* Por Carlos Lima Costa
Com 16 anos de carreira, o ator, diretor, dramaturgo e produtor Michel Blois está estreando na televisão representando tema relevante. No papel de Leopoldo Cintra, gerente da Rádio Alô Alô Campos, em Além da Ilusão, ele, de certa forma revive um momento de sua vida. Na novela, que se passa na década de 1940, seu personagem é homossexual e com medo de que descubram a verdade, aceita chantagem e finge namoro com Mariana (Carolina Romano). Traçando um paralelo com a atualidade, o ator de 38 anos ainda percebe um forte preconceito.
“Eu sou gay. Hoje, falo abertamente sobre isso. Mas não foi uma tarefa fácil assumir, esse se desnudar para ser quem realmente sou. Sofri muito no Sul, na época em que eu escondia isso de mim e dos outros. Eu não sabia que podia amar, compor uma família, nem como existir no mundo dessa maneira. Pra mim, gay era sinônimo de chacota, de menosprezo. Isso me angustiava e eu não sabia como inverter esse jogo. Vejo o personagem nos anos de 1940, passando exatamente pela mesma situação que eu vivi nos anos de 1990/2000. Por mais que a gente tenha andado em relação a pauta LGBTQIA+, de poder falar sobre isso abertamente, o preconceito não se modificou. A sociedade é homofóbica, ainda não vê a homoafetividade. Pessoas que não se identificam com a heteronormatividade, ainda não são apadrinhadas pelo sistema. Socialmente estamos no mesmo lugar, discutindo as mesmas coisas e sofrendo da mesma maneira”, enfatiza ele, casado, há 11 anos, com Pedroca Monteiro, o subdelegado Prado, de Quanto Mais Vida, Melhor!.
Ao contrário do personagem, Michel não foi chantageado nem obrigado por ninguém a fingir um relacionamento. Mas se envolver com alguém do gênero oposto aconteceu durante o processo em que não revelava seus verdadeiros sentimentos. “Eu já namorei meninas. Um tempo muito curto, pois era difícil pra mim, um esforço. Mas esse acordo era só comigo mesmo. Eu nunca coloquei a menina nessa situação de ter que fazer um acordo comigo e isso lá na minha adolescência. Era triste e angustiante. Pra menina provavelmente também, porque devia sofrer vendo que o amor não era correspondido. Eu estava ali me esforçando para ter uma vida heteronormativa e nesse sentido, eu acho que o meu personagem, o Leopoldo, e a minha vida se esbarram bastante. Ele é reprimido, tem um medo enorme sobre o que o mundo vai achar dele. Se eu tinha dificuldade para pensar nisso nos anos de 1990/2000, imagina ele nos anos de 1940, sem mãe, e cuidado por um pai absolutamente conservador. O desejo dele era só reproduzir todo modelo de sucesso que o pai tinha na cabeça. Por mais que seja extrovertido, ele é totalmente introvertido, magoado, machucado. Internamente, vive um drama imenso. E ainda vai passar por uma via crucis em função do pai e da sociedade, de se aceitar e se permitir viver algo. É um processo que vai acontecer aos poucos, vai ter até discussão sobre cura gay”, realça.
E enaltece o texto de Alessandra Poggi. “Ela criou um personagem muito rico. Fico passeando entre a comédia e o drama o tempo inteiro, me testando muito como ator. Me sinto produtivo por estar com questões relevantes sendo colocadas para o mundo”, observa.
Além do encontro com o próprio passado que o personagem lhe traz, atuar na trama das 18 horas pôs fim a uma espécie de profecia profissional que o atormentou durante anos. “Quando me formei na CAL, fiz um teste na Globo e um produtor de elenco falou: ‘Você não é bonito o suficiente para ser galã, nem é feio ou engraçado suficiente para ser o amigo do protagonista, é bom ator. Vamos precisar de você quando estiver com 40 anos’. Isso me assombrava absurdamente. Era um fantasma que eu carregava na vida. Aí entrei agora com 38 para quebrar a profecia e estou amando. Fui completamente absorvido naquele esquema que já estava montado. Estavam gravando desde setembro e eu comecei em março, estreando o meu primeiro personagem na TV. Elenco, direção e equipe técnica me deram toda força, me receberam muito bem. Eu já sabia que desejava atuar em uma novela, mas não sabia que seria tão divertido, uma experiência incrível. Por mim, farei novela sempre”, ressalta.
