*por Vítor Antunes
Quando Carolinie Figueiredo surgiu no cenário artístico nacional, estava com apenas 18 anos e à frente de um grande sucesso da teledramaturgia nacional, que era “Malhação”, sonho de 10 entre 10 jovens atores em início de carreira. Era 2007 e a sua personagem, Domingas, estaria presente apenas naquela temporada. Porém, os ventos sopraram a favor e isso gerou o primeiro contrato de longo prazo com a Globo, em 2009. Esse primeiro contrato deu origem àquele momento que ainda hoje é tido como precursor da viralização na Internet. O meme antes do meme. A cada dezembro, o vídeo de Carolinie Figueiredo pedindo “luz, luz, luz”, evolução espiritual, além de um olhar mais generoso para com a ecologia e gratidão, retorna à rede. Hoje, 14 anos depois, o viral repovoou o Instagram e o X/Twitter.
Na época em que Carolinie gravou o tal vídeo, ela estava em “Malhação”, fazendo a personagem que a fez famosa, a Domingas. Ainda que tenha sido responsável por sua projeção no cenário artístico, e por ela ser grata, Domingas ocupa um espaço sensível para a atriz. “É um mix de sentimentos. Demorei muitos anos para entender que fiquei famosa e que a personagem fez sucesso em cima de gordofobia. Assunto do qual a gente não tinha informação nenhuma na época e eu demorei anos para compreender o que aconteceu”.
“Há quem me saúda pelo vídeo ou que se lembre do episódio com alegria, ou ainda quem pede desculpas por não haver entendido naquela ocasião. Anos depois daquilo, estou vivendo o que eu disse que viveria. Aquele vídeo ocupa um espaço de vanguarda de comunicação, mas quem me conhece de perto sabe que eu sou assim. Hoje em dia, se eu fosse ajustá-lo, não falaria de sincretismo religioso. Talvez seja a única coisa que não faria. Esse vídeo é um marco e uma das coisas mais autênticas que fiz na vida”, analisa.
Eu mesma só fui ver que estava fazendo papel de gorda quando os textos chegaram e em todas as cenas ou eu estava comendo ou falando de forma bem sublinhada sobre autoestima. Eu descobri que era gorda enquanto interpretava a Domingas. Foi algo como um chá-revelação da minha identidade nesse sentido. Tanto que eu nunca consegui rever as cenas, fotos e memórias. Houve cenas calcadas na personagem de biquíni e apelidos que surgiam de improviso pelo próprio elenco – Carolinie Figueiredo
Desde 2013 fora das novelas, ou seja, há uma década distante do audiovisual, Carolinie afastou-se da profissão, um tanto por conta da maternidade – é mãe de dois filhos – mas também por não ser um corpo dentro do padrão estético. “Eu fiquei anos tentando entender se o meu cancelamento ou afastamento da carreira no audiovisual deveu-se, de fato, à maternidade ou por conta de ter um corpo que não se enquadrou. Eu hoje sei que tenho um corpo midsize, que não é nem gordo nem magro. Em 2016, quando fiz o filme “Gostosas, Lindas e Sexies“, o meu corpo não cabia num padrão plus size, de modo que esta indústria e esta comunidade disse que meu corpo não devia estar ali porque eu não me encaixava àquele biótipo. Fiquei sem mercado: muito magra para ser gorda e muito gorda para ser magra. Até hoje só sou chamada para fazer testes com o recorte do corpo, para viver mulheres gordas, ou gordinhas, ou acima do peso, e costumo receber uma devolutiva de que “não sou gorda“. Sinto que, como atriz, fiquei num limbo no audiovisual, o que me entristece”, analisa.
Contemporaneamente, Carol acha haver um debate sobre o tema, mas que ele ainda é pouco eficiente. “Vejo meu talento cerceado ou podado por não me encaixar numa prateleira. Hoje há mais acesso a todos os corpos na TV, mas mesmo assim meu corpo não está dentro do que precisam e fico num limbo que tento compreender, mas que é compensado pelo teatro, que me acolhe. O palco abraça, valoriza o meu corpo, o meu tamanho. (…) Eu fui chamada para fazer um teste pro audiovisual e meu filho tinha 4 meses. Eu havia acabado de parir, em casa e com muita autonomia com meu corpo. Fiz um bom teste, mas eles precisavam de uma personagem com complexos com o corpo. Me dei conta que as minhas escolhas de vida precisavam ser mais importantes que os personagens vinham fazendo. Eu de alguma forma agradeci por não haver sido aprovada”.
A atriz esteve até pouco tempo em cartaz com uma peça que foi muito bem de público em São Paulo e que tinha como objetivo dialogar, também e principalmente, com as mulheres. Carolinie estava, junto com Samara Felippo, na montagem de “Mulheres que Nascem com os Filhos“. A encenação foi o retorno da atriz para o gênero depois de anos fora, tanto do teatro como da profissão. “Tratou-se de um reencontro que muito me emociona. Sou atriz desde os 8 anos e a minha carreira me deu o melhor da vida, que foi conhecer gente nova, outras culturas, sair de uma realidade que eu estava acostumada… Então ter voltado aos palcos me reconecta com a minha identidade mais antiga e fico feliz por ser com a Samara, por que ela acolheu a minha maternidade”.
