Musa de Niemeyer, Adele Fátima reivindica que Sambódromo, no Rio, a homenageie e o pioneirismo em ser rainha da bateria


Polêmica nos 40 anos do Sambódromo do Rio! Atriz, cantora, figura icônica não apenas de beleza da mulher brasileira, mas da liberdade e autenticidade. Vinculou-se muito fortemente ao carnaval e acabou por inspirar as formas arredondadas do Arco da Apoteose saídas da prancheta do gênio Oscar Niemeyer. Nestes 40 anos de Sambódromo, ela lastima também não ser devidamente homenageada com uma placa que aponte ser ela a referência. Gravou filme de James Bond com o ator Roger Moore e namorou Julio Iglesias. Com críticas rascantes ao carnaval carioca, diz: “Nunca aceitaram eu ter sido a primeira madrinha da bateria e o motivo eu não sei e nem procurei saber. Mas isso sempre rolou na minha vida e na das pessoas de cor”

Musa de Niemeyer, Adele Fátima reivindica que Sambódromo, no Rio, a homenageie e o pioneirismo em ser rainha da bateria

*por Vítor Antunes

Quando Adele Fátima surgiu no cenário artístico o mundo era diferente. Inicialmente, ela foi batizada como uma das “Mulatas” do Osvaldo Sargentelli (1924-2002), apresentador de TV e empresário da noite carioca. Depois, ganhou outras referências na mídia: “Musa das Sardinhas 88″ – em referência a um comercial de uma indústria de sardinhas -, sex-symbol dos anos 70 e do Carnaval do Rio. Hoje, até mesmo o uso do adjetivo ‘mulata’ é discutido pela comunidade negra, bem como as sardinhas estão em extinção. Mas a beleza e carisma de Adele Fátima permanecem lá. Intactos. Às vésperas de completar orgulhosos 70 anos “os quais encaro como uma bênção, pois que são bem vividos, resolvidos e assumidos”, a multiartista – ela é atriz e cantora – só lamenta que, nos 40 anos de Sambódromo, comemorados neste ano de 2024, não haja uma placa para ressaltar que o Arco da Apoteose foi feito em sua homenagem, numa referência dita pelo próprio arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012) em entrevista à Sandra Moreyra (1954-2015). “Ele contou isso à repórter numa entrevista para a Globo”. A escultura na pista da dispersão é uma referência aos quadris de Adele. Como no primeiro ano de transmissão dos desfiles da Sapucaí a Globo não tinha direito de imagem, dizia-se, inclusive, que a estrutura parecia com a letra M, de Manchete, a TV detentora dos direitos.

Até hoje espero ser contemplada com uma placa na Apoteose. Temos que abstrair senão morreremos de angústia, de mágoa… Não tem graça doar-se por inteiro e não receber nada – Adele Fátima

Adele Fátima e o famoso Arco da Apoteose, no Sambódromo do Rio (Foto: Instagram)

Espaço em disputa, o cargo de madrinha – ou rainha – da bateria é sempre cercado de pioneiras. Há quem diga que a primeira seja Monique Evans, na Mocidade em 1985. Outros, que foi Eloína dos Leopardos, na Beija Flor em 1976. Há até quem aponte ser Beki Klabin (1921-2000), em 1973 pela Portela, ou outras meninas da comunidade, como Neide, na Mangueira. Adele Fátima também requer uma perspectiva pioneira: “Nunca aceitaram eu ter sido a primeira madrinha da bateria e o motivo eu não sei e nem procurei saber. Mas isso sempre rolou na minha vida e na das pessoas de cor. Passou de branco é preto, e se é preto não tem valor. Me afastei da escola, ainda que eu ame a Mocidade e gostasse demais do Mestre André (1932-1980) e do Andrezinho [músico e fundador do Grupo Molejo]. Como classificaram a Monique como a primeira ela ficou na dela e aceitou, mas foi uma falta de respeito nunca haverem retificado isso na imprensa”.

