*Por Brunna Condini
Aos 56 anos, Gorete Milagres contabiliza quase 30 de carreira, principalmente na função de fazer as pessoas rirem. Famosa por sua principal personagem, a Filomena, carinhosamente chamada pelo público de Filó, a atriz vem se vestindo de coragem para falar sobre um assunto sério e infelizmente corriqueiro em nossa sociedade, mas que ainda bem, tem ‘saído do armário’: o abuso.
Foram anos de silêncio, mas agora Gorete sentiu necessidade de falar. E nesta entrevista exclusiva ao site, ela fala sobre abusos emocionais e físicos, de boicotes profissionais e assédios morais, que ela percebe como dificultadores da sua ascensão na carreira. A artista desabafa e almeja que o relato possa ajudar outras mulheres que estejam passando por qualquer tipo de violência.
Na TV aberta, Filó ficou conhecida a partir de 1996 quando era a protagonista de um quadro no humorístico ‘A Praça é Nossa’, no SBT. Depois, a personagem ganhou até programa próprio, o ‘Ô Coitado’, que durou um ano. Gorete interpretou Filomena até 2005 e tem ótimas lembranças, mas muitas recordações ruins também. Que tipos de abusos sofreu no ambiente de trabalho? “Chegar na TV e ser logo campeã de audiência, não foi fácil. Fui disputada pelas duas maiores emissoras do país. O que me trouxe muitas alegrias, mas isto não teve o mesmo reflexo para alguns colegas de televisão, infelizmente! Sofri todo tipo de abuso: boicotes, como notícias falsas plantadas, telefonemas agressivos ameaçadores e até chantagens com a emissora para tirar o meu programa do ar”, recorda.
“O Silvio Santos gostou muito do meu trabalho, mas para muitos eu não tinha cacife para ser tão admirada pelo público e pelo ‘patrão’. Conquistei a confiança tendo o melhor ibope. O humor do SBT se movimentou com a minha chegada. A emissora no auge desse momento teve três programas de humor e sucesso na sua grade de programação. Mas o ego, a vaidade e o mau-caratismo de alguns não permitiu que este sucesso continuasse, infelizmente. Fui vítima de um levante machista! E foi muito sério”.
Como aconteceu esse boicote? “Um barão do humor que não suporta ser contrariado com ibope alheio se achava dono da ‘capitania hereditária do humor’ e me boicotou”, afirma. “Recebi duas ameaças graves. Uma pouco antes do meu programa ser banido da grade da emissora. Eu morava na Aldeia da Serra, em São Paulo, e cortava caminho por uma estradinha de terra. Um dia, recebi um fax dizendo que não era para eu fazer o caminho de sempre pois tinha uma emboscada para mim. O número do fax foi de um posto de gasolina e um motoqueiro de capacete pediu para passar um fax. Naquela época o posto não tinha câmeras. Não fizemos alarde. Tive muito medo e passei a ir pela Via Castelo Branco. A outra ameaça, foi em 2016, quando a convite dos queridíssimos Moacyr Franco e o Guto Franco e com aval do Silvio, fomos gravar um piloto para um possível retorno do programa “ Ô Coitado” no SBT”.
E Gorete continua: “Na hora da gravação percebi um movimento estranho e de repente me foi apresentado um segurança e me disseram que ele ficaria o tempo todo comigo. Eu questionei, pois nunca tive segurança na emissora. E fiquei sabendo que o tal ‘sinhozinho’, pessoa que sempre tive enorme gratidão, quando ficou sabendo que eu e Moacyr estávamos gravando um piloto, quebrou o próprio camarim e num chilique que lhe era particular, disse que ia me “pegar” … de cada boca eu ouvi uma expressão pior do que ele teria dito. Resultado: o piloto não foi aprovado sob ameaças de auto demissão do mesmo. Foi isto que fiquei sabendo ali naquele momento e fui tomada por uma enorme tristeza, decepção e medo. Desde então, esta pessoa não me poupa nos comentários sórdidos, me chama de traíra, vai em programas sensacionalistas falar absurdos e mentiras, e logo de mim que nunca lhe fiz mal algum, muito pelo contrário, fui um dos maiores sucessos do seu programa, e apesar disso tudo tenho gratidão por ele. Nada disso tem um motivo explicável a não ser a forma antiga e retrógrada do poder, onde só um pode reinar. O denomino como ‘capitão hereditário do humor’! Triste realidade e atualmente as vítimas são muitos bons humoristas, que do nada se veem sem seu emprego e outros com salários de fome para simplesmente valorizar o nepotismo”.
