram perguntas sobre a diversidade de suas experiências, como ensinar os mais velhos a viver no mundo atual e quebrar seus preconceitos e sobre como podem, a partir de suas experiências e práticas, subverter a ordem estrutural e ser um aliado na busca de equidade. André Santos Francisco respondeu:

“Nosso trabalho é insistir nos debates, mesmo que a pessoa fique encastelada em suas opiniões cristalizadas. Combatemos isso levando conhecimento. No capitalismo ocidental tudo que foge do padrão é subversivo. E reforça preconceitos sobre corpos desviantes e personalidades tidas como doentes, escandalosas. É essencial abraçar a diversidade. Revoluções começam com mudança de mentalidades. Podemos pensar na moda para mudar o entendimento do vestuário e abrir a cabeça das pessoas, por exemplo. Sei que soa abstrato, mas iniciativas como criar roupas sem gênero abrem um leque de mudanças, pois geram questionamentos. E a equidade é uma proposta nascida de questionamentos”.

Para se ter uma ideia de o quanto o sistema é poderoso na manutenção do status quo, veja esse exemplo trazido por Marcelo Ramos: “Comecei meus estudos sobre gênero observando a presença feminina em partidos e organizações políticas. Elas faziam atividades praticamente iguais às dos homens, mas eram vistas como ‘a esposa de’.  Eram sempre designadas para secretariar reuniões. Quando vestiam roupas mais femininas, eram ‘frágeis’. Se tivessem uma postura descontraída, eram criticadas, como se tivessem que se masculinizar para estar naquele lugar. Na época, surgiu uma discussão sobre a política de cotas para a presença feminina: pelo menos 30% de mulheres em partidos e organizações. Foi na década de 80. Por incrível que pareça, muitas se auto-excluíam. Tinha a ver com a ideia de ‘não nasci para isso’. Claro, esse campo é totalmente estruturado sobre a lógica masculina”.

E assim, a presença feminina em partidos e organizações políticas levou muito mais tempo que o necessário para chegar a um nível razoável. A resistência às “novidades” é ferrenha, a ponto de muita gente criticar o progressismo nas redes sociais. Pois bem, uma das “vítimas” mais recentes da onda conservadora brasileira foi (é)… a linguagem neutra, criada para suprir as demandas por maior igualdade entre homens e mulheres evitando o uso do masculino genérico. Os detratores da ideia argumentam que seria um desrespeito à língua portuguesa, uma “frescura” etc. André Santos Francisco comenta: “Muitos menosprezam. Dizem que é só uma letra. Mas não custa ter essa consideração para tornar a realidade das pessoas mais aceitável. Em relação à binariedade, precisamos entender mais. E, no caminho do entendimento, não custa fazer o esforço de buscar utilizar a linguagem neutra. Não dói. Assim como não dói chamar alguém por seu nome social. Por que não fazer isso com indivíduos trans? Não tem que ficar se prendendo a “ai, é só uma letra, uma violência com a língua”. Não. Violência é não ter respeito pelas pessoas”.