* Por Carlos Lima Costa
Inúmeras foram as conquistas obtidas pelas mulheres na sociedade ocidental nas últimas décadas. Hoje, elas têm voz ativa para se posicionar sobre as mais variadas questões e assumir grandes cargos. Mesmo assim, ainda há um machismo estrutural. Como em certas regras existentes nos concursos de miss. Julia Gama, atual Miss Brasil e que conquistou o segundo lugar no Miss Universo, por exemplo, discorda da regra da candidata não poder ser casada. “Até entendo a questão de não ter filhos, porque a agenda da miss requer uma disponibilidade de 100% do seu tempo, mas está na hora de atualizar a questão da miss ficar nesse lugar puritano de não poder ser casada. É extremamente machista. Não tem mais espaço para isso na nossa sociedade”, afirma.
A gaúcha, de Porto Alegre, que se mudou para a China em 2016 quando foi convidada para ser o rosto mundial de uma marca de cosméticos chineses – depois de também ganhar o Miss Mundo Brasil em 2014 – vai integrar a equipe do novo programa de Fausto Silva, na Band, a partir de janeiro de 2022, além de também estrear em dois longas-metragens chineses: “Daylight”, onde contracenou com Shen Teng, considerado o maior comediante chinês da atualidade, e em “Invisible Tatoo” como atriz coadjuvante ao lado de Zhao Wenzhou.
Segundo Julia, o papel da miss é ser porta-voz, representar uma nação e atuar em causas sociais nas quais acredita. “Sou contra algumas proibições para uma miss. Está no regulamento que a candidata não pode ser casada, mas muitas vezes somos privadas de poder ter um namorado. Isso é extremamente errado. É possível ter um relacionamento saudável e ser uma profissional exemplar”, assegura. E cita o exemplo de um episódio recente: no dia 7 de novembro será realizada a próxima edição do Miss Brasil. Julia vai passar a faixa à nova vencedora do concurso.
“Perguntei se poderia levar um acompanhante. Quero a minha família e as pessoas que amo no evento. A resposta? ‘Família pode, namorado não’. Achei extremamente machista e avisei que comentaria isso em entrevistas, porque não estou de acordo. Não está no contrato que não posso ter namorado. E ter um namorado não me faz miss menos competente”, desabafa ela, cujo namorado é, inclusive, o seu agente. “Ele me acompanha em trabalhos. Não só como namorado”, frisa referindo-se ao diretor de cinema Pedro Gui com quem iniciou um relacionamento depois de ser eleita Miss Brasil.
Para ela, o concurso de miss é muito mais do que apenas beleza: “É também de personalidade, autenticidade e energia. Ganhou o conjunto, a personalidade e a força. Então, na minha opinião. o concurso é de valorização da mulher e de tudo que ela quiser ser. Tem sim a cobrança estética, mas ela é mais do público. Isso ainda está enraizado na sociedade. Vai demorar muito para conseguir tirar de maneira geral essa cobrança de beleza que existe em cima das mulheres. Isso é nocivo”, afirma.
A miss que, ganhou o Prêmio “The Most Incredible Award 2017”, uma iniciativa do governo chinês, pela sua contribuição cultural no país, e títulos como Embaixadora Internacional da Luta Contra a Hanseníase (2014/2021) e Embaixadora da Cultura Brasileira na China, vai enfrentar um novo desafio para o qual já vem se preparando: foi contratada para integrar o programa que Fausto Silva vai comandar na Band. Entre outras funções, ela fará reportagens externas. Aos 28 anos, ela lembra que cresceu assistindo o programa do Faustão e recebeu com muita emoção o convite. “Sou grande fã dele. Estou feliz, honrada e aberta para aprender o máximo possível com essa experiência. Vai ser uma grande escola. O Fausto trabalha de maneira única, o que requer destreza, preparação, agilidade. Então, vai ser uma super experiência”, ressalta.
O primeiro contato com Faustão aconteceu em seu retorno ao Brasil, após ficar em segundo lugar no Miss Universo, quando foi convidada para ser jurada no Super Dança dos Famosos, ainda na Globo. “Nesse dia mesmo já houve uma sinergia. Conversei com ele e com o diretor. Ficaram impressionados com a maneira como participei, com a minha tranquilidade, como eu modulei a voz. O Faustão disse que via em mim um grande futuro como apresentadora, que eu deveria focar na carreira. Fiquei em choque. Ele é um ícone da televisão. Dessa conversa surgiu a oportunidade semanas depois. E com os treinamentos que eu estou fazendo na Band, me sinto bem”, revela.
Julia Gama já tinha no currículo uma experiência em TV. Quando tinha 19 para 20 anos, após vencer seu primeiro concurso de beleza (A Mais Bela Gaúcha, transmitido pela Rede Pampa), ela foi convidada para comandar, na emissora, o Studio Pampa. “Foi uma grande experiência de improviso, de como conduzir um programa e segurar audiência. Ali, eu comecei a entender que gosto da área e fui estudar atuação também”, lembra.
