“Não merecemos ser excluídos, deletados, como se fossemos um pedaço de carne”, diz Carla Cristina Cardoso


A atriz conversou com o site HT sobre a data e a relevância dos movimentos antirracistas que crescem no Brasil e no mundo. Carla também confidencia sobre sua experiência pessoal e até profissional com a discriminação: “Já sofri racismo no trabalho. Já passei situações difíceis. Tem momentos que incomodamos mesmo. Em uma situação não consegui me defender, porque o trabalho acabou e faz tempo. E, em outro episódio, tive que reportar à direção para que aquilo não acontecesse com outras pessoas pretas. Também já ouvi que o teatro não era o meu lugar. E tive na TV episódios de não ser tratada bem, ver diferença. Mas corto a pessoa da vida, sem tratar mal. É que o racista dentro do trabalho não precisa te agredir, falar nada, o olhar dele, as ações, já dizem que ele não gosta da sua cor”

*Por Brunna Condini

A discriminação racial e o preconceito estão enraizados na sociedade brasileira, infelizmente. Hoje é celebrado o Dia Nacional da Consciência Negra, porém mais que uma efeméride por conta da morte do líder Zumbi dos Palmares, é um dia para ressaltar a importância de se ter conhecimento histórico sobre a população negra, e também um sentimento de empatia com essa história, além de engajamento na luta por igualdade de oportunidades: nos mesmos espaços e na mesma proporção. É fundamental ter discurso e atitudes alinhados para combater o racismo estrutural. Estudar, procurar saber, ouvir. E não se omitir diante do preconceito e da violência. Somos uma país misto e a união da diversidade de existências deve somar e ser respeitada.

“Uma das piores formas sobre o racismo é como olham para uma pessoa preta no Brasil. Só quem é preto entende. Por isso nossa luta é constante e diária” (Foto: Flavio Ramos)

Convidamos a atriz Carla Cristina Cardoso para falar sobre o tema e também da sua experiência em relação ao racismo. Aos 45 anos, a carioca nascida na Tijuca, criada no Catumbi, bairro situado na Zona Central da cidade, e hoje moradora de Santa Teresa, conta que já passou por muitas situações de discriminação ao longo da vida. “Infelizmente, minha história de vida com o racismo não vai ser até aqui. Deve ir além ainda. Eu e minha irmã Carolina fomos criadas pela minha mãe, dona Iracema Ana da Conceição, falecida há 11 anos, que sempre falou sobre nos enxergarmos com igualdade. Mas ela também nos alertou de que existem pessoas que vão se incomodar isso, mas que isso está na pessoa, é uma questão dela”, diz Carla, sobre o racismo. “Tive uma mãe que me ensinou a não me contaminar com o preconceito e o com o que fazem. Quem comete racismo tem que perceber que está errado, ficar no ‘vácuo’ e mudar isso. Uma das piores formas sobre o racismo é como olham para uma pessoa preta no Brasil. Só quem é preto entende. Por isso nossa luta é constante e diária. Para não permitir que ninguém nos trate assim. Não quero ser olhada assim, ser seguida no supermercado, em uma loja. O preconceito com a cor da pele é algo que nos persegue”.

Carla, que brilhou em ‘Bom Sucesso’ como a cunhada e amiga da personagem de Grazi Massafera, também fala da data. “O dia de hoje será sempre importante. Para nós, pretos, para todo mundo. É um movimento para despertar realmente a consciência de que tem muita coisa que precisa ser transformada. Muito já tem mudado, mas nosso país ainda precisa enxergar muito sobre o que é racismo, falo de como o Brasil olha para as pessoas pretas. Não é para ser assim, ter racismo, ter diferença. Nós vivemos em um país diverso. Então, ser preto, branco, amarelo, índio, é o que somos”, frisa. “Olha, minha mãe dizia uma coisa: “Minha filha, quando chega a nossa hora, é a mesma pá que o coveiro vai usar para enterrar. Não tem cor, mais nada. Ali, somos iguais. É um olhar sem ver essa diferenciação”.

Por que ainda precisamos lembrar?

O movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter) foi fundado em 2013, quando um segurança de um hotel atirou e matou um adolescente afro-americano de 17 anos, Trayvon Martin, e foi absolvido.

