Milton Cunha: ‘O heteronormativo da TV está careta, não aceita que uma bicha pintosa e estudada tenha lugar de fala’


O carnavalesco e comentarista, entre os dias 26 e 29, vai comandar o programa Quesitos, no Imperator, com transmissão pelo Canal da Fita Amarela, no YouTube, recebendo figuras importantes do carnaval. Ele passou esses meses de pandemia organizando as crônicas que posta na rede social e planeja lançar, em março, o livro O Primeiro Ano dos Restos das Nossas Vidas. E Milton sonha com um programa com sua chancela na TV. “Agora, passou da hora de eu ter um programa, um auditório, a gritaria, a papagaiada. Tomara que eu não morra sem ver o triunfo da diferença na televisão. Como eu sou gay desde criança, eu conheço o preconceito, a dor da solidão”

Milton Cunha: 'O heteronormativo da TV está careta, não aceita que uma bicha pintosa e estudada tenha lugar de fala'

* Por Carlos Lima Costa

Figura proeminente do carnaval carioca, o comentarista, cenógrafo e carnavalesco Milton Cunha se destaca com seu jeito despojado, irreverente e culto de participar da cobertura dessa festa popular. Ele, que chegou ao Rio, vindo do Pará, em 1982, sem conhecer ninguém, vibra com o glorioso patamar que atingiu. “Sou um pleno vencedor, porque nunca negociei a minha identidade. Entrei na TV Globo para os comentários do carnaval sendo eu. Dou pinta, mas sou seríssimo na hora que devo ser. Então, celebro a minha vitória no sentido de acreditar no que você quer, no que você é e vai, porque uma hora ou outra vão te engolir”, pontua. E prossegue a reflexão da trajetória triunfante revelando um desejo: “Ainda temos muita luta pela frente. Por exemplo, passou da hora de eu ter um programa, um auditório, a gritaria, a papagaiada, mas o heteronormativo da TV está muito careta, não aceita que uma bicha pintosa, estudada, enlouquecida, tenha esse lugar de fala. Tomara que eu não morra sem ver o triunfo da diferença dentro da televisão. Eu quero mais negros, bichas, lésbicas, mais vários tipos de personalidades no comando. Não sei se vai dar pra eu ver, mas vou morrer tentando e gritando”.

Milton planejar lançar um livro, em março (Foto: Divulgação)

Milton vai lançar um livro, em março, reunindo suas crônicas diárias na internet (Foto: Divulgação)

Respeitado em sua área, já se viu homenageado através de imitações como a que aconteceu estes dias, feita por Marcelo Adnet em uma chamada da 21ª edição do Big Brother Brasil, que estreia na próxima segunda-feira, dia 25. “Ser um modelo para esse tipo de cópia, imitação, homenagem é bárbaro, porque os humoristas vivem das personalidades e das falas marcantes. É tanta imitação na internet. Eu acho ótimo. Ele já me imita há anos. Já me convidou para os programas dele, eu fiz o Tá no Ar: a TV na TV com ele, adoro”, comenta.

Com o cancelamento dos desfiles das escolas de samba, por conta da pandemia da Covid-19, Milton não está fazendo suas incursões no RJ TV como se tornou um hábito nesta época do ano. Mas seus fãs vão poder matar um pouco da saudade. Entre os dias 26 e 29, ele vai comandar o programa Quesitos, no Imperator, com transmissão pelo Canal da Fita Amarela, no YouTube. “Vamos usar esse espaço para pensar sobre a festa, como a parte dos critérios de julgamento, do estabelecimento de diretrizes”,  explica ele. Para tanto, receberá nomes como Mestre Ciça e Selminha Sorriso que vão abordar, respectivamente, sobre os quesitos bateria e Mestre Sala e Porta Bandeira. “Recebendo essas grandes autoridades o programa propõe a pensar sobre esses aspectos do saber da escola de samba, da sabedoria do ziriguidum para o carnaval do futuro”, explica.

E pondera sobre o sentimento que permeia este momento sem a festa popular. “Antes de ser um homem do carnaval, eu sou um cidadão, um estudioso, uma pessoa conectada com a realidade. Então, venho de quase 11 meses de reclusão. Respeitei todas as regras propostas pela Organização Mundial da Saúde. Durante esse tempo, eu venho me preparando para o ‘não’ carnaval, como me preparei para o ‘não’ Réveillon. Agora, estou extremamente tranquilo. Nesse momento é mais importante reconstruir o país, a economia, a educação. O personagem que faço é positivo, engraçado, colorido, mas ele só me interessa se tiver a serviço da plena cidadania. Mas, em uma realidade como a que vivemos, com mais de 215 mil mortos no Brasil, não tem como esse personagem fazer sentido. O carnaval volta em 2022 e vai dar tudo certo”, observa.

