*Por Brunna Condini
A revolução é feminista? As mulheres vêm ganhando força e não aceitam mais caladas serem vítimas de discriminação, assédio ou qualquer tipo de violência. Infelizmente ainda precisamos de um movimento para afirmar o óbvio: queremos ser respeitadas e tratadas com dignidade! A doutora em psicanálise, criadora de conteúdo digital e feminista, Manuela Xavier, 33 anos, direciona a carreira e seu alcance para falar diretamente com as mulheres sobre os temas que permeiam o universo feminino, através das redes sociais, produzindo cursos, e, agora, com um podcast saindo do forno, o ‘Isso não é um podcast‘. “Quero despertar cada vez mais mulheres, fazendo com que se olhem com amor e enxerguem potência e beleza em ser quem são. Acho importante que alguém como eu, uma mulher fora do padrão, esteja sendo vista com uma existência capaz de revolucionar”, diz ela, que é seguida no Instagram por Anitta, Juliette e Djamila Ribeiro, entre outras personalidades.
Com tantos episódios de violência contra as mulheres divulgados diariamente, ser uma mulher que levanta outras, faz toda a diferença. Entre os casos que acabam por enfraquecer nossa fé na humanidade, o mais recente, e que gerou indignação geral, foi o da a atriz Klara Castanho, que, depois de ter sua vida exposta, revelou em carta aberta ter gerado um bebê fruto de um estupro, encaminhando-o para adoção. Manuela se sentiu impactada pelas múltiplas violências sofridas por Klara (como a maioria de nós), e arrisca nos dizer o que fica desta história: “Podemos aprender o que Simone de Beauvoir já tinha apontado: que basta uma crise econômica, social ou política para que os direitos das mulheres sejam postos em risco. O caso Klara Castanho é a demonstração mais perversa da sociedade em que vivemos: uma articulação entre os efeitos da onda conservadora com a ‘mídia clique’, e a política da misoginia que nos governa. Em nome da sanha pelo poder, pisoteiam sobre as cabeças das minorias, e as mulheres sempre foram as primeiras a serem atacadas”.
No quesito violência contra a mulher, as estatísticas mostram uma realidade avassaladora: o Brasil tem pelo menos sete estupros por hora, e, ano passado, foram registrados 66.020 casos. O número pode ser ainda maior, se pensarmos que esse tipo de crime tem muita subnotificação. Manuela comenta sobre o termo ‘cultura do estupro’, muito usado por aqui, mas utilizado desde os anos 1970, época da chamada segunda onda feminista, para apontar comportamentos tanto sutis, quanto explícitos que silenciam ou relativizam a violência sexual contra a mulher.
“Os passos necessários para que a gente caminhe em direção a um avanço nos direitos das mulheres é observar quem tem lucrado com as violências a que somos submetidas. Falar de cultura do estupro coloca o assunto em uma virtualidade quase intangível. O caso Klara Castanho é um exemplo disso: a cultura do estupro ganhou nome e endereço virtual. É isso que precisamos começar a fazer. Abrir os olhos e enxergar quem está protegido enquanto estamos em risco, quem está imune às pautas que nos trazem dor, quem está com sangue nas mãos e dinheiro nos bolsos? É preciso abrir os olhos e exercer um certo pragmatismo. Estamos em um ano eleitoral decisivo. É preciso que nós, mulheres, nos coloquemos como sujeitos políticos nesse campo de disputa e podermos dizer nas urnas o que queremos. É necessário que toda a sociedade faça um grande pacto pela democracia e entenda a importância de políticas públicas operadas por e para mulheres”, aponta.
“É mais urgente ainda que a gente entenda que a política é uma estrutura que compõe, organiza e nomeia; e vai além das urnas. Começa em casa com a política do afeto e do respeito à diferença, com educação sexual em casa, com ampla discussão sobre gênero nas escolas e nas empresas. A política atravessa a nossa forma de estar no mundo e, se não nos implicamos em pautas de gênero, raça e classe, continuaremos com uma sociedade espelho do patriarcado; neo colônia patriarcal para submeter mulheres”.
Manuela divide ainda sua experiência em relação ao assédio sexual que sofreu. “Tinha 19 anos. Estava a caminho da faculdade no ônibus, e um homem desconhecido sentou ao meu lado, se masturbou, gozou, e foi embora. Tudo sem que eu conseguisse esboçar qualquer reação. Na época, congelei de medo quando tive vontade de gritar. Depois me impactei com o silêncio das pessoas que certamente viram a cena mas não fizeram nada. Levei um tempo achando que a culpa poderia ser minha, da roupa que eu usava ou do lugar que eu estava sentada ou mesmo do livro que eu estava lendo, curiosamente, ‘Serial Killers Made in Brazil‘, de Ilana Casoy. Depois, mais adulta, vivi uma relação abusiva, submetida a várias violências psicológicas em que também me remoí de culpa e só depois entendi que a responsabilidade não era minha, e que se tratava de uma dinâmica estrutural da relação heteronormativa patriarcal”.
