Na 12ª Bienal Naïfs do Brasil, artistas assumem a pluralidade nacional e declaram: “O selfie é a patologia da solidão!”


Evento reuniu mais de 100 obras de 16 estados brasileiros que, com seu olhar carinhoso, mostra um amplo Brasil que vai muito além do futebol e carnaval

*Por João Ker

Piracicaba, no interior de São Paulo, tornou-se um dos polos da arte nacional durante a noite desta quinta-feira (7/8), graças à abertura da 12ª Bienal Naïfs do Brasil, realizada no SESC da cidade. Com 106 obras de 81 artistas que saíram de 16 estados nacionais, do Amapá ao Espírito Santo, sob a curadoria de Diógenes Moura e um júri composto por outras quatro pessoas – Antonio Santoro Junior, Kelly Cecília Teixeira, Oscar D’Ambrósio e Valdeck de Garanhuns -, o trabalho exposto impactou pela amplitude de suportes e expressões pelas quais era possível encontrar essa “arte inocente” e a diversidade de pontos de vista sobre um Brasil visceral.

Para os desentendidos, a arte naïf se caracteriza pela produção de obras sem rigor acadêmico, marcadas pelos traços simples e expressivos, que muitas vezes retratam o cotidiano de uma parcela social menos favorecida. Assim, com pinceladas e contornos de aparências quase infantis, mas provida de habilidades altamente intuitivas, esse tipo de arte expressa a cultura e diversidade brasileiras, que tomam forma em quadros e obras plásticas nos mais diversos suportes. É preciso esclarecer que essas cultura apresentada pelos naïfes são reflexo da pluralidade regional do país. Assim, comparecem – através de cores fortes, bem-humoradas e tropicais – o folclore nacional, a herança indígena, o sincretismo religioso, as festas populares, a rotina da agricultura no meio rural, o trabalho de pescadores e todo um jeitinho interiorano e simplório que não é menos digno ou belo por isso. É uma profusão de suportes como enxadas (Milene de Oliveira), violões (Rosângela Politano), caixas de remédio e de chicletes (Cor Jesus) e outras obras de artistas plásticos que procuram na reciclagem uma maneira de manterem viva a sua criatividade.

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Fotos: Paulo Vallido

A vastidão das obras serve para uma abrangência de temas que vão do sagrado ao profano, da lascívia à pureza, da ostentação à modéstia, do caos metropolitano à quietude interiorana. Tudo é belo, alegre e vivaz, como costuma ser esse Brasil de verdade, longe das maracutaias da classe política: há problemas, mas entre eles há alegria. Temas mais pontuais e críticos também têm seu espaço em meio à arte naïf. E, quando Diógenes Moura afirma que essa vertente é um registro mais “puro” da memória nacional, serve como embasamento dessa teoria quadros como “A Procura da Democracia – série: Tempo de Protestar”, de Enzo Ferrara, que revela os protestos de julho do ano passado, a Copa do Mundo, o atual momento politico do país e um certo desejo pela liberdade de expressão.

O curador também comenta o trabalho realizado nesta edição, que traçou um paralelo entre o naïf e a já quase extinta arte da fotopintura (mais sobre isso abaixo). “A arte naïf vem cruzando décadas, tentando alcançar uma expressão maior, mas é tudo muito pouco. A valorização da arte no Brasil é muito rala. As pessoas dizem que aqui é o país do futebol. Não é nada! Aqui é o país da cultura, e enquanto não reconhecerem que temos potência para sermos um gigante cultural, isso continuará a ser uma questão mal resolvida”. Ele ainda teoriza sobre o porquê dessa rejeição à arte naïf: “Ela é uma arte erudita e sofisticada à sua maneira, que mostra um despudor com o cotidiano, a beleza do simplório. Mas isso é insuportável para a mídia e para o capitalismo, porque ela não vende e não entra no mundo capitalizado. Ela se torna apavorante porque fala de nós mesmos. Quando começarmos a olhar para dentro de nós e não para o exterior, valorizaremos a arte brasileira”.

Na Bienal, Diógenes também levanta a questão de como a fotopintura vem se extinguindo rapidamente ao longo dos anos. Atualmente, a maior autoridade no assunto é o pernambucano Júlio Francisco dos Santos, talvez o último artista do gênero, conhecido carinhosamente como Mestre Júlio. Ele também vê similaridades entre essas duas expressões artísticas: “A simplicidade de ambas, a popularidade das questões sociais e como elas conseguem embutir o sentimento nas pessoas simples”. O artista ainda comenta o porquê de ter começado o ofício ainda aos doze anos e como encara a sua trajetória até os dias de hoje, quando ainda recebe cerca de 500 pedidos por mês, dentre os quais frisa encomendas de celebrities que vão de Regina Casé a Nando Reis: “A gente se impõe. Eu ressuscitei a fotopintura para que ela deixasse de ser uma sub vida da fotografia. Na verdade, há uma falta de materiais para alcançar esse estado híbrid0 da imagem, sem falar que a técnica foi esquecida com o tempo e todo mundo vai para o Photoshop hoje em dia”.

