Na peça de Mike Bartlett, Felipe Lima afirma:”Vale amar homem hoje e mulher amanhã, abaixo limitações!”


Na encenação, um triângulo às avessas é formado, com casal hétero sofrendo patrulha ideológica de gay. É a patrulha à fluidez do afeto pelo estabelecimento de papeis irrevogáveis!

Felipe Lima é puro amor. Aliás, é muito amor. Explica-se: ele acredita que, diante da multiplicidade de seres que pode existir dentro de um indivíduo, seja possível amar duas pessoas ao mesmo tempo. Ou até mais. O ator e produtor cita, logo de cara na entrevista que deu ao HT por telefone, a famosa máxima de Clarice Lispector (1920-1977): “Não me prendo a nada que me defina”. E é nessa levada que estreia nesta noite de terça-feira (20/5) no Teatro Poeira, Rio, “COCK – Briga de Galo” a peça do cultuado Mike Bartlett, a qual ele comprou os direitos, quase de supetão, em uma viagem à Nova York: “Em 2012, cheguei naquele balcão ‘TKTS’, na Rua 47 com Broadway, para ver o que ia assistir. Comprei ingresso pra peça, meio sem saber o que era, me empolguei, vi que precisava montar esse soco no estômago, corri atrás e arrematei os direitos dela para o Brasil. Simples assim”, ele ri, parecendo um ariano que age de ímpeto, embora seja sagitariano com ascendente em capricórnio e lua em câncer. Ou seja, é impetuoso, tem os pés no chão, mas viaja na maionese da emoção. Por isso mesmo, o espetáculo, que trata da história de um casal gay no qual um dos parceiros acaba se envolvendo com uma mulher, passando a amar simultaneamente duas pessoas, tem a mesma entrega de alguém nascido sob a influência do Trópico de Capricórnio, para quem a necessidade de não haver limitação a partir da rotulação – hétero ou gay – faz tanto sentido, na mesma cadência do pensamento da escritora.

Além de levantar a possibilidade de amar duas pessoas ao mesmo tempo, a obra lida com outras questões contemporâneas tão relevantes como a paixão independer de gênero, a necessidade de não se autorrotular para não restringir vivências, a amplitude da sexualidade e a nova definição das relações formais no mundo atual. Não por acaso, em inglês cock significa o animal galo, mas, ao mesmo tempo, é uma expressão chula para o órgão sexual masculino dentro da gíria gay, onde os papeis de um casal muitas vezes seguem especificações sob os cânones dos estereótipos de macho e fêmea, seguindo codificações que deveriam, no fundo, dar lugar a uma nova plêiade de possibilidades. “Não é uma peça sobre preferência sexual, muito menos uma obra de temática gay, mas sobre a falta de necessidade de definições marcadas ad eternum. Hoje você é um, amanhã pode acordar outro”.

A premiada comédia do autor britânico, segundo o New York Times, “é um arrojado, hipnótico e energizante exercício de subversão emocional, com quatro atores se colocando em cena como animais enjaulados em constante duelo de morte” – uma verdadeira briga de galos. Ou de cães, quem sabe. E, no meio do triângulo que se estabelece entre os três personagens, está John (Felipe Lima), dividido entre o companheiro de sete anos, M (Márcio Machado), e a mulher que conheceu por acaso, em um momento de estagnação de seu casamento, W (Débora Lamm). A peça ainda traz o pai de M, interpretado por Hélio Ribeiro, que entra em cena para defender o filho em um jantar, quando a situação fica insustentável, já que John não consegue se decidir entre um ou outro interesse afetivo e promete para ambos a exclusividade do seu coração.

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Felipe comenta que a visceralidade da encenação está no texto e neste jogo cênico despojado de artifícios: “É a essência do teatro, sem troca de figurino, sem cenário, uma luz fixa, ausência de trilha sonora, com os atores atuando para o público. E ponto.” Para tanto, a produção se esmerou em adaptar a caixa cênica do Teatro Poeira, transformada em uma arena central em meio a uma plateia de quatro lados, como um ringue de boxe ou uma rinha de galos. Ele ainda comenta que precisou fazer alguns ajustes na montagem nacional para este espetáculo vencedor do Olivier Award (ou Laurence Olivier Award) de 2010, o prêmio entregue anualmente pela The Society of London Theatre, batizado com o nome do lendário ator britânico (1907-1989) e equivalente ao Tony norte-americano e ao Molière francês.

Esse despojamento de recursos que se concentra no essencial, lembrando de alguma forma o Dogma, cartilha usada pelo cinema dinamarquês nos anos 1990 que buscava despir a narrativa cinematográfica de tudo aquilo que seria supérfluo para contar da história. Nesse âmbito a obra que tanto seduz Felipe Lima se aproxima do movimento encabeçado por Lars Von Trier e, mesmo hoje, quando o Dogma já se encontra fora d cena, ainda podem existir semelhanças entre este e “Cock”, pois a peça, à exceção do protagonista, dá simples iniciais aos personagens ao invés de nomes, como na última produção do cineasta, o polêmico “Ninfomaníaca”, (Nymphomaniac, 2014), que também procura elucidar questões fundamentais do ser humano sob uma ótica cabível neste novo mundo contemporâneo. A versão brasileira da peça é de Eduardo Muniz e Ricardo Ventura, com direção de Inez Viana, para quem a peça fala sobre liberdade de escolha: “O texto propõe um alerta para a questão das diferenças e o autor faz isso com maestria, quando mostra uma situação de preconceito ao contrário. Apoio totalmente o direito de mudar, de escolher livremente os parceiros”. Felipe arremata: “É a fluidez do afeto, e Mike (Bartlett) dá essa dimensão ao fato de se gostar de alguém, independente de gênero, com seu senso de humor ímpar”.

Curiosamente, a peça estreia no Rio poucas semanas após outra montagem, “O cachorro riu melhor”, direção de Cininha de Paula da obra de Douglas Carter Bane (The Little Dog Laughed) adaptada por Arthur Xexeo. Nela, Danielle Winits vive uma empresária de um ator gay (Júlio Rocha) e procura, a todo custo, evitar que o grande público, evitar que o personagem saia do armário, já que sua carreira está prestes a decolar e a revelação poderia abalar a imagem pública do galã. E é questionando justamente a necessidade ou não de se construir estereótipos para personas públicas, em detrimento da vida privada, que esta outra obra esbarra na estreia de hoje. Felipe Lima acredita que, na peça de Carter Bane, a discussão se dá no “âmbito do privado e do público, onde o que está em jogo é como a revelação da vida pessoal do personagem irá afetar a percepção dos outros em relação à sua vida pública. Assunto também atual, relacionado à tal ‘Sociedade do Espetáculo’ dos tablóides e paparazzi. Em ‘COCK – Briga de galo’, o buraco é mais fundo, tudo está dentro da vida privada, mas nem por isso a coisa é menos danosa, porque se trata de assumir rótulos dentro da própria individualidade e junto aos seus entes queridos”.

Serviço:

COCK – BRIGA DE GALO

Temporada:  até 24 de julho
Horários:.21h (de terça à quinta)
Preço:  R$ 40,00 (terças e quartas) / R$ 50,00 (quinta)
Local: Teatro Poeira
Endereço: Rua São João Batista, 104, Botafogo
Telefone: 2537.8053
Duração: 80 minutos
Classificação Etária: 14 anos
Capacidade do teatro: 96 pessoas
Horário de funcionamento da bilheteria:  Terça a sábado (das 15h às 21h)
Vendas pela internet: www.ingresso.com.br