Lucy Ramos sobre como ser antirracista: “Estude e repreenda aqueles que se acham melhores por causa da cor da pele”


A atriz abre a série ‘Como ser antirracista?’, um espaço para aprendizados, reflexões, e troca de conhecimento sobre atitudes e mudanças urgentes para combater o racismo estrutural: “Ainda não vivemos em um país em que negros e brancos têm as mesmas oportunidades. Ainda não vivemos num mundo em que a cor da pele não seja uma questão. Negros morrem muito mais. De fome ou pela violência. Todos os dias. De acordo com a ONU, a cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil. Setenta e cinco por cento dos jovens que morrem em homicídios são negros, que também representam 75% dos que vivem na pobreza. Não podemos naturalizar isso. Não é natural. Se você quer mudar essa realidade, seja a diferença, mude comportamentos, divulgue os profissionais negros, reveja o seu vocabulário”

*Por Brunna Condini

Com os recentes casos de violência policial contra negros e as manifestações ‘Vidas Negras Importam’ (Black Lives Matter) surgiram vários movimentos em defesa de atitudes e solidariedade antirracista. Muito se ouviu de que não basta não ser racista. É preciso ser antirracista. Mas o que isso significa exatamente? E mais, como não reproduzir o racismo em uma sociedade estruturalmente racista? De que forma todos nós podemos nos engajar verdadeiramente na luta antirracista?

Segundo Kaká Rodrigues, uma das líderes do Comitê Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil, a atitude antirracista escolhe a colaboração como estratégia de administração dos conflitos causados pelo racismo. Esta é uma atitude tanto assertiva quanto cooperativa. Ao colaborar (no caso, brancos antirracistas) se procura trabalhar com a outra pessoa (cidadãos negros), tendo em vista encontrar uma solução que satisfaça plenamente os interesses das duas partes”. A filósofa e escritora Djamila Ribeiro em seu Pequeno Manual Antirracista (Companhia das Letras) nos diz que “o racismo é um sistema de opressão que nega direitos e não um simples ato da vontade de um indivíduo”. A autora afirma que reconhecer o caráter estrutural do racismo pode ser paralisante. Mas é preciso encarar e repensar diariamente o impacto das nossas ações e nos responsabilizarmos ativamente pela mudança, já que a prática antirracista é necessária, e se constrói no aprendizado e nas ações cotidianas.

Partindo destas e de tantas outras questões que povoam a discussão ao redor do tema, nós, do site Heloisa Tolipan, criamos mais um espaço para reflexões, troca de informações, conhecimento e experiências. Um lugar de aprendizado, e escuta para quem quiser mergulhar no assunto. É importante estarmos atentos para não tentarmos diminuir o racismo estrutural que existe em nossa sociedade. É preciso estar aberto para escutar pessoas negras dizendo o que é ser negro em uma sociedade racista.

E quem abre a série, ‘Como ser antirracista?’, é a atriz Lucy Ramos. Convidamos Lucy para ser aquela que dá boas-vindas às matérias sobre o assunto e coloca a discussão na mesa. Ela topou prontamente e escreveu seu texto com afeto e cuidado. Lucy sabe que é preciso estar atenta, mas que também é preciso abrir o diálogo. Ela é potente e generosa, mas também é delicadeza e inspiração.

“Falar sobre racismo, dar visibilidade para o movimento antirracista, é trazer consciência e educação para a nossa sociedade”(Foto: Fabiano Pedrollo)

Com a palavra, Lucy Ramos:

“O convite para participar dessa série chegou em um momento de muita reflexão. Em uma semana em que eu quis ouvir os meus semelhantes, me aprofundar ainda mais nessa causa que é tão importante. Apesar de todo o conhecimento que tenho é preciso estar atento com essa luta que vem de muitos séculos. Não é fácil falar sobre os movimentos antirracistas, não podemos ser simplistas e ignorar séculos de negação a que o povo negro foi submetido. E é preciso lembrar isso todos os dias sim, porque naturalizamos o que não pode ser naturalizado. Vivemos em 2020 situações que são frutos dessa história cruel e que, muitas vezes (quase sempre), tenta ser apagada. O preconceito existe, o racismo existe… E só quem sabe é quem tem na pele e no sangue essa ancestralidade africana. Não podemos desqualificar a nossa história. Não é mimimi. É real, é sofrido e nos mata.

Já ouvi e li muitos absurdos por aí. “Mas ele se enquadra no perfil de bandido”. Por que o negro é que se enquadra nesse perfil? Fato é que não podemos perpetuar discursos que alimentam essa engrenagem e devemos sim repreender quando eles acontecem. E nos repreender também, caso alguma atitude nossa enfraqueça essa luta.