Somos filhos do carnaval e quem entra agora não é nada. Só entra para aparecer – Adele Fátima

Adele Fátima reivindica que Sambódromo, no Rio, a homenageie e o pioneirismo em ser rainha da bateria

Adele no anúncio das sardinhas 88 (Foto: Instagram/Marisa Alvares de Lima)

Adele Fátima reivindica que Sambódromo, no Rio, a homenageie e o pioneirismo em ser rainha da bateria

Adele Fátima em capa de revista ao lado de Rosemary (Foto: Diulgação)

Ainda colhendo os louros do sucesso, Adele decidiu retirar-se, diminuir as aparições artísticas e dedicar-se à familia. “O momento mais gratificante e do qual tenho mais orgulho de ter vivido foi aquele em que resolvi casar e ter minha família. Nada teve mais importância para mim do que meus filhos Diogo e Bárbara. Quando decidi ser mãe, mergulhei de cabeça. Ter uma família é uma das coisas que eu mais prezo, e Deus também”, diz ela.

Religiosa e de origem católica, hoje se intitula como espiritualista. Nos anos 1970, uma grande fakenews afastou Adele do filme “007 Contra o Foguete da Morte”… . Disseram que ela namorava o eterno James Bond, ator Roger Moore (1927-2017). Ela porém, nega este namoro.

Mas, outra história, tida como falsa, ela confirma. Como a de que namorou o astro espanhol Julio Iglesias. “Não é mentira. Ficamos noivos e juntos em Buenos Aires. Ele veio pro Brasil. Na época em que nosso relacionamento estava ficando mais sério ele viajou muito. Coincidiu que acabei conhecendo meu atual marido. Já quanto ao Roger Moore foi mentira, uma maldade da imprensa, que acabou valendo a minha saída do filme do 007. Roger Moore gostava de mim como pessoa, não como mulher. A imprensa  inventou isso e acho que por não aceitar uma neguinha numa posição destacada. Ainda hoje a discriminação é grande pro meu lado. Não me chamam para trabalhar por que não faço o que eles querem, falo o que quero e não sou fácil de ser comandada. Nunca fui, e não seria agora que estou chegando aos 70.

Julio Iglesias chegou a ganhar 1 milhão de dólares por dia há 40 anos. Nunca deixei me enfeitiçar pelo dinheiro. Minha família era rica, tanto que morava na Urca numa casa de 5 andares e tive uma infância muito suntuosa. Meu pai foi um dos precursores do alumínio no Brasil – Adele Fátima

“Nunca aceitaram eu ter sido a primeira madrinha da bateria” (Foto: Instagram/Adele Fátima)

Em 1990, a São Clemente fez um samba crítico onde dizia que o carnaval estava virando um comércio, que a tradição havia se perdido… E que antigamente – muito antigamente, diga-se, é que se fazia um verdadeiro samba. Adele Fátima não é tão apocalíptica como o velho samba clementiano, que inclusive ganhou um remake em 2019. Quando perguntada sobre a importância que o carnaval tem em sua vida, Adele é direta: “Eu nasci no carnaval, sou carioca da gema, nascida no Rio de Janeiro. Desde criança vou ao Bafo da Onça e me apaixonei pelo carnaval”.

Mas, ainda assim ela não deixa de ponderar suas críticas à festa. “O carnaval não é mais só alegria. Virou comércio. É triste, mas o carnaval está passando por uma mudança radical, onde os sambistas estão fora da Avenida. Não existem mais os clubes, ainda que tenham revitalizado o carnaval de rua – que é perigoso e violento. Eu peguei o carnaval na época da serpentina, do confete, do lança perfume. Hoje há muita gente que é de fora do carnaval, que se reduz à Sapucaí que nem recebe a atenção que merece. Eu fui uma das primeiras a defender os sambistas, de que recebessem pagamentos, já que antigamente eles só valiam pela nota. Hoje eles são pagos. Para mim, o carnaval está como no samba enredo do Império Serrano de 1982, que dizia ‘Superescolas de Samba S/A e superalegorias escondendo gente bamba… Que covardia'”.