Mestre Julio e Diógenes Moura (Foto: Divulgação)

Mestre Júlio e Diógenes Moura (Foto: Paulo Vallido)

Essa digitalização da fotografia também incomoda Diógenes Moura, que classifica a febre de selfies como “patologia da solidão” e a imersão nacional no Facebook e no Instagram como “mania de viver em setores importados”. Mestre Júlio consegue explicar essa problemática de maneira mais simples e direta, reafirmando o valor da fotopintura na contemporaneidade: “Você nunca viu uma pessoa inteiramente satisfeita consigo mesma na frente de um espelho. Esse ideal de perfeição vem desde os anos 1950 e 1960, quando as grandes estrelas de Hollywoood começaram com o tratamento da imagem. Hoje, as pessoas também usam o Photoshop para isso, mas o programa é o neto do retoque de chapa; é uma máquina fazendo o trabalho da técnica humana. Os estúdios usam o recurso em linha de produção, mas as oficinas têm a técnica e o total conhecimento de fotografia”, finaliza.

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Fotos: Paulo Vallido

Pelas paredes do SESC, as fotopinturas ficam penduradas lado a lado com os autorretratos naïfs, o que torna mais visível o motivo de Diógenes Moura ter escolhido o subtítulo “O Santuário Refletido no Espelho”, aproximando esses dois universos (e respectivas suas dificuldades) no mercado nacional. O ‘olhar para dentro’, tanto na questão social como individual, pode ser reparado em diversas obras dali, como “O Sono” ou “A Novena”, da capixaba Shila Joaquim: “Eu quis mostrar que a pobreza não é sinônimo de tristeza. A simplicidade pode ser suficiente para algumas pessoas; o pouco tem uma estética que nos contempla”, explica a artista, que pintou cenas de um cotidiano bucólico e rural passadas no interior de moradias humildes. “O sagrado está no lar e esse lar não precisa ser sofisticado para ter seu valor”.

Shila mora em São Mateus, uma cidade no interior do Espírito Santo com pouco mais de 2.000Km² e 120.000 habitantes. Ainda assim, ela não vê a desvalorização da arte nacional como algo absoluto: “Existe isso em uma parcela”, comenta. “Há também muitos colecionadores e apreciadores da arte naïf, pessoas com alto poder aquisitivo. O que eu noto é uma baixa autoestima cultural. Por exemplo, quando alguém diz que pretende ser artista, a primeira oposição que encontra é a da família, que acha que isso não dá dinheiro e ninguém compra arte. As pessoas não compram porque muitas vezes precisam escolher entre adquirir um quadro e botar comida na mesa. Mas essa história de o povo não gostar de arte é balela”. Para a pintora, o buraco fica mais embaixo: “Há nichos – como este – onde a arte circula. Mas há também uma dimensão da massa que não é atingida. Por exemplo, o Faustão apresenta arte semanalmente no programa dele, mas nunca se interessou em divulgar a naïf. Duvido até que ele saiba o que é naïf. O problema é que o novo rico quer comprar arte estrangeira achando que está se valorizando, enquanto o estrangeiro chega no Brasil e só adquire arte feita por aqui”.

Quem concorda com a opinião de Shila é a paulista Rosângela Politano, que na última edição ganhou uma menção honrosa do júri e desta vez ministra um workshop de arte naïf durante a semana do evento. Ela mora em Socorro, um município no interior de São Paulo que tem menos de 4.000 habitantes, e diz que por lá as pessoas não entendem sua arte: “Quando eu recebi o prêmio aqui, vários artistas com conhecimento acadêmico me questionaram como ‘esse tipo de arte’ tinha recebido esse privilégio”. Para o artista paraense radicado em São Paulo, Arieh,  a desvalorização do naïf é uma faca de dois gumes: “Podem até dizer que ela é uma arte primitiva, mas todo mundo entende. E para quem diz ‘até eu faria isso’, então vá e faça!”.

Arieh (Foto: Divulgação)

Arieh (Foto: Paulo Vallido)

Pelos argumentos, fica claro que a arte naïf, assim como grande parte da produção cultural no Brasil, ainda não recebe o merecido valor. E, em época de míngua até dos cinemas de rua em prol daquelas mega salas que exibem blockbusters em shopping centers e quando charts de singles não contam com sequer uma música brasileira no top 10, não é de se espantar que aconteça o mesmo com a pintura, o desenho e as artes  plásticas em geral. Talvez o problema seja a situação econômica geral ou, quem sabe, o medo de olhar para dentro que Diógenes Moura tanto enfatiza. Mas se esse for esse o caso , a 12ª Bienal Naïfs do Brasil do SESC Piracicaba tem, pintada no canto inferior de uma parede, a resposta para o temor que os brasileiros têm de enxergarem e assumirem a própria identidade: “O que eu faço? Eu faço o que eu sou”.

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Fotos: Paulo Vallido

Serviço:

Período: 8 de agosto a 30 de novembro de 2014
Local: Sesc Piracicaba – Rua Ipiranga, 155, Centro – Piracicaba, SP
Tel.: 0800 771 6243 / (19) 3437-9292
Horários:
Terça a sexta-feira, das 13h15 às 21h30. Sábados, domingos e feriados,
das 9h30 às 18h