É muito complexo falar sobre esse tema quando encontramos mecanismos que não nos contam a nossa história. Vamos falar sobre educação? A maneira como aprendemos a história brasileira é simplista e nega aos negros, maior parcela da nossa população, o entendimento sobre o nosso passado. Aprendemos que o Brasil foi descoberto em 1500, em seguida chegaram os negros escravizados (que eram sequestrados, roubados de sua terra, que vinham obrigados. Nenhum negro chegou ao Brasil num lindo cruzeiro. Aliás, desde sempre, nós lutamos, nos rebelamos e tentamos mudar essa realidade). Séculos depois, a Princesa Isabel, num ato totalmente “altruísta”, assina a abolição da escravatura em 13 de maio de 1888 (lembrando que os primeiros escravos chegaram por aqui em 1530).

Foram 350 anos até uma lei que libertava os escravos. Depois disso, pronto! Acabou a escravidão no livro de história. Tudo perfeito. Vida que segue! Essa narrativa me incomoda muito, porque aquele negro agora liberto, ele não tinha terra, ele não tinha estudo, não tinha profissão, não tinha casa… Ele não tinha nada! A liberdade chegou junto com uma conta muito alta, que pagamos até hoje, 132 anos depois. Para os escravos libertos, o futuro era um convite à miséria, a moradias desumanas, à falta de oportunidades, a todo tipo de preconceito. A abolição não chegou com nenhuma iniciativa social que inserisse aquelas pessoas no mercado de trabalho, por exemplo. Nenhuma contrapartida para atenuar séculos de maus-tratos. Além de nos abandonar à própria sorte, o Estado Brasileiro foi ativo criando legislações excludentes.

A liberdade chegou com um pacto com a desigualdade. Com tudo isso, eu pergunto: as oportunidades entre pessoas brancas e negras são iguais? Não podemos falar em meritocracia. É desrespeitoso demais com uma história tão cruel e dura. O Brasil ainda tem dificuldade de admitir que é racista.

Quando eu vejo as pessoas se unindo em movimentos antirracistas, eu sinto esperança de um futuro melhor. E eu quero acompanhar esses movimentos, quero fortalecer narrativas que precisam ser escutadas e elevadas. Meu povo é um povo que lutou muito, enfrentou muita dor e superação. Somos descendentes de pessoas que não tinham direito a liberdade, que levavam chibatadas como castigo, que sofreram todos os tipos de humilhação e dor física possível. Ainda hoje, pessoas negras sofrem e morrem não só por causa da cor da pele, mas por um Estado que se estrutura na raça. É triste!

Falar sobre racismo, dar visibilidade para o movimento antirracista, é trazer consciência e educação para a nossa sociedade. Como pessoa pública, artista, eu sinto a necessidade de me posicionar de acordo com o que eu acredito. Usar minha imagem e voz para potencializar essa causa e ser ponte para quem precisa de espaço. Toda história negra é minha história. E essa consciência está cada vez mais desperta em mim e aprendo muito a cada dia, pois isso não está enraizado na minha educação.

Lutamos por direitos iguais para todos, independentemente da cor da pele. Temos alguns avanços, vejo negros cada vez mais conscientes e ocupando os espaços. Já somos professores, médicos, juízes, advogados, psicólogas, doutores… Já estamos mudando no presente o nosso passado. Mas ainda falta caminhar para um futuro com mais igualdade e sem preconceitos.

Não basta não ser racista, tem que ser antirracista. De que forma você pode somar? As pessoas precisam rever seus vocabulários. Tem certas palavras ou expressões que ofendem, machucam. Se você usa expressões pejorativas e marcadas pela perpetuação do racismo, reveja os seus atos. Não existe desculpa para o racismo. Informação é o melhor caminho. Mudar sua forma de falar pode parecer pouco, mas contribui muito para uma geração que está vindo e entenderá com muito mais facilidade o porquê de não usar essas palavras e porquê de o racismo ser tão cruel.

Ainda não vivemos em um país em que negros e brancos têm as mesmas oportunidades. Ainda não vivemos num mundo em que a cor da pele não seja uma questão. Negros morrem muito mais. De fome ou pela violência. Todos os dias. De acordo com a ONU, a cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil. Setenta e cinco por cento dos jovens que morrem em homicídios são negros, que também representam 75% dos que vivem na pobreza.

Não podemos naturalizar isso. Não é natural. Se você quer mudar essa realidade, seja a diferença. Estude, revisite a história do nosso país, mude comportamentos, ensine e repreenda aqueles que se acham melhores por causa da cor da pele, divulgue os profissionais negros, reveja o seu vocabulário… Mesmo que você seja um em dez, você já será menos um perpetuando o racismo estrutural. Repense as atitudes e posturas. Eu tenho feito isso. Não tenho todas as certezas do mundo, mas sei que eu quero colaborar para um futuro mais digno para os meus semelhantes. Nenhuma grande mudança acontece de um dia para o outro. É construção diária. Eu, Lucy Ramos, desejo um futuro melhor, por isso, aceitei esse convite, porque podemos, no afeto e diálogo, criar uma realidade mais justa e igualitária”.

“Lutamos por direitos iguais para todos, independentemente da cor da pele. Temos alguns avanços, vejo negros cada vez mais conscientes e ocupando os espaços” (Foto: Fabiano Pedrollo)