*Por Tatiana Lima
Em primeira passagem pelo Rio de Janeiro, a ativista americana Angela Davis lotou a sessão de abertura da 12ª Edição do Encontro do Cinema Negro Zózimo Bulbul, que consolidou-se como a maior plataforma de lançamento do cinema negro na América Latina, promovendo o intercâmbio entre cineastas nacionais e internacionais, que será realizada até o dia 3 de novembro, no Cine Odeon, no Centro do Rio de Janeiro. Ela veio ao Brasil a convite da editora Boitempo e da Fundação Rosa Luxemburgo para lançar “Uma autobiografia”, livro no qual recorda as lutas sociais que sacudiram os Estados Unidos nos anos 1960 e 1970, escrito quando tinha 28 anos.
A conferência foi realizada logo após a exibição do filme ‘Um dia com Jerusa’, da cineasta Viviane Ferreira, uma homenagem à atriz Léa Garcia. Na platéia com mais de 600 pessoas, composta majoritariamente por mulheres negras, com apoio da tradutora Raquel Souza, que já se tornou a voz portuguesa de Davis no Brasil, a militante destacou que uma democracia que exclui o povo negro, não é democracia. “Nos Estados Unidos chamo o presidente de lá (Trump) pelo nome, porque nomear é reconhecer atribuir poder”. Preferimos chamá-los de “ocupantes”, como fazem alguns deputados americanos em referência à cadeira presidencial”.
“Marielle Franco, Vive!”
A noite era de Angela Davis, mas do começo ao fim, em mais de uma hora de discurso, a ilustre convidada homenageou a vereadora assassinada Marielle Franco (1979-2018). “O Rio de Janeiro, essa cidade espetacularmente bonita é, em primeiro lugar, a cidade de Marielle Franco”, discursou a ex Pantera Negra, arrancando aplausos e o grito da plateia ‘Marielle Vive’, que se tornou um marco na luta por justiça para a ativista brutalmente assassinada. Era uma noite de solenidades, afinal a escritora recebeu a Medalha Tiradentes, maior honraria do Estado do Rio, entregue pela deputada estadual Renata Souza e Luyara Franco, filha de Marielle. “Minha mãe dizia muito: ‘Eu sou porque nós somos’. E, eu costumo dizer que, nós somos resistência, porque ela foi luta. Então, se nós estamos aqui hoje é porque você e Zózimo foram resistência e luta. Que a gente se junte para vencer essa barbárie”, pediu Luyara.
A deputada, lembrou que a entrega da medalha a Angela, significa a luta contra a lógica racista e classista que nega o palco e o direito ao poder para mulheres negras a contar e mudar as suas próprias histórias. Um ato que definiu como ‘aquilombar-se’ em referência aos três mandatos parlamentares de mulheres negras do PSol. “Somos mandatas quilombos que fazemos e construímos a partir experiência concreta negra e na favela. Estar aqui hoje é estar em uma função coletiva, em uma função que é de quilombo, da luta pela vida. Entregar essa medalha para Angela Yone Davis faz parte de uma luta ancestral. É dizer que queremos negras no e com poder”, frisou a deputada.
Provocada pela jornalista Flávia Oliveira, mediadora do debate na conferência, e pelas palavras da escritora brasileira Conceição Evaristo, que confessou ficar diante do ícone “sem condições de fala”. Angela Davis afirmou que a contemporaneidade é um tempo rico para se estar viva. “É uma época em que os jovens são testemunhas do movimento de mudança de regras e normas construídos para regular e controlar o comportamento humano, mas também é uma época em que nós, de uma outra geração, podemos ver que fizemos diferença na luta. A longevidade é intergeracional”.
Encontro de gerações
De fato não há sombra para dúvidas. A obra e presença de Angela Davis é uma lufada de esperança e inspiração para diferentes grupos e coletivos de mulheres negras de diferentes idades. O público plural de senhorinhas de até 80 anos a jovens com vinte e poucos, começou a chegar ao Cine Odeon para a conferência. A fila de convidados e a do público inscrito dava a volta na Praça da Cinelândia. Uma das primeiras, foi a cantora Lellêzinha. “Ter um festival de cinema negro no Brasil é muito importante. E estar aqui hoje na presença da ‘Dona Angela’ é uma honra muito grande. Especialmente, quando penso que estou com 22 anos e que podendo viver isso com todos os meus irmão (pretos) aqui. Quero ouvir muito Dona Angela. Estou muito emocionada”, confessou.