Natural de Rio Grande, interior do Rio Grande do Sul, Michel lembra que na sua infância e adolescência, cinemas e teatros da cidade estavam quase todos fechados. “Havia uma decadência cultural fortíssima. Não tinha nenhum teatro aberto além do Municipal da cidade, que continuava precariamente somente para algumas apresentações de final de ano, de escola, de grupos de dança, então, minha formação era muito precária. O desejo de atuar veio assistindo novelas. Como acesso rápido, era o que eu tinha como arte. Na escola, a professora de inglês, às vezes, transformava os nossos trabalhos em peças. Então, pedia para gente escrever e apresentarmos para os amigos. Uma vez, escrevi uma adaptação de O Rei do Gado e fiz Marcos Mezenga, personagem que era do Fábio Assunção. Fiz Hamlet, encenei outras coisas na minha cidade, mas tudo completamente amador”, recorda.
Aos 16 anos, assim que se formou na escola, se mudou para a casa da irmã, que já morava no Rio de Janeiro. Veio para ser ator. Entrou para o Tablado, depois foi estudar na CAL – Casa das Artes de Laranjeiras. “O teatro me absorveu completamente e me transformou. Foi a coisa mais linda. Mas o desejo de fazer televisão sempre existiu e andou comigo. E, confesso, tinha esse apavoramento de achar que eu nunca ia fazer novela”, reforça.
Mas o teatro foi um turbilhão em todos os sentidos. Através dele, encontrou o amor e conseguiu se abrir para o mundo. Quando se mudou para o Rio, ele ainda não tinha assumido que era gay. “Até para a minha família eu demorei a contar. Na verdade, o meu primeiro lugar de acolhimento, onde me senti pertencendo a uma comunidade, a entender que o desejo que eu sentia por homens e o que eu era não tinha problema, foi no teatro. Ele me deu essa liberdade para ser feliz e livre. Somente depois que me estabeleci de alguma maneira no teatro, quando já tinha amizades concretas, consegui falar sobre isso abertamente com os meus amigos e para a minha família, aos 24 anos. Os meus pais aceitaram super de boa. Meu pai, inclusive, ficou triste por não ter contado antes. Ele achou que eu estava sofrendo sozinho durante muito tempo e que a gente poderia ter conversado e diluído a minha angústia antes”, assegura.
Atualmente, Michel fala abertamente com toda paz do mundo, mas no cotidiano tem algumas travas. “Até hoje me percebo fazendo coisas que eu falo: ‘Isso é a minha homofobia’. Não sei andar de mão dada na rua com o meu marido. Eu fico angustiado. Se ele segura a minha mão, dá dois segundos eu tiro sem querer. Não fui educado a estar dessa maneira publicamente. Nesses detalhes, vejo o quanto a gente, mesmo dentro da comunidade, ainda se percebe coagido pelo sistema. Eu já sofri agressões sem nem estar de mãos dadas, só por andar na rua. Era criança. Tive ocasiões na minha cidade de alguém passar e falar: ‘Seu veado’. A pessoa nem me conhecia e se achou no direito de me agredir e me dar um soco. Eu tinha uns dez anos. Uma das primeiras vezes que apanhei por ser gay. Na época, já tinha sido apaixonado por um menino da minha turma. Eu não sabia que de alguma maneira estava evidente no mundo, que eu era gay”, conta.
E opina sobre o que leva as pessoas a se incomodarem com o fato de um homem transar com outro homem ou uma mulher com outra, porque se metem tanto na vida alheia. “A questão gay passa por muitos fatores. Inicialmente, o gay seria um homem que não iria construir uma família, nem passar o nome, a propriedade. Isso poderia ser uma questão inicial. Fútil, mas ok. Depois, tem uma questão religiosa fortíssima. Não somos um país laico. Somos comandados por igrejas. A Igreja Católica não aceita até hoje. E para a Evangélica você está com o demônio no corpo. Isso vai dificultando a aceitação. E como a história foi construída dentro da vida hétero, se esses homens que inventaram a história aceitarem a homossexualidade, enfraquece a masculinidade deles. Eles acham. Então, optaram por silenciar a gente. Não podemos existir, para não questionar a sexualidade deles. Pra mim, é basicamente isso. São esses pilares, propriedade, capitalismo, igreja e a masculinidade”, analisa.
