“Nos contaram mentiras para apagar nossa história! É hora de desconstrução”, diz Juliana Alves sobre racismo


A atriz conversou com a produtora cultural Clarisse Miranda, integrante do coletivo Resenha das Pretas, com o tema ‘Mulher Preta Encena’. Em pauta: representatividade, colorismo, preconceito, racismo e atuação. “Durante muito tempo os cabelos com cachos redondos foi aceito, o crespo, não. Muito do racismo que se vive no Brasil vem por conta do nosso cabelo. Quando estou de black percebo isso mais nítido”

Juliana Alves conversou com a produtora cultural Clarisse Miranda, integrante do coletivo Resenha das Pretas

*Por Rafael Moura

O poema da grande Conceição Evaristo, ‘A noite não adormece nos olhos das mulheres’, traduz muito a conversa que a produtora cultural Clarisse Miranda, integrante do coletivo Resenha das Pretas e a atriz Juliana Alves tiveram durante uma live no Instagram.

‘A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória’…

Uma conversa com páginas recheada de lembranças, felicidades, transformações e até mágoas. A anfitriã deu o start falando sobre a relação da convidada com o samba. “O samba é vida, família, cultura. Desde que eu me lembro a minha família, por parte de pai, sempre foi muito festiva. Todas as comemorações acabavam em uma grande roda de samba, e o carnaval é uma festa do samba, apesar das pessoas esquecerem isso”, lembra. Juliana foi dançaria no Faustão, musa do Salgueiro e rainha de bateria do Império da Tijuca em 2004. Representou a Mocidade Independente de Padre Miguel, Renascer de Jacarepaguá, Vila Isabel, Pérola Negra, no Carnaval de São Paulo, e rainha de bateria da Unidos da Tijuca.

A produtora cultural Clarisse Miranda e a atriz Juliana Alves em live no Instagram

Segundo Juliana sua ligação com a arte surgiu desde cedo. “Eu nunca verbalizei esse desejo. Eu tinha a perna torta e a minha mãe, com muitas dificuldades nos inscreveu em uma academia de dança. Já a família do meu pai transforma todas as festas em grandes saraus. Tem ainda a dança, da qual eu sempre fui apaixonada, o que me levou por volta dos 18 anos a fazer parte de um grupo profissional e do balé do Faustão, fazendo muita publicidade e TV, mas o meu grande sonho era o palco. Então fui buscar grupos de teatro. Foi quando eu percebi que o nosso país não é muito aberto a pessoas que tem múltiplos talentos. É como se tivéssemos que escolher uma coisa só. E com essa mentalidade, eu acabei escolhendo a dança e não mergulhava muito no teatro, que eu amava”, revela, acrescentando: “Na minha cabeça, eu achava que tinha que escolher e depois que eu percebi que não, e comecei a investir mais na carreira de atriz”.

Por incentivo de sua mãe, Juliana diz que os estudos e as artes sempre andaram de forma paralela. “Minha mãe sempre falou que tínhamos que estudar”. E ela prestou vestibular para serviço social e psicologia. “Quando eu fui pro BBB eu percebi que eu tinha uma porta se abrindo e precisava aproveitar. Eu me apresentei como estudante, porque ainda fazia teatro, balé, serviço social e tinha passado para psicologia. Quando eu percebi que esse caminho podia trazer uma estrutura para a minha vida, aí eu mergulhei”, conta.

Após ser voluntária e agente de saúde do projeto Gincana Aids, na ONG Criola que luta contra o preconceito às mulheres negras, Juliana começou a entender que precisava ‘girar a chave’ e lutar cada vez mais contra essa mal da sociedade e pela valorização da identidade negra, principalmente com os jovens. “Eu lembro que minha sobrinha chegou em casa perguntando por que ela era daquela cor, por que o cabelo dela era daquele jeito. Eu nunca ouvi falar de uma criança branca que questionasse sua origem. A escola é grande responsável pela socialização dos indivíduos. Eu sigo bastante esperançosa pelas iniciativas que estão sendo tomadas, temos uma lei que obriga o ensino de história e cultura afro em escolas de ensino fundamental e médio. Já que as crianças reproduzem valores que absorvem através do que aprendem, porque ninguém nasce racista”, reflete.