Por pluralidade
Ampliar debates possibilita jogar luz nos temas, por mais obscuros que sejam. Empolgada com a possibilidade, ela detalha sobre o seu podcast, ‘Isso não é um podcast‘, um convite à pluralidade e à potência. “É a realização de um trabalho que vem sendo construído há tempos e que se concretiza agora de forma quase literal: é a abertura ao diálogo para as pontes e para os atalhos nas estradas. Ao longo desse tempo, na internet e na vida, tive trocas profundas e frutíferas com muita gente. Tudo é muito mais complexo do que parece – e muito mais bonito também. As pessoas são uma imensidão de talentos e belezas, e a gente insiste em colocar tudo numa caixinha. O podcast é um espaço para dialogar com pessoas que admiro e me inspiro. Os convidados também participam de um quadro que é sucesso no meu canal do YouTube: ‘Não era amor, era cilada!’ onde a gente analisa juntos um caso de amor – ou cilada? – de uma seguidora e dá um conselho pra ela. Afinal, o objetivo desse podcast é despertar, empoderar e encorajar mulheres a se verem como plurais e potentes e se afirmarem como protagonistas de suas vidas”.
E anuncia: “Meu primeiro convidado é o cantor Rico Dalasam, que tem feito um trabalho artístico excelente, mostrando como a arte caminha lado a lado com a subjetividade, em um disco que fala sobre os lutos e elaborações pós relação abusiva. Entre os convidados confirmados também estão grandes nomes como Juliette, Preta Gil, Linn da Quebrada e Hugo Gloss“.
Partindo dela
Na contramão do padrão, Manuela conta que ela mesma precisou trilhar um caminho de fortalecimento da sua autoestima. “Sofro pressão estética desde que tinha 6 anos e fui levada à nutricionista, porque era uma criança ‘acima do peso’. Olhando hoje, vejo que era apenas uma criança normal. Ao longo da vida, muitos foram os comentários sobre o meu corpo e não faltaram sugestões sobre o que eu deveria fazer para ficar melhor fisicamente, mesmo eu não tendo pedido nenhuma opinião. Por muito tempo, eu persegui esse padrão de beleza. Fiz dietas radicais, gastei muito dinheiro em produtos milagrosos, achei que eu ia ser mais feliz quando perdesse os quilos que tanto diziam. Só que ao mesmo tempo, meus pais e minha família estimularam em mim uma autoestima muito descolada da imagem. Meus pais me estimularam a ser o melhor que eu pudesse ser e naquilo que eu escolhesse fazer. Com isso, desenvolvi uma autoestima intelectual que me fez não sucumbir às inseguranças e ter uma confiança em mim mesma que fazia com que eu não me confundisse com um corpo. E foi isso que me salvou”, avalia.
“Saber que eu não era um corpo, mas sim uma potência de realização, fez com que eu não paralisasse ou sucumbisse à pressão estética, embora ela continuasse, como continua, me assombrando. E é isso que eu quero transmitir a todas as mulheres: que elas entendam que não são um corpo, são uma imensidão”, completa.
Essa potência e a trajetória clínica de 10 anos foram parar na internet: “É um espaço sem fronteiras, um grande inconsciente a céu aberto. Comecei a trazer para internet o que eu já trabalhava na clínica e na universidade: a encruzilhada clínica-cultura, subjetividade-sociedade; e o que percebi foi a surpresa. As pessoas se surpreendiam quando viam que os acontecimentos não eram fruto de um mero acaso, mas consequências de muitos processos subjetivos e sociais que interferiam diretamente em nossas vidas. Em algum momento a internet me colocou como influenciadora, e acho que isso se deu em função de todos esses anos de investigação e intervenção sobre os fenômenos sociais por uma perspectiva feminista e psicanalítica. Hoje eu estou aqui, psicanalista, feminista, professora em uma escola para mulheres com mais de 12 mil alunas, com o compromisso de despertar mulheres, abrir os olhos e mostrar que por trás do que a gente vê, existe muito mais”.
Por todas
As mulheres ainda são constantemente desacreditadas e desrespeitadas nos espaços que ocupam ou que tentam ocupar. Em sua escuta nas redes, e como psicanalista, quais são as principais queixas? “Diria que se resumem em dois pilares: um externo e um interno. O externo é a percepção cotidiana da violência de gênero. Sentimos essa violência dentro de casa, em comentários invasivos sobre o nosso corpo e nossas escolhas, no limite da violência doméstica e sexual; na rua e no trabalho a partir dos assédios a que somos submetidas. E no aspecto interno, é a insegurança feminina, o auto boicote e a autossabotagem. A gente sofre tantas violências no caminho que acaba introjetando-as em nós, e fica um sentimento de que somos incapazes de sermos donas do nosso destino e das nossas escolhas”.
Durante a pandemia, Manuela colocou em prática o projeto voluntário ‘Escuta Ética’ para auxílio de mulheres violentadas que, durante o cenário pandêmico, ficaram mais expostas e suscetíveis a agressões com o isolamento social. “Sigo à frente do ‘Escuta Ética’, dando supervisão dos casos e acompanhando os encaminhamentos. O que essas histórias tem em comum é que são mulheres violentadas nos espaços em que deveriam ser amadas: nos relacionamentos e na família. Isso suscita a discussão que eu levo muito a sério na internet sobre relacionamentos abusivos. Um relacionamento abusivo tem uma consequência psíquica e social gravíssima. Pode chegar ao feminicídio e levar a danos psicológicos profundos. A partir dos casos, levei ainda mais a sério essa pauta, e passei a me debruçar mais sobre a responsabilidade coletiva da sociedade para com essas mulheres”.
Artigos relacionados