Entre os dias 26 e 29, ele apresenta o programa Quesitos, com transmissão pela internet (Foto: Divulgação)

Entre os dias 26 e 29, ele apresenta o programa Quesitos, com transmissão pela internet (Foto: Divulgação)

E explica como sobreviveu nos meses que estamos enfrentando a pandemia: “Tenho aspectos bem diferenciados da minha personalidade. Ela é muito caseira. Eu estou no terceiro pós-doutorado. Então, estudo demais. O mistério é como eu consigo juntar esses aspectos tão diferentes do meu ser. Adoro ficar em casa, ler, escrever tese, artigo. Na pandemia, dia 15 de março, eu me tranquei e escrevi, escrevi, escrevi, estudei, dei aula pelo zoom. Sempre que eu não estou na quadra, na brincadeira, no trabalho, no personagem, estou dentro de casa. Então, me dediquei ao estudo que me dá muito prazer”, relata.

E revela uma novidade para seus fãs: “Aproveitei a pandemia para escrever um novo livro, que sai  em março, com as minhas crônicas do Bem Viver, na rede social. As pessoas me pedem tanto um livro. Eu organizei os textos, o título é O Primeiro Ano dos Restos das Nossas Vidas, porque é a partir desse primeiro ano da vacina que todo aquele meu texto faz sentido. Há seis anos venho dizendo ‘aproveita a sua vida, seja de verdade, busca quem você quer ser, para de fazer o que os outros querem’. Agora, isso faz todo sentido, porque as pessoas quando ficaram presas disseram ‘meu Deus, se eu morrer, não fiz o que queria. Não fui do jeito que queria’. Então, todo mundo vai poder ter na cabeceira um pouco do Milton Cunha, do pensamento do Bem Viver”.

Entre as formações de Milton está a Psicologia, que não exerceu. “Mas me ajudou demais. Quando tinha 19 anos, eu achava e estava certo que saber sobre as limitações, sobre as dores, as dúvidas humanas, iria me ajudar em todos os aspectos da minha vida. Estudei Psicologia para entender a incompletude humana, para aceitar que não somos perfeitos. Então, me ajuda demais a ter consciência de meus fantasmas e saber que só muda de endereço, pois todo mundo os tem”, analisa.

"O personagem que faço é positivo, engraçado, colorido, mas ele só me interessa se tiver a serviço da plena cidadania.. O carnaval volta em 2022" (Foto: Divulgação)

“O personagem que faço é positivo, engraçado, colorido, mas ele só me interessa se tiver a serviço da plena cidadania. O carnaval volta em 2022” (Foto: Divulgação)

E prossegue apontando o que a “prisão domiciliar”, entre aspas, e para muitos, provocada pela pandemia, ocasionou. “Não tem o shopping, a viagem, a festa para disfarçar que o teu casamento e tuas relações não prestam… As pessoas ficaram trancadas e elas foram jogadas cara a cara com as limitações. Se a relação é falida, sai e vai procurar a sua turma. Então, todas as relações devem ser baseadas na conversa, na verdade”, aponta.

E explica que no caso dele a parte afetiva não foi afetada. “Eu e o Eduardo (Costa) somos casados já há 13 anos. A gente se conhece muito. É uma relação baseada na conversa, não tem essa de que só pode fazer o que eu faço. Não. São universos separados que se encontraram e é ótimo. Nosso casamento resistiu. Assistimos uma maratona de séries e conversamos muito”, explica.

E faz um balanço do que prega nos sonhos e de como é a realidade. “Na utopia, você tem a justiça social. E o principal problema da realidade é a injustiça social. Então, no meu sonho, proponho uma era justa em que todos estudam, têm acesso a saneamento básico, alimentação. Seria muito mais feliz se meu país resolvesse questões de educação, saúde, se todos tivessem acesso a bens”, garante.

"As pessoas ficaram trancadas e elas foram jogadas cara a cara com as limitações. Se a relação é falida, sai e vai procurar a sua turma"(Foto: Divulgação)

“As pessoas ficaram trancadas e elas foram jogadas cara a cara com as limitações. Se a relação é falida, sai e vai procurar a sua turma”(Foto: Divulgação)