Juliana Alves pelas lentes de Daniel Benassi para o site Heloisa Tolipan

Clarisse lembra que Juliana é de uma geração em que existiam poucas referências pretas na televisão, apesar de nomes consagrados como Chica Xavier, Ruth de Souza, Lea Garcia, Milton Gonçalves e Zezé Motta. A atriz fez parte do projeto “Levanta a cabeça – qual a sua história?”, em 2010, que promovia por meio de encontros e debates com artistas, dinâmicas da palavra e da imagem, exibições de vídeos e apresentações musicais nas escolas. A Secretaria de Estado de Educação pretendia motivar o diálogo e a troca de experiências entre os alunos, elevando a autoestima dos jovens da rede pública e contou com as participações de Aparecida Petrowsky, Juliana Alves, Thaís Botelho, André Ramiro, Thiago Martins, Polly Marinho, Washington Rimas, MC Sabrina, DJ Sany Pitbull, Trio Ternura e Marcio Libar.

“Esse projeto foi importante, porque foi uma sementinha do que eu faço até hoje, que é inspirar os jovens negros. Eu segui muito a minha intuição, falei muito da minha emoção. Foi importante para eu me conhecer e para me identificar como potência. Foi lindo perceber que quando a gente fala com a verdade, com o coração a mensagem chega”, se emociona.

Juliana Alves declarou já ter sofrido racismo no início de sua carreira, e hoje em dia lida isso como um obstáculo que precisa ser destruído. “No que diz respeito à igualdade de oportunidades ainda estamos muito atrasados. Ainda cumprimos cotas pré-estabelecidas. Isso significa que ainda precisamos reparar essa injustiça social”. E completa: “A prova de que estamos muito atrasados nessa questão e de que o racismo existe no Brasil é justamente toda essa discussão ainda ser levantada. Vemos menos pessoas exaltando e enchendo a boca ao serem intolerantes, porque hoje o racismo é crime, porque a sociedade está mais flexível em relação aos homossexuais. O Brasil ainda é um país que vela e esconde debaixo do tapete todas essas questões, infelizmente”.

“O Brasil é um país que esconde  seus preconceitos debaixo do tapete”, Juliana Alves (Foto: Prema Surya)

Já como atriz, Juliana fez sua estreia em 2003, em ‘Chocolate com Pimenta’, de Walcyr Carrasco, como a secretária Selma. Para viver a personagem, que era funcionária da Fábrica de Chocolates Bombom, aprendeu noções de confeitaria. Já em ‘Duas Caras’, de Aguinaldo Silva, 2007, viveu a piriguete Gislaine, sendo considerada pela crítica como a grande revelação da novela. Em 2009, Gloria Perez a escalou para interpretar a garçonete Suellen, em ‘Caminho das Índias’. Até que em 2010, Maria Adelaide Amaral, lhe deu um dos maiores presentes de sua carreira, a antagonista Clotilde, em ‘Ti Ti Ti’. “Esse papel representou muita maturidade, versatilidade e uma oportunidade de mostrar que cresci profissionalmente. Foi um presente”, frisa. Na história, Clotilde é uma mulher humilde que chega ao ateliê de Jacques Leclair, personagem de Alexandre Borges, em busca de emprego e é contratada como secretária por Jaqueline, de Cláudia Raia. Dedicada e eficiente, a moça conquista a simpatia de todos, mas esconde sua intenção de conquistar o coração do estilista que, aos poucos, se encanta por ela.

No fim o papo girou em torno do colorismo, um assunto pouco debatido no Brasil, um país super miscigenado no qual os negros apresentam diferentes tons de pele. Essa teoria foi criada nos anos 1980 pela escritora Alice Walker. De acordo com os moldes da estrutura social racista, quanto ‘menos traços negros’ uma pessoa tiver e quanto mais clara for a sua pele, melhor aceita ela será em diversos grupos.

Clarisse pontua que em 2020 não deveríamos estar discutindo quem é mais ou menos negro no Brasil, um país em que 56% da população se declara negro. “O nosso debate deveria ser pelo nossos direitos e políticas públicas”. Juliana revela que vive esse conceito diariamente, pois desde sempre tentaram a embranquecer. “Foi muito importante para as marcas que eu fazia campanha quando pude começar a colocar isso nos textos. Durante muito tempo os cabelos com cachos redondos foi aceito, o crespo, não. Muito do racismo que se vive no Brasil vem por conta do nosso cabelo. Quando estou de black percebo isso mais nítido. Eu trabalho para que as próximas gerações possam ter coragem de assumir sua negritude, ocupar os espaços para acabar com esse racismo violento, que abala o nosso psicológico, identidade e vivências”, enfatiza.

“O colorismo é importante, porque o racismo ele implica nas camadas mais retintas”, Juliana Alves

“Desejo muito que a minha filha, Yolanda, tenha consciência dos seus valores, sua ancestralidade e identidade, porque essa luta também é dela. Eu quero que afeto seja transformador”, conclui.

A produtora Clarisse Miranda pedindo axé para a conexão firmar e conseguir continuar o papo com a atriz