Gorete garante que as sequelas do que viveu não desapareceram com os anos passados: “Me considero uma mulher forte, mas tive síndrome do pânico, já superada, e quando os ataques desta pessoa que já me quis tão bem e tão mal aparecem novamente, eu tenho que redobrar as sessões de terapia, que atualmente faço com uma especialista em violência. O que sinto? Indignação! Este senhor atrasou anos da minha vida. É frustrante pensar que deixei de fazer carreira na maior emissora do país para permanecer onde eu me projetei e simplesmente fui descartada com um ótimo ibope. Às vezes, penso que meu programa podia estar na vigésima temporada”.
O que aprendeu com tudo o que viveu? “Que o meu talento e a minha garra não foram prejudicados. Quando saí da emissora que me prometeu carreira longa, fui de cara agraciada com belos trabalhos onde pude mostrar o meu talento e acabar com estigma de ‘atriz complicada’, que as calúnias me tacharam. Muito comum acontecer com mulheres. O primeiro presente foi o filme com o grande ator Matheus Nachtergaele, o longa ‘Tapete Vermelho’, um clássico do cinema nacional. Ganhei prêmios, fui contratada pela Record e fiz novelas. Também fiz a série ‘Pedro & Bianca’, na TV Cultura e ganhamos um Emmy. Fiz ‘Trair e Coçar’ no Multishow, participei de outras séries, longas e fiz uma participação na ‘Malhação – Vidas Brasileiras’, na TV Globo. A cada personagem criado a minha entrega é total. A minha carreira andou em um ritmo mais lento, eu fui muito prejudicada, mas não desisti, sobrevivi e não precisei provar nada para ninguém. Chego, faço o meu trabalho com devoção, sou eu mesma e o que eu mais ouço é: “que bom trabalhar com você, você não é nada daquilo que eu já ouvi”. Daí sinto o peso do passado e aprendi a simplesmente seguir com a garra de sempre. Consegui sobreviver pois fiz um ‘pé de meia’ e sempre tive meus negócios paralelos. Além disso, continuo sempre me colocando no lugar do outro! Diferente de muitas pessoas com quem trabalhei que só enxergam o seu próprio umbigo”.
Abuso
Você também relatou abusos sofridos em relações pessoais. Isso tudo é muito sério e assuntos como esse só têm sido tirados do ‘armário’ recentemente. A opressão que sofreu chegou a te fazer parar de acreditar em você? “Todos os abusos que sofri foram decorrentes do machismo. Não é fácil ser mulher, fora do padrão de beleza imposto pela sociedade, ser comediante, independente, provedora, dona de casa, boa mãe, fazer sucesso, ser querida por muitos… a maioria dos homens não dão conta de mulheres com este perfil, infelizmente! Tirei estes abusos do armário somente agora, pois sempre fui muito reservada na minha vida pessoal. Imagina se eu tivesse falado nisto naquele passado onde fui caluniada. Iam dar razões para os meus abusadores. O momento foi este, quando depois de anos de terapia senti que o melhor remédio era tirar este nó da minha garganta”, revela.
“Tive momentos de muita tristeza, sim, nos intervalos de um trabalho para outro me dediquei a criação das filhas, as amizades, à alegria de viver, nos encontros festivos com amigos, viagens, e nunca desisti do que eu mais acredito que é atuar, a minha maior realização. Então, quando não tinha convites para atuar no palco com outros personagens, continuava com Filó no palco e neste período produzi cinco solos no teatro para ela, que até hoje me rende frutos, inclusive na publicidade. Parar de acreditar em mim? Jamais!”.
O que te fortaleceu? O que te fez dar um basta para as relações pessoais tóxicas que viveu? “O que me fortaleceu sempre foi o amor! Foi a presença de pessoas que amo e do público que é eterno admirador e amante do meu trabalho. E também o dom que eu tenho de transformar meus dramas em comédias”, analisa. “Eu, infelizmente, fui uma pessoa muito tolerante. E acho que esta tolerância é uma herança. Sou tataraneta, bisneta, filha de casais de casamentos duradouros. Meus pais quase completaram 70 anos de casados. As mulheres toleravam tudo de errado imposto pelos homens e nunca tinham a chance de separação. Minha mãe foi tolerante e dizia que não se separou, pois separação não era usual. Mas não criou nenhuma das filhas para o casamento. Eu antes de me casar, me apaixonei pelos homens, as paixões viraram amor, planos, futuro … até que a identificação do machismo estrutural fazia tudo descer ladeira abaixo. Mas a tolerância abria sempre espaço para aceitar os pedidos de desculpas, pedidos das filhas, o hábito e conforto do amor, mas o basta de todas as relações tóxicas, foi a violência . Violência não tem perdão! Nunca! Ela deixa marcas eternas! A mulher que aceita violência ela será sempre será vítima da violência e nunca feliz!”.