LUZ, LUZ, LUZ
“Eu quero registrar esse momento e todos os dias fazer algo diferente para mim, pra me formar, para me sacodir, me tirar das minhas pequenezas“. Este é um dos trechos do desabafo que Carol Figueiredo publicou, não nas suas redes sociais, mas no seu YouTube, num vídeo gravado com sua máquina fotográfica, no já longínquo 2009. Ou melhor, em “4 de dezembro de 2009, dia das tempestades, dos ventos, Dia de Iansã“. Mesmo tanto tempo depois, esse vídeo corre pelo Twitter/X, Instagram e Facebook. “Ele viralizou antes do uso da expressão. A Globo, que havia acabado de me contratar, veio com a sua assessoria de comunicação tentar me ajudar a contornar isso já que ninguém sabia como administrar o sucesso do vídeo. Eu fui tida como doida, mas falo ali da importância de ser consciente e ligada com seus valores – mesmo aqueles com os quais nem eu mesma estava tão ligada na época. Aquele vídeo foi de uma grande lucidez e de uma grande felicidade”.
Sobre aquela época, na qual dava vida à Domingas, Carolinie problematiza: “Eu não construí uma identidade de uma mulher gorda, que se aceita de dentro para fora. Ser uma mulher gorda até bem pouco tempo não estava num lugar de empoderamento, mas de desajuste. Foram anos para aprendermos a cultivar afeto e amor. Fui muito exposta, mas ao mesmo tempo é um personagem que me abre possibilidades e pessoas que ainda a amam e que são gratas a ela por verem corpos semelhantes na tela. Eu queria ter tido a cabeça que tenho hoje sobre aceitação e pautas sobre gordofobia”. E ela encerra com um questionamento: “Será o que o audiovisual se desgarrou isso? Acho que não”.
Eu carregava muitas mágoas da carreira. Fiquei muito famosa aos 18 anos e, depois, a queda também foi muito brusca, tendo dois bebês dependendo de mim. Hoje me tornei doula, passei a estudar outras coisas como a disciplina positiva e a educação não-punitiva. [Me recolhi da profissão de atriz] por que eu cresci com a voz da minha mãe dizendo que trabalhou muito e não viu a mim ou às minhas irmãs crescendo. Mas hoje voltar ao palco é um reencontro, por mais que a conta nao feche – Carolinie Figueiredo
AR DE MATERNAR
O retorno de Carolinie ao teatro se dá junto à parceria de Samara Felippo. Fazer uma montagem onde o mote é a maternidade, para Carol é “um ritual, uma cura coletiva. As pessoas ficam chocadas, choram, gargalham… É impressionante. Sempre qu estamos no palco, lembramos da importância de ressaltar que há mulheres que atravessam a maternidade sozinhas, e que muitas se julgam injustiçadas, excluídas. Qundo a gente encara isso de maneira crua, verdadeira e honesta em cima, essas mulheres se reconhecem. (…) Há 10 anos gestamos essa peça e recentemente e tive esse insight de que a nossa montagem trata-se de uma retomada de poder feminino para aém da maternidade”.
Por diversas vezes tive a impressão de que deixei as coisas relacionadas a mim de forma meio capenga. A promessa de uma carreira que poderia ter sido e que aos 21 anos eu estava no auge, no pós-Malhação, e na qual eu era tida como atriz revelação e que foi interrompida para ser mãe… Eu, minha mãe e minha avó tivemos filhos com a mesma idade. Maternar exige muito da mulher e ficamos sempre com a sensação de que estamos erradas ou somos insuficientes. Poder falar sobre isso é otimo e ver essas contradições no palco, também – Carolinie Figueiredo
Fruto de uma geração na qual as crianças eram punidas com dureza ou que havia forte competição entre meninos e meninas, Carolinie dá outra perspectiva aos filhos “a desconstrução de estereótipos para não cairmos na repetição do sexismo. Mesmo me reconhecendo uma mulher feminista, por vezes me via reproduzindo o machismo na educação deles. Estimulo-os a serem criativos, confiarem neles mesmos, serem autônomos”. Ainda que tenha vvido um caso de violência obstétrica e do qual acredite ser importante discutir sobre, a atriz não se aprofundou tanto nisso, em respeito aos filhos. Mas desabafou: “Demorei um ano para poder entender que tinha acontecido”.
Nós, mulheres, estamos expostas às violências. E quando uma revela estar vivendo, toda sociedade pede que ela se cale. Crescemos ante a tantos abusos psicológicos e violências emocionais que não sabemos nossas fronteiras e direitos – Carolinie Figueiredo
Quando fala sobre ser mãe, Carolinie orgulha-se tanto da cria como do trabalho. E como todas mulheres, convive com a beleza e a culpa, com o orgulho e o medo e a oscilação entre individualidade e generosidade. “Estar no teatro implica em perder a formatura de um filho e a feira de ciências deoutro. É um coração que fica dividido”. Belo e humano sentimento de quem, no mesmo longínquo 2009 pediu “luz para fazer coisas diferentes em mim, no mundo, nas pessoas”. Sua filha é Luz, seu menino, Téo – do grego, deus. Que é ser mãe, senão saber que de si há a beleza de fazer nascer a luz de Deus?
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