* Por Carlos Lima Costa
Atriz, psicóloga, doula, ex-rainha de bateria e, atualmente, na função de Rainha da Escola de Samba Império Serrano, Quitéria Chagas, que mora em Milão e veio ao Rio para o start dos preparativos da escola de samba para o carnaval 2022, sempre se posicionou e usou sua visibilidade não somente contra o racismo. Ela diverge de qualquer tipo de preconceito e mostra esse lado ativista em sua rede social. “No meu Instagram, defendo todos os movimentos, como também o LGBTQIA+. É importante levantar todas as bandeiras”, frisa. E, no mês da Consciência Negra, com um discurso empoderado, considera relevante ressaltar algo básico: “Em todas as raças, a gente deve sempre buscar se reeducar, aprender com pessoas do Movimento Negro e de outros movimentos sociais para tentar aos poucos eliminar falas e ações racistas. Por exemplo, às vezes alguém vê uma pessoa preta na rua e já olha com medo, segura a bolsa, fica com receio, quer revistar. Essas atitudes acontecem até com quem fala que não é racista. Às vezes, um olhar demonstra mesmo sem a pessoa ter essa noção. Isso sempre acontece. A educação brasileira é racista, colonizadora e escravista”, enfatiza.
E prossegue em seu exemplo. “O Brasil tem essa questão do serviçal, de oprimir o outro, mostrar poder, de falar: ‘Sou fulano, olha com quem você está falando’, a típica carteirada. Tudo isso é racismo, intolerância. As pessoas precisam ser reeducadas e buscar conhecimento, que hoje em dia está mais ampliado. Com as redes, o questionamento social eclodiu. Já é um passo importante contra o racismo e todas as intolerâncias”, acrescenta Quitéria, que há cinco anos mora na Itália, com o marido Francesco Locati, e com Elena, de 6 anos, a filha do casal.
No Rio, ela participou da Feijoada Imperial na quadra da Império Serrano, em comemoração ao Dia Nacional da Consciência Negra. E, no dia 4, estará no lançamento do CD das Escolas de Samba do Rio, na Cidade do Samba.
Quitéria aponta que a pandemia fez elevar o preconceito racial. “Ainda existem casos extremistas, radicais, que infelizmente afloraram muito nesse período. Não sei o que aconteceu, mas vem ocorrendo uma onda de extremismo muito radical em relação não só às pessoas negras. Racistas geralmente são intolerantes aos gêneros, então, acaba que o movimento negro, o dos LGBTQIA+ e todos os outros lutam por reeducação social, contra esses ignorantes, responsáveis também pelo feminicídio. Mas a escravização foi uma das violências mais drásticas da humanidade, onde uma única raça foi violentada por décadas, não só na questão física, com instrumentos de tortura, como na psicológica”, aponta.
Ela acredita que durante o isolamento social, através das redes, muita gente se interessou em conhecer mais sobre o movimento negro. “Estão tentando se reeducar contra o racismo estrutural, que está em todos nós, mesmo nas pessoas pretas, porque a educação social brasileira vem com questões racistas, infelizmente. Tem falas que poucas pessoas percebem, mas são racistas. Por exemplo, quando você invalida conquistas de pessoas pretas. Tipo, sou formada em Psicologia e me questionam: ‘Você estudou, é formada, mas você não é sambista?’ Mas sambista estuda também, gente, samba é cultura. O mundo é amplo. Quer dizer: são estereótipos construídos”, desabafa.
Quitéria relata que na Itália a vida também não é fácil nesse sentido. “Lá, o racismo é pior. A questão é que na Itália não existe cota racial, nem lei que nos defenda de ações racistas. Os movimentos LGBTQIA+ também estão lutando por isso. Só que a maior bancada lá é extremista. Mas lá, o movimento nas redes sociais também vem potencializando esse processo de reeducação da sociedade. Mas a educação lá é outra, são eurocentrados. Eles acham que são o centro do poder do mundo e, na verdade, a base da cultura europeia é uma cópia africana, porque a filosofia não nasceu na Europa. Ela nasceu na África, é tudo do Egito. A cultura grega pirateou isso, que já foi falado por vários historiadores. Eles pegaram as religiões, as histórias africanas e fizeram uma outra roupagem”, comenta.
Na cidade de Milão, onde mora, ela já foi vítima de racismo e frisa que o preconceito é maior por viver em um bairro nobre. “Por exemplo, estava no elevador do meu prédio, que é antigo, só cabem duas pessoas, aí entrou uma senhora, daquelas bem socialites, que me deu aquela olhada para que eu saísse do elevador, porque em alguns bairros nobres eles olham e pedem para o empregado, para a pessoa que não tem o perfil de um italiano, sair do elevador para que ela fique sozinha. É um olhar de superioridade, de intimidação. Eu não abaixo a minha cabeça. Então, olhei normal sem ser pedante e continuei no elevador. Ela continuou me encarando e eu não estava entendendo. De repente, me perguntou se eu morava lá, respondi que sim, na cobertura, e ela ficou louca, começou a falar: ‘Que absurdo, esses negros estão invadindo a Europa, essas pessoas de outras raças, não gosto dos imigrantes.’ Respondi que depois de mim virão muitos outros, que a sociedade mudou, e que seria bom que ela entendesse isso”, conta.