O negócio ficou estreito e eu não estou satisfeita. Eu já vi gente no camarote que estava de  costas para o desfile. Foram lá para quê? Para a discoteca? Para tomar cerveja? Namorar?  O carnaval perdeu a magia e todo mundo sai na frente da bateria, quando desembolsa um dinheiro. Pegam as pessoas que têm notoridede e que não sabem nada de samba e não tem nem mesmo postura de sambista – Adele Fátima

Adele prossegue: “Eu vi muita gente do carnaval sendo agredida… Mulatas que registraram seu nome na festa e que não são lembradas, respeitadas, e nem têm direito de ir ao desfile. As que abriram as portas para o carnaval estão fora dele. O futebol não tem mais glamour e o desfile da Avenida deixou de pertencer aos sambistas. Hoje é da classe média para a alta, para os políticos e para quem menos faz”.

Para ressaltar sua entrega e participação desde muito cedo no carnaval, Adele aponta que sua filha foi madrinha da bateria mirim da Leão de Nova Iguaçu quando era menina, na única vez em que a escola iguaçuana desfilou no Grupo Especial, em 1992. Nesta época o mestre de bateria era Andrezinho, do Grupo Molejo, que vem a ser filho do Mestre André, eterno baluarte da Mocidade. E o momento mais marcante de Adele na Sapucaí, foi quando desfilou grávida de seu filho Diogo, com seis meses de gravidez. “Me sentia sagrada e consagrada num dos momentos mais importantes da minha vida, sambando com salto 18, sob o sol e muito feliz”.

Bárbara, filha de Adele Fátima, foi rainha da Leão do Iguaçu em 1992. A menina morreu de linfoma aos 18 anos (Foto: Reprodução/TV Globo)

Quanto a ela própria ter sido madrinha da bateria ela diz não saber estar “criando uma posição. Saí à frente da bateria por que era um desejo meu, presente desde quando eu era criança, no Bafo da Onça. Desfilei na Mocidade à frente da bateria com a autorização do Castor de Andrade (1926-1997), que brindava a entrada da escola com champanhe e eu levava a bebida aos ritmistas. Assim passei a ser chamada de ‘madrinha'”.

Hoje em dia tem rainha, madrinha, musa… Eu nunca saí de coroa na bateria. Eu tava ali próxima e sempre respeitei e admirei. A bateria é festa e não essas pessoas que chegam para fazer fotografias bonitas. O carnaval esta perdendo com isso. O turista vinha para ver o povo, a alegria do povo e hoje não pode mais mostrar o carnaval como ele é – Adele Fátima

MULHER

Não foram poucas as capas de revista masculina de Adele Fátima. De igual forma, não eram raros os elogios a ela. Hoje há maior problematização em relação à abordagem elogiosa à mulher. Adele diz nunca ter visto “problema em ser símbolo sexual. Acho bom quando a mulher bonita atinge o imaginário das pessoas que reconhecem a sua beleza. Tudo na vida, porém, tem dois lados e o lado que enobrece a gente agradece e o que machuca a gente não liga. Deus me trouxe todo o aprendizado que eu precisava. Ser bonita não me entristece nem envaidece. Nunca ganhei financeiramente com isso, senão pelo quesito humano”.

Não me abriam as portas facilmente. Quando se é inteligente é mais difícil que se domine. Eles não conseguem me fazer de marionete. Não faço força para mostrar quem sou eu, vivo o meu momento – Adele Fátima

Adele Fátima nos Anos 1970: Referência da beleza da mulher brasileira (Foto: reprodução)

Para Adele, “A fé tem papel fundamental no ser humano. É tudo de bom. A gente deve ter fé. Ela nos impulsiona, dá colo, conforta quando não se está bem. Deus levou a minha filha quando ela estava com 18 anos. Trata-se de um momento muito drástico que eu não desejo para ninguém. Faz 22 anos, mas parece que foi ontem, ainda sinto falta. Dizem que quando um filho morre vai um pedaço da gente mas eu não acredito nisso não. Fica um pedaço e vai embora quase tudo”. Ela finaliza dizendo: “Eu sinto que o nosso destino já está escrito. Minha fé me impulsiona ir adiante. Meu sobrenome, em alemão, tem 3 letras H: Hahlbohn. Para mim, isso significa que, na hora H, eu decido. Na minha vida eu não renasço como a fênix. Eu ressurjo… Como a águia!”.