A professora da Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais/ CEFET/RJ, escritora e intelectual negra Fátima Lima, exaltou a importância da passagem de Davis no Rio. “A reunião que se deu na Anistia Internacional foi extremamente fortalecedora para as lutas das mulheres negras. Angela é uma mulher vibrante. Traz uma lufada de força nessa grande jornada que nós mulheres negras travamos”.
Isoporzinho para Angela Davis
Por conta da imensa procura e o número reduzido de lugares (680) no interior do Cine Odeon, os ingressos (gratuitos) disponibilizados se esgotaram rapidamente. Mas, quem não conseguiu garantir o seu lugar dentro, pode assistir à projeção do encontro no telão externo voltado para a Cinelândia, ou pela transmissão ao vivo nas redes sociais da Boitempo e do Centro Afro Carioca de Cinema Zózimo Bulbul.
A exibição da conferência na praça reuniu grupos de artistas e ativistas em performances artísticas como a do grupo Panteras Negras Cariocas, além de grupos de coletivos de mulheres negras como a Oficina de Escrita Para Mulheres, idealizado pela escritora e historiadora Carolina Rocha. O encontro batizado de “Isoporzinho da Angela Davis”, teve direito a “cerveja, salgadinho, salame, afeto e muita cumplicidade”.
Apesar da irreverência e clima de confraternização na Cinelândia, houve críticas à organização do evento pela dificuldade de acesso à conferência de Angela Davis. Em São Paulo, a filósofa reuniu em público de mais de 15 mil pessoas em conferência no Ibirapuera.
Encontro do cinema
O Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul – Brasil, África, Caribe e Outras Diásporas completa 12 anos este ano e vai exibir curtas, médias e longas metragens produzidos por cineastas e produtores negros até o dia 3 de novembro no Rio de Janeiro. Serão 104 filmes nacionais e 40 internacionais em um festival que, pela primeira vez, foi totalmente coordenado por mulheres, com direção geral de Biza Vianna, na direção executiva, Viviane Ferreira e na curadoria de Carmen Luz. “A programação está muito especial. Ela nunca foi tão grande tanto em obras e quanto a presença de cineastas tanto nacionais quanto internacionais. Temos 44 filmes feito por mulheres negras”, comemora a diretora artística do evento Janaína Oliveira.
Para Marcela Lisboa, cineasta que participa do Encontro do Cinema Negro Zózimo Bulbul com dois filmes, entre eles, a obra em realidade virtual ‘Descolonize o olhar’, essa edição é um marco no tempo. “Este festival é a maior janela exibidora de cinema negro da America Latina. Ter um filme aqui é uma grande honra. É um espaço para gente finalmente conseguir distribuir nossos filmes, pois o audiovisual preto consegue fazer filmes, mas tem pouco espaço”. E completa: “A presença da Angela Davis serve para marcar um espaço que é político, que é o cinema como formador de memória imagéticas e permanentes”. A programação do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul: Brasil, África, Caribe e Outras Diásporas pode ser acessada no link https://www.afrocariocadecinema.com/programacao.
O evento se tornou a atividade mais importante do Centro Afro Carioca de Cinema, presidido pela figurinista e diretora de arte Biza Vianna. O festival, prefere se definir com a generosa palavra “Encontro”, traz o nome do ator e cineasta que o idealizou, Zózimo Bubul (1937-2013). O ator participou das obras ‘Terra em Transe’, de Glauber Rocha, e ‘Compasso de Espera’, de Antunes Filho, e foi o diretor de ‘Alma no Olho’ e do longa documental ‘Abolição’, marcos da história do cinema negro brasileiro.
*Tatiana Lima é jornalista, cria do Morro do Tuiuti e moradora do subúrbio carioca na Zona Norte. Atua como comunicadora popular integrante da equipe do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e é Doutoranda de Comunicação na UFF.
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