Por mais que seja uma mulher forte, esse tipo de situação machuca. “Antigamente, não tinha muita estrutura para aguentar isso, não sabia como reagir, ficava triste. Hoje em dia, vivendo lá, e como me formei em Psicologia, não fico mais assim. Vejo que esse tipo de pessoa é ignorante social, tem distúrbio e que a minha presença a incomoda. Só que se essa pessoa sentir que ela me incomodou e usar de agressividade, vai ser pior, porque vou alimentar essa ignorante. Quando a gente repreende ou ignora, mostramos que essas pessoas são insignificantes, e aí elas ficam péssimas. Aquela mulher não esperava a minha reação e ficou calada, porque não dei a mínima para ela”, explica.
E apesar de tudo, Quitéria, não conseguiu blindar Elena em relação a comentários. “A minha filha nasceu com a pele branca e o cabelo liso. Mas eu sou uma mulher preta, então, quando vou na festa da escola, sou a única negra. Ela fala ‘minha mama’, e leva uma bonequinha preta, diz que é igual a mim. Uma vez ela me disse assim: ‘Um amiguinho falou que a minha boneca é feia, porque ela é preta e eu falei que não, porque ela é a minha mãe, e a minha mãe é linda.’ Ela já aprendeu a se defender nesse sentido”, observa.
Quitéria explica que ainda não está atuando na psicologia. “Atualmente, cuido da minha família. E a função de doula, às vezes, algumas brasileiras me chamam para eu orientar, mas lá, o parto que predomina é o natural. É raro ter uma cesariana, eles não tem o hábito”, ressalta ela, que se formou em doula durante a gestação de Elena, mas contou com a ajuda de uma no parto natural, em sua casa, onde estava assistida por uma equipe.
Como atriz, Quitéria teve destaque como a empregada Dorinha, na novela Páginas da Vida (2006/2007). “Depois, fiz participações em humorísticos, não fiz outra novela. Foquei em outras coisas como a faculdade de psicologia, a gestação, quis parar também. Era uma luta, porque eu tinha me formado como atriz e ficava nos corredores da Globo pedindo para fazer teste, para tentar entrar em elenco de novela, só que naquela época, falavam ‘você tem que esperar novela de negro para viver uma escravizada. Sempre falavam assim e ainda diziam ‘querida, você tem que escolher se você é atriz ou sambista’. As duas coisas não davam, porque eu era uma figura do Carnaval”, lembra. Irritada, deu uma entrevista onde falou do preconceito que enfrentava, que não conseguia fazer teste e tinha o estereótipo de interpretar uma escrava em novela de época. “Aí, o Manoel Carlos viu a matéria, pediu para o produtor de elenco me ligar para fazer o teste. Graças a ele, fiz o teste. Se não fosse o Maneco eu jamais ia fazer novela”, afirma ela, que este ano volta ao Sambódromo como Rainha da Império Serrano, que vai defender o samba-enredo Mangangá, sobre a história do ativista Besouro de Mangangá, que lutou pelos direitos dos negros no pós abolição da escravatura. “Eu abro o desfile, antes da comissão de frente, é um cargo importante. Pra mim, é uma honra e responsabilidade representar a escola, toda ancestralidade do Império Serrano”, pontua ela, que já foi Rainha em 2004, 2005, 2014, 2017 e 2018, e em outros anos foi Rainha de Bateria. Recentemente, ela integrou a defesa para aprovar a lei do Dia Nacional da Mulher Sambista. O projeto está tramitando na Câmara dos Deputados.
Em relação a pandemia, o país aonde mora, vive um momento melhor em relação a outros países da Europa como Alemanha e Áustria. “Na Itália está tranquilo, as mortes não estão subindo, não estão acontecendo, graças a Deus. Mas nas regiões do Norte da Europa sempre foram resistentes a vacinação, independentemente de ser a vacina do Covid, é uma cultura deles. E tem umas teorias lá, umas maluquices que eles não aderiram como obrigatoriedade. Esse é o problema. Já na Itália, a vacinação é obrigatória. Quando vou, por exemplo, à academia, tenho que passar o QRCode da vacina, senão a catraca não libera a minha entrada. Então, lá está mais controlado. Até as pessoas que eram contra tiveram que vacinar para poder ter uma vida social. E não entubam mais, só em casos raríssimos. Usam um material que passa a respiração e a pessoa não fica sedada, tipo um capacete, algo criado por uma universidade brasileira, mas aqui o pessoal não compra. Não sei o que acontece”, pondera. Ela, o marido e a filha não tiveram covid-19. Logo, no início da pandemia, foram para Roma, onde ficaram na casa de sua sogra. “É um espaço grande, tipo uma mini fazenda, então, tinha jardim. Se fosse em Milão, ia ser insuportável, um apartamento fechado. Tenho amigas que surtaram nessa situação”, conta.
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