Conversa com suas filhas (a atriz Alice Milagres, de 25 anos, e Maria Milagres, 19) sobre isso tudo? O que faz questão de passar para elas sobre a condição de existir mulher neste mundo? “Infelizmente as minhas filhas foram vítimas diretas e indiretamente das violências vividas nos meus dois ex- casamentos. Elas fazem terapia desde pequenas e atualmente fazemos uma terapia de família com uma terapeuta especializada em violência. Eu aprendo muito com as minhas filhas e no momento estamos juntas desenrolando uma fiada de um novelo emaranhado de consequências e danos causados pela violência vinda da nossa vida pessoal e da minha profissional. É dolorido e necessário. Elas são fortes, são incríveis, talentosas e esta carga toda lhes fazem ter consciência do peso e da medida, da tolerância e dos abusos. O que venho passando para elas é que a herança e repetição familiar é algo que deverá ser cortado e que a violência deverá ser banida e jamais ser normatizada”.
Inspirada por mulheres incríveis
Nascida em Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais, a atriz mora em São Paulo com as filhas, e apesar de viver há mais de 20 anos na capital paulista, está de mudança marcada para Minas Gerais, terra que inspirou suas maiores criações, como a Filó, que completa 26 anos. “A inspiração para criar a Filomena foram as mulheres incríveis, simples, guerreiras, pobres e felizes que encontrei no decorrer da vida. Todas do interior de Minas, nas fazendas onde fui criada e nas pequenas cidades em que as conheci. Muitas delas foram as empregadas domésticas dos meus avós, tios, pais. Pessoas maravilhosas que fizeram parte da minha vida e que tenho afeto e com muitas tenho contato até hoje. A simplicidade é que me rege”. E completa: “Depois destes anos, a Filó continua simples, perspicaz e nem tão ingênua como no começo. Ela se alfabetizou, evoluiu e se inteirou com os fatos da atualidade, se informa antes de discutir qualquer assunto e tem a sua opinião formada sobre tudo. Continua virgem, é feminista e acha que não vale a pena se entregar para um homem qualquer. Entregou pra Deus! Continua com fé, é católica, mas respeita todas religiões e orientações sexuais”.
Você estava em turnê com o monólogo ‘Filomena 25 de peleja’ e só parou com a pandemia. E acabou levando a Filó mais intensamente para as redes sociais durante o isolamento, com um quadro de receitas culinárias e também manifestações e alertas sobre o meio ambiente, saúde, numa mistura de humor consciente e posicionamentos. Como tem sido e por que escolheu esse formato? “A pandemia veio para nos ensinar e transformar. Este período de quarentena com as filhas em casa tem sido produtivo, intenso e transformador. Sendo assim, dividimos as tarefas e eu virei a cozinheira da casa, então resolvi gravar os vídeos das receitas. Além disso, sempre fiz questão de me posicionar. Meus programas sempre tiveram uma mensagem educativa. Conscientizar pessoas é um dever dos artistas e influenciadores. Por isso, além de ensinar a cozinhar, quis também dar dicas de alimentação saudável e alguns toques que eu acho primordiais nos dias de hoje. Tenho curtido bastante e o retorno é saber que incentivei pessoas a cozinhar com leveza e amor, tendo a consciência da importância do consumo de alimentos saudáveis sobretudo livre dos venenos, nesta quarentena. Me aproximei muito do público que na maioria me pede para voltar para a TV. Estou em busca de apoiadores para quem sabe fazer das receitas uma possibilidade de uma nova forma do meu ganha pão”.
Gostaria de voltar para a TV com um programa assim? Uma espécie de ‘Filó dá seu recado’? Usando humor para falar de temas importantes, dando receitas, dicas? “Sim. Um espaço na TV é o meu sonho de consumo atual. É o que o meu público está mais pedindo nos comentários das redes sociais. Um programa de receitas com liberdade de fala, seria o ideal. Mas meus fãs pedem uma 4ª temporada, da série “Ô Coitado” e não serial nada mal! Hoje os meus maiores seguidores são os fãs, que eram crianças no passado, agora jovens e também o púbico de todas idades. Meu público do teatro continua de 0 a 101 anos! Verdade tenho uma fã que acabou de fazer 101”.
O que ninguém sabe ainda sobre a Gorete Milagres e gostaria de dizer hoje? “Que tenho muitos sonhos a realizar e alguns estão bem próximos, como construir uma casa em uma das montanhas mais lindas de Minas Gerais, na Serra do Cipó , na Lapinha da Serra. E outra casa em Jericoacoara, no Ceará. Todas duas serão casas de aluguel, onde passarei temporadas nas lacunas de trabalho. Também não sabem que sou roteirista com graduação universitária. E que desejo aprender a surfar, a falar outras línguas. E que estou me preparando para viver numa mala com o mínimo possível para sobreviver com muita dança e a minha alegria de viver! E que não vou abandonar o sonho de fazer novos trabalhos na TV Globo e que o único arrependimento que carrego na vida foi não ter ido para lá no passado, no segundo convite para retorno. Errar é humano!”.
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