No mês que o país comemora o açaí, uma análise da jornada pelas biorrefinarias e inovações a partir do fruto


O Dia do Açaí foi celebrado em 5 de setembro e resgatamos no Spotify um podcast da série ‘Café com Bioeconomia’, do Portal de Bioeconomia, criado pelo SENAI CETIQT, que analisa a jornada em prol das biorrefinarias do açaí. O consumo é imenso em nosso país e as exportações têm aumentado em números significativos. A maior produção industrial realmente é a base de polpa, mas existe uma infinidade de produtos e subprodutos que têm um alto valor agregado. Além da polpa, o desenvolvimento de biorrefinarias de açaí, aplicando na indústria o que foi desenvolvido em laboratório, permite o uso das sementes e da casca na produção de óleos, cosméticos, biocombustíveis e compostos bioativos. A Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) inaugurou um laboratório para a produção de papel a partir da fibra do caroço do açaí da região amazônica. O café de açaí também tem sido produzido a partir da biomassa. Há ainda no Norte do país, o vinho de açaí, muito semelhante ao de uva, e desenvolvido a partir da fermentação da polpa.

O nosso açaí ganhou o mundo e a importância é tão grande para o social e a economia do Brasil que, em 5 de setembro, foi celebrado o Dia do Açaí. Ele é rico em proteínas, vitaminas, minerais – fortalece os ossos e articulações, além de contribuir com as funções energéticas e cardiovasculares do corpo -, fibras e auxilia na redução do colesterol ruim (LDL) e melhora o colesterol bom (HDL). Seus benefícios são amplos e a maior produção é a base de polpa, mas existem produtos e subprodutos que têm um valor agregado muito grande. Além da polpa, as biorrefinarias de açaí permitem o uso das sementes e da casca, que podem ser transformadas em óleos, biocombustíveis e compostos bioativos. O podcast Café com Bioeconomia reuniu três especialistas para discutir as vastas potencialidades do açaí: André Badaró, CEO da Amazonbai, cooperativa dos produtores agroextrativistas do açaí no arquipélago do Bailique e da região do Beira Amazonas, no Amapá; Fernanda Thimoteo, engenheira química e mestranda do programa BIOCEB da Universidade de Liège, na Bélgica; e Lina Bufalino, professora adjunta do curso de engenharia florestal da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA). A mediação foi conduzida por Fernanda de Souza Cardoso, especialista da plataforma de Inteligência de Negócios do Instituto de Inovação em Biossintéticos e Fibras (ISI), do SENAI CETIQT.

A área colhida de frutos de açaí no Brasil cresceu em torno de 100 mil hectares, saindo de 137 mil hectares em 2015 para 233 mil hectares em 2022, de acordo com os dados mais recentes do IBGE. Tradicionalmente, as exportações de açaí têm se concentrado na forma de purê, com o Brasil destacando-se como líder tanto na produção quanto na exportação do fruto. Em 2023, o comércio de açaí em purê foi equivalente a 79 toneladas. Esse volume representa um aumento de 41% em relação ao ano anterior, 2022, quando foram exportadas 48 toneladas do produto. Os Estados Unidos são os principais importadores.

O açaí, fruto nativo da região amazônica, destaca-se pelo seu elevado potencial, graças ao aproveitamento integral do fruto. Além da polpa, as biorrefinarias de açaí permitem o uso das sementes e da casca, que podem ser transformadas em produtos como óleos, biocombustíveis e compostos bioativos. O CEO da Amazonbai, André Badaró, menciona exemplos dessas inúmeras possibilidades: “Da polpa, podemos produzir açaí em pó de duas maneiras principais: o liofilizado, que preserva as propriedades do fruto, e o spray dryer, utilizado em indústrias de encapsulados, alimentos, energéticos e suplementação. O óleo tem alto valor agregado. O café de açaí também tem sido produzido a partir da biomassa (caroço do açaí), assim como ela também é utilizada em caldeiras tanto no Brasil quanto no exterior. Ela pode ser usada para gerar energia e como combustível em uma usina termelétrica”. André acrescenta ainda que “o biochar de açaí é um excelente adubo, perfeito para o agronegócio (tem potencial de condicionar o solo, sequestrar gases de efeito estufa e melhorar a absorção de nutrientes). E não podemos esquecer do vinho de açaí, muito semelhante ao de uva, produzido a partir da fermentação da polpa. É algo bem disruptivo”.