Agora, ela quer priorizar a pluralidade de poder ser atriz e investir na TV. “Eu amo atuar. É uma grande paixão, mas apresentar um programa na TV também me dá uma autonomia interessante, um espaço para mostrar a minha personalidade e a mensagem que eu quero transmitir. Para os próximos anos, me enxergo solidificando a carreira como apresentadora e, paralelamente, focando em projetos de atuação em filmes e séries. Novelas não, porque são meses de gravação”, avalia.
A primeira mensagem que deseja transmitir é a de que qualquer sonho é possível. “Com determinação, dedicação e disciplina podemos aprender e conquistar tudo. Segundo, a maior bandeira que posso levantar enquanto pessoa pública é estimular a empatia entre as pessoas, o diálogo. Não falo de tolerância, porque quando você tolera algo já falta respeito com a opinião alheia. Respeitar e celebrar a diversidade é o mais importante. Assim, teremos uma sociedade mais saudável, um país que realmente progrida”, observa.
E prossegue explicando o que leva para a vida depois de anos participando de concursos de miss: “A honra de representar o Brasil nos maiores concursos do mundo, as amizades que fiz com as candidatas, mulheres do mundo inteiro. A troca cultural foi muito especial. Concurso de miss é uma escola. Para estar lá, além do corpo em dia, você tem que ter uma boa oratória, posicionamento, conteúdo. O ano de reinado é de grande crescimento pessoal. Sou grata a tudo que vivi”, reflete.
Os anos de competições sempre foram associados à dieta. Julia admite que não é daquelas que comem à vontade e não engordam. “Sou uma taurina que ama comer. Então, preciso de acompanhamento nutricional e cada vez mais tento focar na saúde. Hoje, quero ser uma mulher saudável, bonita, mas não é minha intenção ser exemplo de escravidão da beleza. Meu valor não está diretamente relacionado ou limitado à estética. Quero ser feliz, viver com mais leveza e não ficar refém da balança”, assegura.
Vencer ou chegar nos primeiros lugares de concursos de beleza não a deixaram com o ego inflado. “Prefiro ser reconhecida pela energia que tento levar para as pessoas, uma inspiração para que lutem pelos seus sonhos. Não me iludo achando que eu sou a segunda mulher mais linda do universo. Nem tenho essa pretensão. Quero que as mulheres entendam o valor delas além da beleza física e estética. A contribuição que temos para o mundo é muito mais do que sermos bonitas”, pondera, acrescentando sobre a febre dos procedimentos estéticos: “Não sou contra. A Medicina está aí também para ser nossa aliada. Não acho saudável é aquela mulher que chega no médico e diz ‘quero o nariz igual ao da Isis Valverde’, porque aí você não está buscando o melhor do que você tem”, frisa ela, que já se submeteu a procedimentos menos invasivos como botox e preenchimento, e que, em 2018, colocou uma prótese de silicone nos seios.
Cada época tem um padrão de beleza. Mas no Miss Universo, Julia atingiu o mesmo patamar de ícones como Martha Rocha (1936-2020), que, em 1954, também ficou na segunda colocação por conta de duas polegadas a mais. “É uma grande honra. O que tem de mais bonito em uma pessoa é quando brilha por ela mesma. E quero ser mais uma inspiração para as mulheres correrem atrás dos sonhos e que a próxima Miss Brasil seja o exemplo da pluralidade da mulher do nosso país”, reflete.
Sobre atuar em duas produções cinematográficas chinesas, Julia Gama conta que se apaixonou pelo país. “Principalmente pelas possibilidades. A China me proporcionou espaço para ser tudo que eu queria. Morei lá e as oportunidades foram surgindo e hoje falo um mandarim que me ajudou muito”, recorda. Os longas dos quais participou já estiveram em festivais internacionais. “Como tenho contato com os diretores, quero trazer os filmes para os cinemas ou streaming”, conta ela que já tinha integrado o elenco de filme e peças brasileiras, como “Delírius Insurgentes”, de Fernando Mamari, e os espetáculos “Morangos Mofados”, de Caio Fernando Abreu (1948-1996), e “Mamutes”, de Jô Bilac.
Mas antes de toda trajetória vitoriosa, Julia foi diagnosticada com depressão, aos 11 anos. “É difícil explicar. Alguns psiquiatras tentaram vincular com eventos específicos. Tenho uma personalidade muito perfeccionista. Enquanto criança, não tinha ferramentas para lidar com esse perfeccionismo exagerado. Sempre fui muito responsável, meus pais trabalhavam bastante e eu acabava tomando conta de tudo, de mim, do meu irmão. Como criança, levava tudo a sério demais e não tinha estrutura para isso. Hoje, sigo fazendo terapia”, diz. E considera importante o tema ser debatido. “Neste período de pandemia, muitos tiveram crise de ansiedade e depressão. Quanto mais a gente falar sobre o assunto, mais as pessoas vão poder buscar ajuda”, conclui.
Artigos relacionados