E fala sobre a forma como a realidade o afetou por conta da opção sexual. “Como eu sou gay desde criança, eu conheço o preconceito, a dor da solidão. Eu fui muito apontado, apanhei muito, porque eu era e sou muito bicha. Ser esta coisa Carmen Miranda sempre causou muito espanto na escola. Então, desde muito cedo me acompanha a ideia de que é melhor viver em uma sociedade sem homofobia, sem racismo, porque desde muito cedo vi que atrapalha o desenvolvimento humano querer que todo mundo seja igual, goste da mesma coisa, tenha a mesma cor de pele, a mesma religião. Eu apanhava muito por ser diferente”, desabafa, acrescentando: “Não queriam saber se eu era bom caráter, bacana, estudioso, respeitador. Não! Bastava ser veado para apanhar. Sempre senti que a realidade é muito injusta. Por isso, a justiça social é muito importante pra mim. O negro tem que ter pleno desenvolvimento das suas potencialidades, os índios tem que ter direito à vida, às suas escolhas, então, esse direito da diferença existir e uma constante do meu sonho”.

E lamenta o que viu nos últimos tempos no país. “A realidade é da ascensão da direita, do extremismo, do poder neopentecostal. A ascensão de um discurso de intolerância. Tudo que eu não queria que acontecesse. É o retorno do não seja veado, não seja índio, preto. Então, a realidade é distópica, porque ela é o desencanto. O ser humano ainda não entendeu que a beleza está na diferença. Deixa as pessoas exercitarem as suas potencialidades na diferença, não te assusta, não queira mandar, não queira legislar sobre o desejo do outro, para de querer tiranizar o semelhante. E, na minha realidade, vejo quando dizem ‘um país maricas’. Quem dera que fosse um país assim, porque maricas é valoroso, não trata com desprezo. Fiquei feliz que na votação de prefeito no Rio, o neopentecostal foi derrotado, porque não tinha o talento para gerir a cidade multifacetada. O Rio é uma cidade cosmopolita, então, não pode ser liderada por um preconceituoso. E o pior, se dizia santo, santo de tornozeleira”, frisa ele. Em novembro, o então prefeito Marcelo Crivella não foi reeleito, perdendo para Eduardo Paes.

“Como eu sou gay desde criança, eu conheço o preconceito, a dor da solidão. Por isso, desejo tanto ver a justiça social" (Foto: Divulgação)

“Como eu sou gay desde criança, eu conheço o preconceito, a dor da solidão. Por isso, desejo tanto ver a justiça social” (Foto: Divulgação)

E analisa como o carnaval carioca será na gestão de Eduardo Paes em comparação com o governo Crivella. “O carnaval só poderá acontecer quando mais de 70% da população estiver vacinada. O Eduardo Paes é um gestor democrático, moderno, cosmopolita, então, com ele a cidade vai reencontrar o seu sorriso. Um dos ativos culturais do Rio é a simpatia, a alegria. Ele sabe  que isso é um valor econômico, que isso atrai feiras, congressos, turismo. Então, ele investe nisso, na alegria. No governo Crivella, o Rio perdeu a sua alegria. Tenho esperança de que o Rio vai voltar a ser aquele Rio feliz, que eu conheci quando cheguei aqui, nos anos 80, na minha juventude. Um Rio fabuloso, da categoria do extraordinário. Era uma cidade muito festeira. Então, foi caindo, caindo, caindo, até que nesses últimos quatro anos não era o fundo do poço, era pior do que o fundo do poço”, aponta.

Pelo que percebe em suas andanças, claro, anteriores à pandemia, a voz das comunidades hoje é a voz do lugar de fala. “A comunidade não quer mais nenhum branco falando por ela. Ela quer legislar sobre o desejo dela. Como eu que faço um discurso desde sempre de que é preciso respeitar a diferença. As comunidades exigem o seu direito, ser do jeito que querem. Normal. É a minha utopia, o meu paraíso da loucura, cada um ser do jeito que é, com sua identidade no modo de dançar, de se vestir, por exemplo. Para de julgar, porque quem julga, se coloca na posição do poder da branquitude, que não aceita dialogar com a diferença”, analisa.

"O Rio nesses últimos quatro anos não era o fundo do poço, era pior do que o fundo do poço" (Foto: Divulgação)

“O Rio nesses últimos quatro anos não era o fundo do poço, era pior do que o fundo do poço” (Foto: Divulgação)

Carnavalesco que assinou os desfiles de escolas como Beija-Flor e Viradouro, não vive remoendo o passado. “Eu assinei os desfiles fabulosos que queria, me diverti muito. Vivi intensamente. Quando resolvi sair, em 2010, para mim era perfeito, porque queria exercitar a comunicação, narrar a grandeza do desfile. Quando sinto saudades, eu assino desfiles no exterior nesses projetos que faço de carnavais aí por fora. A saudade de barracão, eu mato fazendo fantasias na Argentina, no Canadá, na Inglaterra, na Suíça, em Cabo Verde”, conclui.