No início da vida teatral, no Rio, ele também já conheceu Pedroca. “Estamos casados há 11 anos, mas de rolo, já tem uns 15, 16. Ele tinha acabado de se formar na CAL e eu estava entrando, aí no meio desse processo fundei a Invisível Companhia (depois virou Pequena Orquestra) com alguns amigos e ele entrou para o grupo. Desde, então, temos esse flerte e essa vida conjunta. Então, trabalhamos muito juntos. Demorou muito tempo para poder querer estar junto dessa maneira, mas a real é que a gente sempre esteve”, diz ele, lembrando o grupo onde encenou sua primeira peça, Limite. Além de escrever, atuou, dirigiu e produziu.
Michel e Pedroca já conversaram sobre paternidade. “Eu adoraria ter filhos. Ainda é uma dificuldade pensar em como, sabe, se adotar, se faz uma barriga. Até já paramos para ler a lista de adoção, como poderíamos fazer. Por enquanto, exerço a paternidade cuidando dos meus sobrinhos. Minha irmã tem três filhos, que moram aqui no Rio e eu faço tudo por eles. Eu amo. E a minha cunhada, irmã do Pedroca, está grávida. A família só cresce. Essas crianças todas são livres de preconceitos. Falam com a gente muito felizes, dormem lá em casa, tipo amam ter o tio Pepe e o tio Mi na vida delas. E para ter o filho temos que ver o momento que os dois vão estar passando na vida”, explica.
Mesmo antes de ingressar na televisão, desde que chegou ao Rio, Michel tem uma vida profissional bem ativa. Já são mais de 40 peças no currículo. No cinema, fez o roteiro e atuou no curta-metragem A Festa, dirigido por Maria Maya, na área musical, dirigiu o clipe da música About Love, do DJ DUX, e, no meio disso tudo, foi diretor artístico do Teatro Glaucio Gil, entre 2008 e 2009, e do Teatro Ipanema, de 2012 a 2015. “É algo mais burocrático. Eu cuidava de tudo, na verdade, da programação. Por exemplo, fui responsável pela reforma do Teatro Ipanema, quando ele deixou de ser privado e virou municipal”, recorda ele, que não vem exercendo função parecida. “Tenho produzido cada vez menos, confesso. Produzir teatro hoje em dia é um esforço imenso para uma recompensa mínima. Às vezes, não dá para pagar uma equipe. Eu, por exemplo, tenho uma equipe de quase 40 pessoas para botar um espetáculo solo em cartaz. E essas últimas políticas municipais, estaduais, federais dificultaram a vida do produtor teatral e foram deteriorando com o meu desejo de produzir, porque os teatros municipais, estaduais, públicos hoje em dia também você tem que colocar um preço justo, honesto pra toda população, mas eles não te dão nada em troca. Então, você entra com muito dinheiro, o investimento é grande e o retorno financeiro não compensa. Não posso mais arriscar tanto. Já perdi muito dinheiro em teatro. Os últimos anos fizeram com que eu ficasse mais medroso em perder dinheiro”, comenta.
Bastante ativo, não parou nem na pandemia. Ele escreveu e encenou peça online e está com projetos de séries e de um longa-metragem, que estão nas mãos de produtores tentando emplacar junto aos streamings. “Tem dois temas que eu costumo abordar. Um é tentar dar protagonismo LGBT para algum personagem ou mesmo o principal ou o antagonista. É uma preocupação minha fazer histórias que a minha comunidade possa atuar ativamente, mas que a questão principal desse personagem não seja ser gay. Outro tema que me chama atenção é o etarismo. Então, os meus projetos transitam entre o envelhecimento e a comunidade LGBT. Tenho uma série, por exemplo, sobre uma mulher idosa, octagenária, que tenta adotar uma criança e vai sentir todos os preconceitos sociais em relação a isso”, conta.
O período de isolamento social por conta da covid-19, claro, ele compartilhou com o marido. “Como casal a gente passou lindamente a pandemia. Eu acho que nunca tínhamos ficado tanto tempo juntos e foi feliz da nossa parte entender que a gente funciona muito bem como um casal. Mesmo confinados dentro de casa. Mas as angústias de cada um eram dificílimas de dar conta, a angústia do mundo e as nossas. Eu ia fazer Malhação e ela foi cancelada, então, era o sonho interrompido de fazer televisão. Pedroca também deixou de fazer alguns trabalhos. Usamos o nosso tempo para criar”, lembra ele. Os dois acabaram positivando para a doença, em janeiro deste ano, logo após o Réveillon. Mas os sintomas foram brandos. “Eu ainda tenho certa fobia social. Ao mesmo tempo que estou radiante de poder estar em um lugar sem máscara, também fico um pouco mais angustiado”, explica.
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