*Com Flávio Di Cola e João Ker
Com grande pesar e bastante surpresa, o Armazém da Utopia, na Zona Portuária carioca – lugar escolhido para receber a habitual feijoada de confraternização do Festival do Rio –, foi pouco a pouco recebendo a notícia sobre a morte de Hugo Carvana neste sábado (4/10). O ator e diretor havia sido homenageado apenas uma semana antes pelo evento, com uma exibição especial do clássico “Vai Trabalhar, Vagabundo”, o primeiro longa-metragem dirigido por ele em 1973, com música antológica composta por Chico Buarque. Ao lado de outras produções que dirigiu – como “Se Segura, Malandro!” (1978) e, “Bar Esperança” (1983) – e títulos sobre os quais flanou como ator, tipo “Os Cafajestes“ (1962) e “Antes, o Verão” (1968), Carvana foi responsável por imortalizar a imagem do carioca canastrão e boa praça que virou marca da Rio Maravilha, além ser praticamente o pioneiro, em uma fase do cinema pós-chanchada, a lançar mão da comédia ligeira com viés de comportamento que, de certa forma, hoje encontra eco no boom de produções comerciais que apostam no riso. Tanto que, enquanto alguns de seus pares – outros expoentes do cinema brasileiro – hoje se encontram em atuação bissexta, ele permaneceu na ativa até o final, com produção cinematográfica recente como “Casa da Mãe Joana” (2008), “Não se preocupe, nada vai dar certo!” (2011) e “Casa da Mãe Joana 2” (2013).
Repleta de cineastas, atores, produtores e personalidades do cinema nacional, a feijoada é ambiente perfeito para se prestar uma última homenagem ao artista, e HT circulou pelo galpão em busca de depoimentos dos amigos, profissionais do meio e admiradores. todos consternados com a perda. O que o ator e diretos, com ampla presença também na televisão brasileira, representa tanto para a indústria do audiovisual, quanto para a imagem arquetípica do Rio de Janeiro? Abaixo, figuras de expressão nacional ou simplesmente aqueles que fazem o cinema acontecer respondem sobre esse eterno malandro carioca”, no melhor dos sentidos possíveis.
A cantora Roberta Miranda, que ainda não estava sabendo da notícia, comenta: “É até bom ficar um pouco longe da internet, esse mundo que nos traz coisas boas, mas também oferece notícias tristes de supetão, como essa que você está acabando de dar. Imagina, a importância dele é extraordinária, não somente para a cultura, o cinema e as novelas, mas para o mundo artístico. A arte, cada vez mais, está empobrecendo, né?”.
Maurício Mattar, que minutos antes estava fazendo selfies com Roberta, disse: “O Hugo é peça fundamental no cinema brasileiro, ele faz parte dessa história. Falar dele é ficar caindo em lugar comum, girando em volta do próprio rabo e enxugando gelo. Além de ele ser um dos atores mais virtuosos e de talento no nosso país, ele tem essa importância no cinema nacional. Um daqueles pioneiros que marcaram, desde a época da Atlântida, o imaginário do cinema brasileiro. Sua importância é direta.”
O diretor do filme “Hamlet”, Cristiano Burlan, declara: “Eu não era amigo próxima dele, mas já havia me encontrado com ele em algumas ocasiões. Nos últimos dois anos, não só o cinema brasileiro, como o mundial, tem perdido muita gente. É estranhíssima essa sensação de pessoas que fazem parte da história e que, de repente, se vão. A importância dele como ator e diretor é tremenda. Mas, nessa hora você pensa menos na obra e mais na pessoa”.
A diretora do Festival do Rio, Walquiria Barbosa, diz na lata: “É uma estrela que foi para o céu. Um grande ator, um grande diretor e um grande produtor”, ao que a atriz Suzana Pires complementa: “Ele nos deixa um legado gigante para qualquer um que vá fazer cinema hoje no Brasil”.
Malu Mader, que já trabalhou em inúmeras produções ao lado de Carvana na televisão, sobretudo nas novelas de Gilberto Braga – autor que costuma trabalhar com uma mesma trupe de atores-fetiche, dos quais ambos fazem parte – desenvolveu uma amizade próxima com o ator/diretor, preferindo falar sobre a importância que ele tinha para ela própria: “Quando eu era pequena, bem antes de conhecê-lo pessoalmente, meu pai comentava muito de dois filmes dele e costumava usar máximas dele para falar com as pessoas: ‘vai trabalhar, vagabundo’ e ‘se segura, malandro’! Então, antes de tudo, ele já representava para mim alguém que meu pai admirava, assim como o ‘Beto Rockfeller’ de Luis Gustavo (1968). Eu conheci seus personagens antes de conhecer a pessoa, mas tive a felicidade, logo na minha segunda novela, ‘Corpo a Corpo’ (1984), – o [autor] Gilberto certamente era louco por ele – de fazer a filha dele. Tenho minhas historinhas secretas aqui com ele, que eu não posso contar, mas que fizeram dele, logo de cara, não meu pai na ficção, mas meu irmão na profissão. Ao longo da minha carreira, tive o prazer de contracenar com ele várias vezes.
Visivelmente emocionada, a atriz continua seu desabafo: “Em ‘Celebridade’ (2003) ele foi o Lineu e houve todo aquele mistério de ‘Quem matou o Lineu?’, onde nós tivemos o prazer de convivermos mais uma vez. Logo depois, ele me chamou para uma deliciosa bagunça chamada ‘Casa da Mãe Joana’ (2008) e que eu aceitei para nós convivermos e brincarmos mais uma vez, ainda mais porque faziam parte do proejto outras pessoas que eu também amo como Paulo Betti, José Wilker, Laura Cardoso… Esse é o barato da profissão, não é só essa questão da “importância”, mas também dos afetos, da convivência, do prazer, das risadas. Eu me lembro dele como um grande amigo, uma pessoa adorável e, mais do que tudo, muito engraçado, com um humor muito particular e silencioso.