Amazonbai (Foto: Site www.amazonbai.com.br)

A polpa do açaí representa apenas 15% da massa do fruto, enquanto os 85% restantes correspondem à semente. “Na maioria das vezes, ele é descartado. Eu atuei no laboratório de biocatálise do Instituto Nacional de Tecnologia (INT) e a doutora Ayla Sant’Ana, junto com sua equipe, tem desenvolvido a cerca de sete anos, uma linha de pesquisa voltada para a valorização das sementes de açaí em produtos de alto valor agregado. O primeiro foco foi entender a composição química dessas sementes e de seus componentes e em desenvolver processos, principalmente por rotas biotecnológicas, para valorizar esses diferentes componentes em diferentes bioprodutos. Meu trabalho nesse grupo se concentra principalmente no conceito de biorrefinaria, que envolve transportar o conhecimento sobre a matéria-prima, que no caso é a semente, para um processo industrial: como aplicar o que foi desenvolvido em laboratório na indústria. Eu trabalho com simulação de processos, além de realizar análises econômica e ambiental dessas biorrefinarias”, conta Fernanda Thimoteo, engenheira química e mestranda do programa BIOCEB da Universidade de Liège.

A pesquisa tem sido focada no extrato da semente de açaí, que possui uma atividade antioxidante extremamente alta, superior até mesmo à da polpa. “Conseguimos obter um extrato rico em polifenóis, que são diferentes daqueles presentes na polpa, e que podem ser utilizados em suplementos alimentares, além de serem adicionados como antioxidantes em bebidas e alimentos. Uma outra rota para a valorização das sementes é a produção de manose, um açúcar. Mais da metade da composição da semente é formada por carboidratos, sendo o principal deles a manana, um polissacarídeo. Quando hidrolisamos a manana, obtemos a manose, açúcar bioativo usado no tratamento de infecções do trato urinário. Mas também é um açúcar que tem aplicação em cosméticos (é um agente umectante), que ajuda a amenizar rugas finas do rosto. A gente também pode obter o lipossacarídeo de manose, que são manoses ligadas, até dez unidades de manose ligadas. Essas moléculas, de tamanho intermediário, também têm atividades probióticas muito interessantes e, por isso, já são usadas largamente em ração animal”. É um potencial muito grande de valorizar essa cadeia produtiva e transformar o problema que temos hoje de acúmulo dessas sementes em valor agregado para a cadeia produtiva. Fernanda Thimoteo pontua ainda: “Desde 2015, quando a gente tem dados sobre a produção de açaí extrativista e de plantação, são mais de 1,2 milhão de toneladas de resíduos. No ano passado chegou a 1,9 milhão de toneladas de sementes se acumulando todo ano”.

Professora adjunta do curso de engenharia florestal da Universidade Federal Rural da Amazônia, Lina Bufalino diz que fica “maravilhada” com a busca por agregação de valor ao açaí e revela que tem um grande interesse pela fibra, aquele “pelinho” que encobre o caroço depois que é extraída a polpa. “Fiz meu mestrado e doutorado em ciência e tecnologia da madeira, mas hoje, no meu laboratório, há muito mais açaí do que madeira. Agora, meu grupo está estudando a fibra do caroço do fruto para a produção de papel. Nós já fizemos os primeiros papéis de açaí, mas ainda temos muito trabalho pela frente. A universidade inaugurou o primeiro laboratório de produção de celulose a partir da fibra de caroço do açaí e estamos evoluindo com sucesso. Equipamentos instalados no laboratório possibilitam toda a linha de produção de celulose até a formação do papel”.

Quando a moderadora Fernanda de Souza Cardoso levanta a questão dos desafios para a implementação de projetos que aproveitem os resíduos do açaí, as respostas são diversas. Para Fernanda Thimoteo, o principal desafio no caso dos produtos de alto valor agregado é a necessidade de grandes investimentos: “São processos biotecnológicos que exigem um investimento de capital muito elevado para construir uma biorrefinaria capaz de processar a semente de açaí nesses bioprodutos. Vale destacar que essa barreira precisa ser superada com um conjunto de soluções. Afinal, a produção desses produtos de alto valor agregado não vai utilizar todas as sementes de açaí disponíveis, apenas uma parte delas. Precisamos combinar diferentes tipos de tecnologia para gerar tanto produtos de alto valor quanto de valor mais baixo combinados”.

Acrescenta ainda “que é importante também que a gente desenvolva outras rotas — termoquímicas, de combustão, por exemplo — porque na Região Amazônica ela não está interconectada com a rede nacional. Ainda é uma rede que está muito ligada a geradores a diesel. Se a gente puder substituir o diesel por semente de açaí, que é um resíduo que está disponível de uma forma local seria ótimo. A barreira de investimento tem que ser transposta pelo mix de soluções”.