O Vidas Negras Importam pretende combater firmemente o racismo recorrente na sociedade norte-americana e a violência policial. O movimento questiona a estrutura econômica e social que faz com que algumas vidas pareçam ter menos valor que outras. Este ano, com o episódio da morte de mais um homem preto vítima de violência policial nos Estados Unidos, George Floyd, as manifestações por lá e mundo afora se intensificaram. Exaltando a urgência para que a população mundial combata o racismo e a violência vinda disso. “Esses movimentos precisam acontecer. Esse ano se evidenciou o verdadeiro massacre que vem acontecendo com a população negra. Nós vivemos em uma sociedade racista e isso gera mortes violentas”, acrescenta Carla Cristina. “E quando você vê dentro um movimento como esse, pessoas brancas também, acende aquela luz de que algo pode mudar, ser parado. Não merecemos ser excluídos historicamente, ser deletados, como se fossemos um pedaço de carne. Talvez tenham racista que não tenham cura, mas muitos podem ter”.

“Esses movimentos precisam acontecer. Esse ano se evidenciou o verdadeiro massacre que vem acontecendo com a população negra” (Foto: Flavio Ramos)

A atriz comenta ainda, que esse tipo de discriminação acontece em todos os espaços. “Já sofri racismo no trabalho. Já passei situações difíceis. Tem momentos que incomodamos mesmo. Em uma situação não consegui me defender, porque o trabalho acabou e faz tempo. E em outro episódio, tive que reportar à direção para que aquilo não acontecesse com outras pessoas pretas”, revela Carla que tem 20 anos de trajetória profissional. “Também já ouvi que o teatro não era o meu lugar. E tive na TV episódios de não ser tratada bem, ver diferença. Mas corto a pessoa da vida, sem tratar mal. É que o racista dentro do trabalho não precisa te agredir, falar nada, o olhar dele, as ações, já dizem que ele não gosta da sua cor”, desabafa ela, que desde a infância sabia que atuar era o que desejava fazer na sua vida.

 Muito se fala sobre representatividade na TV e no cinema. Que espaços ainda precisam ser ocupados nestes veículos? “Ainda precisamos ocupar muitos lugares. Precisamos de mais autores pretos, diretores. As artes precisam de representatividade de pessoas pretas ainda. Até no próprio jornalismo ainda têm muito pouco. As pessoas pretas precisam olhar e se ver lá”.

“Ser mulher no Brasil é ser uma sobrevivente. Mas a mulher preta tem muita coisa contra. Vamos pulando barreiras para alcançar nossos objetivos. Todo mundo mata um leão por dia. A mulher preta, não. Ela mata dois, três” (Foto: Flavio Ramos)

O que é ser uma mulher preta neste Brasil de hoje? “É ser uma sobrevivente, como todas as mulheres. Mas a mulher preta tem muita coisa contra. Vamos pulando barreiras para alcançar nossos objetivos. Todo mundo mata um leão por dia. A mulher preta, não. Ela mata dois, três. A sorte é que a vida é boa e a gente se cerca do bem e não pode se contaminar. Mulher preta no Brasil é mulher guerreira, Fênix”.

Na sua opinião, o que nós brancos, podemos fazer de fato, para sermos antirracistas? “As outras raças do nosso país, da nossa mistura, podem apoiar os movimentos, ouvir. Seguir juntos na luta. E tentar se colocar em nosso lugar. Uma pessoa branca, quando se coloca no lugar de uma preta, consegue visualizar um pouco. É muito difícil”, afirma. “Tem um filme que eu adoro que fala muito dessa pergunta que você fez. Se chama “Dia de matar”. Tudo que vocês escutam, veem sobre preconceito, pensem se fosse na sua pele. A partir do momento que existe a empatia das pessoas brancas com isso, elas lutam junto com as pretas. Aí a luta fica mais bonita”.

Carla Cristina também aproveita para contar que passou todos esses meses de pandemia sem trabalhar, mas voltou a filmar, com todos os protocolos de segurança, o filme ‘Não é você, sou eu’. “Ainda estou filmando. Tem também o longa ‘Os Suburbanos”, que está pronto há dois anos e deve ser lançado em 2021”, diz. “Hoje quero ser feliz. Estamos vivendo um momento de um vírus desconhecido, uma ameaça silenciosa. Só agradeço estar viva. E se Deus quiser, com saúde, quero trabalhar muito. Este ano meu único plano foi sobreviver e tentar ser feliz, na medida do possível, depois de tanta gente que se foi. Acho mesmo que por estarmos aqui, tentar ser feliz é o mínimo que podemos fazer”.