Bianca Comparato, que está almoçando na mesma mesa de Malu, confessa que fica até difícil falar alguma coisa depois do depoimento da colega: “Para mim, ele é mais distante. Um grande artista que colocou na tela coisas que muita gente não tinha coragem de colocar. Um retrato muito fiel, do Rio em grande parte, mas também do Brasil, das nossas questões sociais. Acho que o cinema dele é brasileiríssimo no melhor sentido possível, representando muito bem a gente e o nosso país. Admiro muito o Carvana e acho que ele é uma figura importantíssima na história do nosso cinema”.
Já Cavi Borges, diretor, produtor e o homem à frente da Cavídeo – a locadora especializada em filmes raros de de arte, no Rio -, a morte é emblemática por ter ocorrido justamente agora: “É muito mais triste essa perda ter acontecido durante o Festival do Rio, justamente o evento em que ele, Hugo Carvana, está sendo homenageado.”
O diretor Lírio Ferreira, que está no Festival com o filme “Sangue Azul“, também foi pego de surpresa, mas diz: “Eu acho o Carvana tanta coisa que fica até difícil resumir assim. Ele é um símbolo do Rio e da picardia do cinema brasileiro. A mim, ele ensinou um outro tipo de malandragem, que é essa malemolência do bem. É isso, ele foi o cara que inventou a malandragem do bem!”.
A cineasta Malu Di Martino celebra a longa trajetória do artista: “Como eu estava isolada, pois faço parte do júri do Prêmio Felix, essa notícia quando chegou me deixou mais ainda perplexa. Carvana é um dos diretores mais longevos e importantes do cinema brasileiro. É um dos mestres da autêntica comédia carioca. Ao longo de um ano com muitas perdas artísticas, a do Carvana é uma das mais chocantes.”
Adailton Medeiros, diretor do Ponto Cine, se revela em transe, mas é pura poesia na hora de juntar no mesmo balaio cinematografia nacional e espirituosidade: “Ainda estou choque pois acabo de saber do falecimento do Carvana. Esteja onde estiver, alguém lá em cima vai reconhecer essa figura tão querida e vai dizer pra ele: “Vai trabalhar, vagabundo.”
A produtora Paula Barreto havia ouvido o acontecido há apenas alguns minutos, e afirma, pensativa: “O Hugo, além de um grande ator, se tornou um grande diretor, fazendo filmes muito cariocas, né? Ele era muito o sinônimo desse lifestyle carioca da gema, principalmente através dos seus filmes. Isso, além de ser um grande homem, um cara com um humor sensacional. Ele vai fazer muita falta”.
Zezé Motta, que chegou um pouco depois da hora e tratou de arrumar seu pratinho, comenta: “Eu posso dizer que o Carvana vai fazer muita falta para o cinema, para a televisão e para a cultura brasileira. Ele foi uma pessoa muito importante na minha vida, meu primeiro diretor de cinema e o primeiro que deu espaço para um personagem meu, em ‘Vai Trabalhar, Vagabundo’. Tenho uma admiração, um carinho e um apreço, além de agora uma grande saudade”.
Colega de profissão e figura igualmente incensada no meio cinematográfico, o diretor Luiz Carlos Lacerda, o Bigode, é contundente: “Perdemos um dos cineastas mais comunicativos e sedutores do cinema brasileiro, que soube traduzir, como ninguém, a malandragem, a irreverência e a alegria do carioca.”
Para o estilista Gilson Martins, que assim como Carvana, não abre mão de códigos carioquíssimos em sua produção criativa, “o artista é a própria essência do Rio, da cidade que se consolidou com a malandragem da Lapa no início do Século XX, com o samba e que, depois, transportou esse espírito boêmio para a orla, com o desbravamento de Copacabana e, depois, Ipanema. Toda aquela irresistível atmosfera praiana, de mesa de bar, de chope, de azaração, de Garota de Ipanema, encontra no cinema a interpretação sagaz desse gênio que foi o ator e diretor”.
Já o bailarino, ator e ex-Dzi Croquettes Bayard Tonelli, “o Rio fica muito mais triste sem Carvana, que soube trazer para as mídias audiovisuais a irreverência e descontração do Rio, registrando a nova atitude do carioca pós-Revolução Sexual no imaginário de todo o Brasil. Essa coisa de nativo da cidade largado, de sunga, chinelo e copo na mão, é coisa que Carvana soube caracterizar como poucos, não só na sua figura em si, mas na ambiência de seus filmes”.
Para Rodrigo Fonseca, jornalista: “A cinefilia do Rio de Janeiro ficou órfã hoje, por que se existe um pai, mesmo que adotivo, do imaginário carioca nestes último 60 anos de cinema, essa figura era a do Hugo Carvana. Ao partir, o Hugo deixa uma lacuna difícil de ser preenchida, pois é a de um herói que inspirou gerações, inclusive a minha. Particularmente, ele me inspirou no meu trabalho de crítico, na apreciação de um cinema verdadeiramente popular, de um cineasta que conseguiu falar para o povo. Ao perdê-lo, fica mais difícil esse exercício crítico, mas também muito mais obrigatório.”
Por fim, a produtora Cátia Castilho, responsável pelo Nucine, o núcleo de cinema da Universidade Estácio de Sá, sintetiza a perda, finalizando: “Todo cronista de uma cidade é também um amante dela. E o Rio perdeu um dos seus mais amorosos tradutores.”
Confira abaixo o badalo que movimentou o Cais do Porto (Fotos: Zeca Santos)
Artigos relacionados