Pedagoga, Ana Claudia Silva fala sobre criação de papelaria inclusiva: “Era lacuna de mercado. Falha no sistema”


A Afra surgiu de uma necessidade por um mercado mais inclusivo: “Sei a tristeza e a falta de incentivo encorajamento causados pela ausência de representatividade, isso em todo e qualquer setor da sociedade”, diz

*Por Karina Kuperman
“Sempre tive consciência racial sobre a mulher preta que sou e isso me inspirou a querer fazer a diferença no mercado”, explica Ana Claudia Silva, pedagoga por formação, empreendedora paulistana e criadora da marca Afra, um espaço de moda voltado a estudantes e profissionais em diferentes segmentos. A ideia é trazer ao mercado da papelaria produtos com foco na diversidade étnica e inclusão racial de crianças e adolescentes no ambiente escolar. “A marca começou de uma necessidade pessoal de me reencontrar profissionalmente. Mas a principal causa foi a minha percepção da lacuna de produtos afros voltados à educação. No início, toda operação da empresa acontecia dentro da minha casa, onde eu armazenava produtos que seriam vendidos nos eventos. Tudo era amador, manual e caseiro e eu contava com a ajuda do meu marido, pai, irmãos e até dos meus filhos para produzir um a um dos cadernos da Papelaria Étnico Inclusiva, que, na época, eram personalizados. Perceber a expansão, melhoria na qualidade e estrutura que conseguimos neste pouco mais de um ano alegra demais a todos os envolvidos neste processo, porque sabemos o quanto de trabalho esteve e está envolvido nos projetos da Afra”, comemora.

Ana Claudia Silva é pedagoga e empreendedora (Foto: Divulgação)

Além de papelaria, a Afra é um espaço de moda que disponibiliza bolsas funcionais e vestuário profissional, confeccionados pensando na rotina de trabalho de profissionais de educação, saúde, administradores e outros. “Depois de muita pesquisa, em setembro de 2018, criei a minha marca, onde ofereço tanto linha de vestuário profissional voltado principalmente para professores, como uma linha de papelaria que trabalha a diversidade. Sempre achei péssimo os meus filhos não acharem um caderno ou uma mochila, por exemplo, que não tivesse qualquer referência com os traços negros deles. Então, resolvi criar”, diz.

Ana Claudia acrescenta que “isso era uma falha no sistema. Como professora, docente formada com 13 anos de profissão, negra, sei a tristeza e a falta de incentivo encorajamento causados pela ausência de representatividade. Isso em todo e qualquer setor da sociedade. Focando no ramo de papelaria, de matérias gráficos, as redes de armarinhos e papelarias não colocam à disposição dos clientes produtos que exaltem a diversidade racial do país. Era como se todas as crianças,adolescentes e jovens tivessem o mesmo gosto por bonecas, princesas ou personagens loiras, morenas ou ruivas, com pele clara, cabelo longo, quase sempre com a mesma textura lisa. Já para os meninos, o perfil contemplava sempre os mesmos personagens que estavam e alta nos desenhos da TV, também nunca negros”, analisa.

Cadernos da Afra (Foto: Divulgação)

“Me recordo como se fosse hoje, minha indignação no ano de 2018, quando fui comprar os materiais da lista do meu filho e queria que fossem cadernos com capa do Pantera Negra, filme que foi lançado naquele ano – com recordes de bilheteria, e, para minha surpresa, não achei nenhuma capa. No ano seguinte, até achei, porém ao invés de ter capas do TChalla, do M’Baco do Killmonger, das Doramilages, achei uma capa, com o Pantera Negra, somente. Para minha filha que tem o cabelo crespo, gosta de usar tranças, tem a pele escura, piorou! Tinha que comprar o caderno e personalizar em casa. As gráficas, a mídia e a sociedade nos tornam invisíveis e nos querem invisíveis! Isso impacta diretamente na nossa auto estima, que mexe na nossa identidade, recai na nossa autoafirmação e perpétua o mito da igualdade racial no país. O sistema não nos quer emancipar”, ressalta.

“É muito gratificante uma criança abraçar o caderno ou a agenda e não querer soltar mais. É lindo vê-los decifrando as adinkras (símbolos africanos da Cultura Ashanti) que colocamos para personalizar as páginas. Já vivenciamos e formamos muitos laços de amizade com clientes porque os produtos da Afra trazem a tona esse apelo ancestral por reconhecimento. Há um mercado enorme onde ainda precisamos chegar, mas uma coisa é certa: aonde ele for, o impacto ao povo negro será sempre o de que ‘finalmente alguém pensou nas crianças pretas nas escolas'”, acredita.

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Mas quem pensa que a Afra é apenas produtos, se engana: “O projeto da Afra é iniciar na infância o trabalho com a identidade, com a autoafirmação. Quando pensamos na ‘Papelaria Étnica’ vimos a oportunidade de fazer acontecer um movimento de base, que facilite inclusive o trabalho com a Lei 10. 639/03. Atualmente, nos eventos que a Afra participa realizando a venda dos produtos, procuramos inclusive realizar oficinas de histórias de literatura africana e afrobrasileira. Isso já com o intuito de conscientização racial, representatividade e empoderamento racial das crianças negras, tal como a consciência da equidade racial e do combate ao preconceito para crianças de outras etnias e raças”, diz ela, que iniciou o projeto após um período depressivo. “Eu demorei para aceitar meu problema de saúde. No início, eu pensei que era vulnerabilidade minha, me cobrava para ser mais forte, me comparava as outras pessoas. Enfim, estava doente, porém me sabotava por não ver sangue, fratura ou corte. Esse é o mal da depressão, ansiedade e tantos outras doenças psicológicas ou psicossomáticas. Não posso dizer ao certo o que me adoeceu, vários fatores foram levantados ao longo desse tempo de terapia, mas uma coisa é certa: eu sabia que só sairia dessa se eu desse um tempo em tudo que me transtornava e assim fiz”, conta.

“Temos uma sociedade imediatista, controladora e hipocritamente moralista e ceder a essas imposições sociais é o que adoece qualquer ser humano ao ponto da loucura e morte. Meu conselho para quem passa por isso é: se permita dar um tempo e focar nas suas necessidades, se abra, se descubra, se refaça. Olhe menos em volta e se volte para suas origens, história e princípios”.