André Badaró relata que negociou a venda de resíduos de açaí para Portugal, onde o cliente precisava das sementes para uso em caldeiras. “Em paralelo, como estou muito ligado à área de startups e bioeconomia, criamos uma startup para pensar nessas alternativas com os bioativos da Amazônia — e muito foi motivado pelo açaí. A gente tomou a frente para organizar como dar destino aos caroços”. Para o CEO da Amazonbai, o maior desafio é a verticalização da cadeia da biomassa. “Recentemente, comecei a refletir sobre como verticalizar essa cadeia para manter o valor agregado aqui, distribuí-lo ao longo da cadeia produtiva e beneficiar mais as comunidades agroextrativistas, que trabalham intensamente com o cooperativismo, um modelo justo para o lucro colaborativo”, explica.

No laboratório da professora adjunta de Engenharia Florestal da Universidade Federal Rural da Amazônia, o desafio está na quantidade dos resíduos e a gente fez um geoprocessamento, um mapa de quanta energia estocada tem no resíduo de açaí em Belém: “A fibra representa de três a cinco por cento em massa. É pouca fibra de muito resíduo. É preciso coletar, juntar, lavar e secar. Nos primeiros trabalhos, removíamos a fibra com a mão. Mas isso leva tempo, e precisamos de uma quantidade maior. Estamos em um laboratório, imagine se fosse uma indústria em escala intermediária. Se houvesse valor econômico em coletar o açaí, lavá-lo, secá-lo e separar suas partes, poderíamos gerar renda para as pessoas, envolver as comunidades extrativistas e evitar o desperdício. Há cooperativas que têm o resíduo acumulado, mas o problema do desperdício nas cidades é uma realidade. É um desafio significativo”.

Para Fernanda Thimoteo, a concentração da produção no Norte facilita a logística até certo ponto. No entanto, o fato de estar dispersa entre milhares de pequenos produtores representa um grande desafio: “Se queremos atuar nessa cadeia produtiva de forma justa, beneficiando todos os envolvidos, não podemos nos limitar ao caminho mais fácil, que seria obter as sementes de grandes produtores. A solução mais é complexa e exigirá a participação de diferentes atores. Atualmente, temos a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que atribui ao produtor a responsabilidade pelo descarte sobre o próprio produtor. Mas, na prática, isso não acontece. Precisamos de políticas que envolvam o poder público para para fazer essa coleta de forma organizada e levar esses resíduos para as futuras biorrefinarias que vão processar as sementes. Isso vai precisar do envolvimento da sociedade, do apoio do governo e de novas empresas que vão trabalhar no transporte dessas sementes que é complicado, vista a grande dependência de diesel, o transporte por via hidro”.

André Badaró diz que foi desenvolvida uma máquina não industrial para ficar “girando” os caroços de açaí que consegue eliminar uma boa parte das fibras. Esse piloto está no Pará, na região de Castanhal, e estamos trazendo este equipamento para o Amapá para podermos observar. “Em breve a gente vai ter um pouco mais de volume dessas fibras. Inicialmente, não era para essa finalidade, mas a gente pode fazer uma parceria para papel. A ideia de tirar é porque alguns clientes querem comprar o caroço in natura e outros querem processado, sem pelo”, comenta.

Diante de tantos desafios, quais seriam as áreas prioritárias para investir na utilização racional do resíduo do açaí? “Tudo é prioritário”, dispara Lina Bufalino, acrescentando: “Devemos explorar todas as possibilidades e pensar em variações. Nenhuma pesquisa deve ser deixada de lado em favor de outra; todas são importantes nesse contexto. Eu sempre tento vender para os parceiros, para as empresas, os bioprodutos, mas geralmente as empresas querem bioenergia. Biomassa já está valendo muito dinheiro”.

Lina Bufalino revelou que “já extraímos micro sílica do resíduo do açaí. O mundo comercializa sílica, e é sempre casca de arroz. Tem sílica no resíduo do açaí, muito pouco explorada. E MDF? Dá para fazer MDF da fibra, basta alguém investir que dá para fazer. Acho que a diversidade deve explorada”. Segundo ela, são constantes os pedidos para fazer biobag de papel a partir da fibra do caroço do açaí. “Eu digo para terem calma, pois aqui é um laboratório, não uma planta industrial, é tudo protótipo. Mas o impacto disso é muito forte. Se a gente compra um perfume ou um sabonete que seja de uma marca de cosméticos com recursos aqui da Amazônia… imagine se ele vier em uma caixinha de papel feito de resíduo de açaí: o apelo é muito forte, a questão é chegar no investimento”.