*Por Simone Gondim
Mulher trans, mãe, esposa, professora e clériga: em 39 anos de vida, Alexya Salvador aprendeu que precisava arrombar as portas de um mundo cisgênero para conseguir realizar seus desejos e se impor em uma sociedade na qual o preconceito ainda impera. Reverenda da Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), que segue a doutrina protestante, ela é formada em letras e teologia e foi ordenada em janeiro de 2020. Na cerimônia, realizada no Mês da Visibilidade Trans, também estavam presentes pessoas de outras religiões, como católica e evangélica. “Pedi que o único bispo trans do mundo viesse e consegui. Queria a mão trans para me ordenar”, explica. “A comunidade trans enfrenta vários estigmas. Não desejo impor nada como reverenda, só quero ter o direito de sentir Deus”, argumenta.
A ligação de Alexya com a religião vem da infância. Católica de berço, levava uma vida voltada para a igreja bem antes de se identificar como transgênero. Aos 18 anos, saiu da casa dos pais, em Mairiporã (SP), e fundou a comunidade “A rainha da paz”, voltada para pessoas sem moradia. Além de manter o grupo de acolhimento por quatro anos, ela chegou a frequentar o seminário na época em que ainda se definia como homem gay. “Deixei o curso quando entendi que não me enquadrava e a igreja católica não iria aceitar quem eu era”, conta. “Vivia um conflito como menino. Da primeira vez que vi um grupo de travestis, me identifiquei: sou uma mulher. Mas era muito doído, não queria deixar de ser amada por Deus. Aos poucos, fui me percebendo”, lembra ela.
Foi por causa do amor que Alexya encontrou a Igreja da Comunidade Metropolitana. Em 2009, na estação de metrô da Sé, em São Paulo, seu caminho cruzou com o de Roberto. Apaixonaram-se à primeira vista, trocaram telefones e, depois do primeiro beijo, não se desgrudaram mais. Em outubro do mesmo ano, os dois procuravam uma igreja que fizesse casamentos LGBTI+ e marcaram uma conversa com um pastor da ICM. Alexya se identificou com a liturgia, semelhante à católica, e começou a participar mais da igreja. “Em 2011, veio o convite para eu me tornar diaconisa”, recorda ela. Alexya e Roberto foram o terceiro casal homoafetivo do Brasil a ter a certidão de casamento, após os ministros do Supremo Tribunal Federal reconhecerem esse tipo de união.
Antes de fazer a transição de gênero, Alexya conversou com Roberto. Era grande o medo de que ele não quisesse ficar com uma figura feminina, já que a conhecera como homem gay. “Ele me acalmou e disse: onde vou enfiar o amor que eu sinto por você?”, emociona-se a reverenda, cujos documentos são retificados com o nome e o gênero femininos. Entre os pais, a mãe lidou melhor com a questão, apresentada aos poucos. “Meu pai demorou mais a entender, mas temos uma boa relação”, diz Alexya.
Em 2014, a família cresceu. Alexya e Roberto conheceram Gabriel, na época com 9 anos, em um abrigo de Mairiporã, e começaram a vê-lo como padrinhos. A guarda definitiva do menino, que tem necessidades especiais, veio em 2015. “Foi uma audiência emocionante e a concretização do nosso amor em família. O Gabriel é que adotou a gente”, afirma Alexya. “Sou grata à Dra. Cecília Coimbra, do grupo Acolher, que nos mostrou o universo da adoção”, acrescenta.
O sonho de Alexya de ter três filhos foi realizado aos poucos. Em 2017, a juíza Christiana Caribé da Costa Pinto, de Jaboatão dos Guararapes (PE), procurou o casal dizendo que queria encontrar a melhor família para um menino de 9 anos que se dizia menina. A partir daí, Alexya seria a primeira trans a adotar uma criança também trans: Ana Maria, que recebeu o nome em homenagem à mãe da reverenda, já saiu do tribunal com a mudança de nome e da identidade de gênero em seus documentos.
Em 2019, a história se repetiu, dessa vez na comarca de Santos (SP). Era Dayse, outra menina trans, que ainda está em processo de destituição familiar, mas já mora com Alexya, Roberto, a irmã e o irmão. “Lutei com o plano de saúde para botar o nome social da Dayse na carteirinha. É o que eu chamo de síndrome do balcão, a pessoa se acha no direito de negar um direito seu”, lamenta. “Levei quase cinco anos para conseguir trocar meu nome e ouvi coisas horríveis. Três meses depois que saiu meu RG, passou a lei assegurando o direito de as pessoas trans mudarem de nome. Pensei: que bom, ninguém nunca mais vai passar pelo que eu passei”, completa.
Por estar em evidência, Alexya é alvo fácil para a LGBTIfobia. Além de ameaças de morte constantes, ela é xingada e acusada de se aproveitar financeiramente dos outros. “É só ver o meu dia a dia que essa teoria de que estou rica desmorona”, garante. “Juntei com muito sacrifício o dinheiro para colocar minhas próteses, mas quando o Gabriel chegou desisti da cirurgia para começar a construir minha casa. Quero meus seios, só que abri mão do meu corpo por amor”, revela. A obra, em um terreno dado pela mãe da reverenda, atualmente está parada. “Nada falta aos meus filhos. Deus caminha ao nosso lado”, acredita.
Os ataques se intensificaram após uma entrevista em que Alexya disse que Jesus foi o primeiro homem trans. Ela esclarece que não usou a palavra no sentido da sexualidade, mas sim da mudança de gênero. “Jesus já existia antes de encarnar no ventre de Maria. Seu gênero era divino. Quando assume a forma humana, ele se torna transgênero, passando de divino a humano”, teoriza.
E o preconceito também vem da própria comunidade LGBTI+, especialmente de outras mulheres trans. “Reconheço meu lugar no mundo e sei que tenho privilégios. Nunca precisei me prostituir, por exemplo, e muitas me olham diferente por causa disso. Cadê o ninguém solta a mão de ninguém?”, questiona. Para contribuir com a causa, a reverenda sonha com a carreira política – depois de se candidatar a deputada e não entrar, ela quer tentar uma cadeira de vereadora. “Por mais que tenhamos aliados, nossas demandas ficam por último. Precisamos ocupar esse lugar na política. Nossa voz não será silenciada”, promete.
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