*Por João Ker
Depois de uma tímida (mas bem sucedida) temporada em Portugal, a peça “Retratos Falantes” chega a São Paulo, mais especificamente ao teatro de arena da Pontifícia Universidade Católica. Realizada pelo Grupo Tapa, o texto de Alan Bennett é adaptado em dois monólogos estrelados por Brian Penido (“Fritas no Açúcar”) e Zécarlos Machado (“Brincando com Sanduíches”), que dão vida a personagens corriqueiros, mas que, analisados sob uma ótica mais profunda, apresentam camadas psicológicas mais complexas do que certos estudos de Sigmund Freud.
Originalmente, tais monólogos foram desenvolvidos para o canal britânico BBC, até que o próprio autor resolveu adaptá-los para o palco, ganhando grande repercussão. “Esses textos caíram em nossas mãos e nós os achamos provocantes: para o ator e para o público que o assiste”, explica por telefone Zécarlos Machado, que também interpreta o psicanalista Theo, da série “Sessão de Terapia”, sucesso do GNT. “Esses personagens que apresentamos são pessoas comuns, que poderiam estar ao nosso lado sem que soubéssemos – um parente, um comerciante ou um síndico, por exemplo. Mas, de repente, eles apresentam comportamentos patológicos que nos deixam perplexos, obrigando-nos a investigar a alma humana, que é cheia de determinados desequilíbrios”, comenta o ator.
Em “Brincando com Sanduíches”, Zécarlos dá vida a Will, um pacato e solitário personagem (apesar de casado e com filhos) que, à primeira vista, parece inofensivo e um tanto quanto melancólico. Mas, à medida que o público é convidado a entrar em sua psiquê complexa, traumas vão se abrindo e se revelando como camadas de uma cebola que guarda sua parte mais ácida no íntimo. O homem de meia-idade vai, aos poucos, manifestando patologias e perversões sexuais desconcertantes e constrangedoras que prometem pegar a plateia de surpresa. “Ele tem uma personalidade oculta, com certas compulsões que o levam a ações escabrosas”, vai explicando o intérprete, fascinado pelo seu “eu” performático. “Mesmo quando está com a esposa, ele apresenta um tipo de comportamento muito duvidoso que se torna um perigo tanto para ele quanto para os que estão à sua volta”.
O tema principal do universo psicológico desse personagem – e seu maior tormento – é um tabu em praticamente todas as culturas ocidentais. Sua nomenclatura específica se restringe àqueles que assistirem ao espetáculo, mas basta dizer que é algo estigmado e julgado de antemão pela sociedade. Algo raramente discutido por um viés humano e que provoca repulsa que beira a aversão física dos espectadores. “Sim, o tema é tabu e, mesmo sendo tratado de forma ocasionalmente risível e com humor, provoca a repulsa e a rejeição”, comenta Zécarlos. “É uma situação delicada. Quando começamos a investigar o texto, eu tive um pouco de resistência porque ele apresenta questões que já estamos preparados para repudiar. Por outro lado, a alma e o comportamento desse personagem têm um sentido trágico e complexidades que nós gostamos de explorar. Elas reproduzem um desequilíbrio político, social e econômico que, mesmo encoberto, está a nossa volta e é latente. Há também um grande fascínio e impacto teatral, uma densidade dramática que chega a ser uma lição de linguagem cênica”.
A existência de um personagem como Will apresenta essa espécie de função social que transcende os palcos e arenas do teatro. Apesar de seus desequilíbrios e seu trauma psicológico, ele abre espaço para um debate que não poderia chegar em um momento mais oportuno para o Brasil, quando justiceiros civis mostram-se prontos para julgar, condenar e atacar qualquer pessoa que ameace infringir as regras comportamentais vigentes. “Nós temos notado que esse tema é muito mais próximo e comum do que imaginamos. É muito delicado e está sempre debaixo do pano, mas, com esse trabalho, nós conseguimos atingir uma linha tênue e delicada de compreensão para essas almas. Abrimos a possibilidade de discutir essa questão e debater como o entorno e a sociedade lidam com isso de forma primária, quase infantil. É algo que nos remete a pensar até sobre a jurisprudência e como ela está sempre disposta a matar e queimar esse tipo de doente”, frisa o ator.
O viés psicológico de Will tem causado fascínio também entre o meio acadêmico, de onde psiquiatras e psicólogos vêm surgindo aos montes para assistir aos ensaios do espetáculo e fazer uma análise de caso do personagem. “Ele apresenta uma patologia e camadas estruturais do ser humano que são um prato cheio para os estudos da psicanálise”, confirma Zécarlos, ele próprio acostumado a viver o “outro lado da análise”. E será que Theo, o terapeuta vivido por ele na série de TV “Sessão de Terapia”, conseguiria dar jeito nos traumas de Will? “É, lá [no GNT] eu atendo as pessoas, e aqui é um personagem que precisa ser atendido, precisa de um cuidado terapêutico. Com certeza, ele estaria no divã”, diverte-se o ator, provavelmente imaginando o encontro entre suas duas personas. “Na verdade, ele é um ser humano que já deveria estar passando por esse acompanhamento há muito tempo”, conclui.
“Retratos Falantes” fica em São Paulo até o final de junho e depois desembarca no Rio de Janeiro para uma temporada de agosto a setembro no SESC Copacabana. E, assim como em Portugal e na capital paulista, há um debate após o espetáculo, onde público e equipe discutem questões intrínsecas aos personagens de Zécarlos e Brian. “A partir dessas conversas, surge um novo olhar, uma nova perspectiva sobre o assunto. Muitas pessoas já me pararam na porta do teatro para desabafar comigo – tanto vítimas como algozes; muita gente teve essa necessidade de conversar sobre o trauma. Até porque quem inflige esse tipo de sofrimento é porque já passou por ele em alguma etapa da vida. É como uma terapia, em alguns aspectos. Algo que a pessoa precisa colocar para fora”, diz o ator que, para o bem ou para o mal, parece ter incorporado involuntariamente o caráter do terapeuta que vive na tevê.
Pra quem não tiver a oportunidade de ver a peça, Zécarlos volta à televisão em agosto, com a estreia da 3ª temporada de “Sessão de Terapia”, dirigida por Selton Mello. “Nós gravamos com o maior carinho e estamos um pouco ansioso com essa nova fornada de episódios porque são os primeiros não-adaptados e completamente desenvolvidos aqui no Brasil. A [roteirista] Jaqueline Vargas fez um ótimo trabalho”, comenta o ator. Mas ainda assim, ele frisa a importância e o impacto do seu atual papel no teatro, e comemora: “em um mundo muito acomodado, amorfo e estarrecido, é uma vitória quando a plateia não fica inerte na cadeira”.
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