*Por Brunna Condini
A pandemia do novo coronavírus alterou a ordem mundial. E para os que já enfrentavam obstáculos na questão de acessibilidade, a rotina está ainda mais assustadora. Imaginem atravessar esse período com dificuldades no acesso à informação? Ou à cultura e o entretenimento? Ou ainda, imagine que você possui algum tipo de deficiência, como a visual, por exemplo, em que o contato físico é essencial? Imaginou? Agora pense que no cenário atual existem poucos olhares voltados para o tema, o que torna a questão da acessibilidade ainda mais frágil em tempos de pandemia.
É por isso, que para comemorar o Dia Nacional do Teatro Acessível, a Escola de Gente, fundada pela jornalista Claudia Werneck e referência internacional em inclusão, vai revolucionar mais uma vez, e apresenta neste sábado (19), às 17h, por meio do canal da ONG no Youtube, o primeiro espetáculo inteiramente acessível da história, em plena pandemia da Covid-19. Com apoio do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o grupo de teatro “Os Inclusos e os Sisos”, criado por Tatá Werneck em 2003, vai encenar a peça “Ninguém Mais Vai Ser Bonzinho”, baseada em livro de Claudia, com três recursos de acessibilidade simultaneamente – Libras, audiodescrição e legendas. “Tem a tragédia da pandemia com todas as questões, políticas, sociais. E tem uma tragédia à parte, da exclusão das pessoas que tem deficiência, e também dos idosos, de pessoas a que uma acessibilidade maior é negada. Do dia para a noite elas passaram a viver uma exclusão galopante. Ficaram de fora. Sobre esse bloqueio de informação, entretenimento, ninguém dá atenção, os governos não estão nem aí, existem cada vez menos recursos para a acessibilidade. É uma tragédia que você não consegue denunciar”, lamenta Claudia.
A jornalista e ativista destaca que a ONG vai utilizar uma solução criada por ela mesma, e que será aplicada ao teatro de forma inédita, na transmissão. “O nosso maior legado no pós-Covid é a opção pela cultura acessível plena também no online. Tudo para garantir que pessoas com deficiência, idosas, com baixo letramento, entre outras, possam navegar no fluxo do entretenimento virtual sem restrições. É o que vamos oferecer na celebração do Dia Nacional do Teatro Acessível. E como as plataformas não estão preparadas para oferecer Libras, audiodescrição e legendas simultaneamente, a solução foi criar uma ‘gambiarra tecnológica’ própria, que foi um sucesso nas nossas lives – as primeiras acessíveis da internet brasileira – e agora será testada para espetáculos teatrais também”, conta.
Claudia esclarece ainda, que a solução para realizar o espetáculo acessível online, que ela chama de ‘gambiarra’, é a articulação de plataformas e softwares gratuitos ou baratos que permitem que as transmissões tenham, ao mesmo tempo, língua de sinais, legenda ao vivo e audiodescrição. “Juntamos forças e fizemos, estamos levantando essa bandeira de denúncia, esperança. Espero que as pessoas se deem conta, que não oferecer acessibilidade virtual, neste momento mais do que nunca, é criminoso. Sonho que a pandemia possa deixar esse legado. Minha preocupação sempre é a seguinte: o que eu posso fazer em um mundo onde tem tanta gente fazendo coisa boa? Inclusão é você acreditar que se o outro não está bem, você também não está, todos os outros grupos não estão”.
Quando a ‘chama’ encontra a força
A companhia fundada pela filha Tatá, quando ainda estudava teatro na UNIRIO, já foi assistida nos últimos 17 anos por mais de 100 mil pessoas nas cinco regiões do Brasil em apresentações sempre gratuitas. “Fico tensa agora como ficava há anos, quando fizemos nosso primeiro espetáculo acessível. E sábado vamos juntar tecnologia, texto novo, piada com humor na pandemia, seis atores fazendo teatro sem estarem juntos. Mas a inovação é isso, o que sai do controle. Estamos criando na pandemia uma tecnologia social, e ao mesmo tempo, uma tecnologia assistiva. Quando você aumenta a acessibilidade, aumenta a possibilidade de a pessoa ficar viva. Imagine como as pessoas com deficiência, puderam se proteger desde o início, com a velocidade de informações chegando, mas que não eram totalmente acessíveis para elas?”.
Aos 62 anos, Claudia lembra o começo do trajeto na comunicação acessível. “Não paro de pensar nas soluções em nenhum momento da vida. Isso é uma chama. É como se tivessem acendido uma chama em mim em 1991, quando fiz uma reportagem para Revista Pais&Filhos sobre Síndrome de Down. Depois disso, mergulhei, escrevi o primeiro livro sobre o tema no Brasil, o “Muito Prazer, eu existo“, e comecei a trabalhar com inclusão. Tive muitos momentos em que fiquei exausta. Depois criei a Escola de Gente. Tudo que eu falo, trabalho na expansão do acesso, já tem 30 anos. Se você pegar o meu primeiro livro, já estava lá. Só se tornou mais forte, abrangente. Então, a chama pode até diminuir, mas não apaga (risos). Me sinto menos cansada hoje do que há anos atrás, a ONG me dá tesão, é uma equipe pequena, mas muito sensível à causa, não deixa nada para trás”.
Quando pensa em legado, ela menciona a criação dos filhos Tatá e Diego. “Criei meus filhos para ouvirem muito, olhar para o outro. Porque quando você escuta verdadeiramente, fica livre para ousar. Então, acho que o meu legado é de aprimoramento constante. Isso causa liberdade, coragem”, analisa. “Meus filhos sempre praticaram a inclusão no dia a dia. E minha neta (Clara Maria), também será assim, é natural. Isso é uma musculatura. Praticar a inclusão, querer uma sociedade assim, é um caminho sem fim. E através dele, você também passa a se conhecer melhor. A Talita (Tata) diz que antes de eu criar a Escola de Gente, treinei com os filhos, para ver se daria certo (risos). Tanto, que quando ela criou o grupo “Os Inclusos e os Sisos”, tinha acabado de entrar para a faculdade, e teve a ideia de juntar os amigos, foi ainda no primeiro período. Ela só teve essa iniciativa, porque já tinha isso dentro dela. Tata viajou muito com eles, e ficou no grupo até antes de entrar para a TV Globo. Depois ficou muita coisa. Mas ela acompanha até hoje. Acho que legado é isso. Ainda acredito muito que a sociedade se torne acessível para todos. E sonho que isso seja automático, que todos tenham a consciência, de que não oferecer acessibilidade ampla, é excluir alguém do direito à vida”.
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