* Por Carlos Lima Costa
Atriz de musicais de sucesso, a brasileira Livia Dabarian, 33 anos, radicada desde dezembro em Madri, começa a trilhar uma carreira em terras espanholas, estreando em 9 de outubro, no papel da antagonista Killer Queen, no musical We Will Rock You, que, em 2016, ela protagonizou no Brasil. Quem a vê no palco, não imagina que há dez anos ela pesava 105 quilos e, na época, se submeteu a cirurgia bariátrica. “A vida inteira batalhei contra o sobrepeso. Fui para Nova York ao ganhar uma bolsa de estudos (ela se formou em teatro musical pela American Musical and Dramatic Academy). Estava sozinha sem minha mãe, que sempre me ajudou a segurar a rédea, para cozinhar. Então, Cup Noodles e Mcdonald’s eram mais barato para eu me alimentar no dia a dia. Nessa linha de raciocínio cheguei aos 105 quilos muito rápido com 21 anos”, lembra.
Isso começou a afetar a vida profissional. “Na adolescência, fiz muitos testes para novelas da Globo e eu sempre ouvia: ‘Se você perder dez quilos’, e eu sempre tive perto dos 60. Agora, a fase mais difícil foi essa em Nova York, indo para audições de teatro musical. Das meninas que estavam ali competindo por um papel comigo era sempre aquele olhar torto, aquela risadinha. Muitos diretores de elenco falavam: ‘mas não é um papel específico para você’. Querendo dizer que eu só poderia fazer o papel de uma gorda. O Hairspray é o único musical que uma gordinha poderia fazer, porque conta a história de uma gordinha. Isso machucava bastante”, recorda.
Mas ela enxerga uma luz no fim do túnel. Acredita que mudanças estão ocorrendo e cita como exemplo o musical das Meninas Malvadas, da Broadway, onde a antagonista da história, a garota mais popular do colégio inteiro, atualmente vem sendo interpretada por uma atriz que veste manequim 44. “Ela é incrível, tem uma voz maravilhosa. É cheinha e não existe uma menção sobre isso no musical. E por que uma menina cheinha não seria popular no colégio? Sou otimista, confio que o pensamento coletivo vá mudar com relação a isso. Ainda tem muito chão para correr com relação ao preconceito de uma forma geral, racismo, machismo, a homofobia, mas creio que hoje em dia existe um diálogo mais aberto. Lá atrás, quando morava em Nova York, só de falar isso eu já seria um motivo de chacota total: ‘Nossa, uma gordinha quer fazer uma protagonista na Broadway’, seria inviável. Então, pelo menos o nosso meio está começando a abrir os olhos para isso e espero que siga assim”, torce.
Livia também foi afetada por dificuldades físicas no período de um ano e pouco que esteve acima dos cem quilos. “Nessa época, fiz o Dançando na Broadway, no Canal Multishow, um reality com atores e cantores que estavam em Nova York. O meu sobrepeso me dificultou para poder continuar, tinha muitos problemas de tornozelo e estava pré-diabética. Senti no corpo, porque a jornada de um ator de teatro musical é praticamente a jornada de um atleta. A gente tem que dormir e comer bem, porque é um exercício físico muito grande”, explica.
Forte, Livia nunca se deixou abater pelos comentários. “Eu não cheguei perto da depressão, porque sempre fui uma pessoa pra cima e tive um apoio familiar consistente. Mas próximo da operação bariátrica, eu fiquei muito triste quando tentei cruzar as pernas e não consegui. Isso me fez ter uma crise de choro absurda. O único momento que eu me lembro de ter baixa autoestima foi esse. Foi um sentimento interno, de até onde eu tinha deixado essa situação chegar”, pontua.
Foi a luta contra a balança que de certa forma a colocou no caminho da trajetória artística. “Com três anos de idade o pediatra disse que eu estava acima do peso. Sempre sofri com essa tendência a engordar. Minha mãe me colocou para fazer dança por recomendação médica para que eu conseguisse emagrecer”, lembra ela, que logo que se submeteu à bariátrica, perdeu 50 quilos. “Continuo comendo pouco. Hoje, consigo manter uma normalidade saudável. Não fico mais passando fome, morrendo de dor de cabeça nem sacrificando a vontade de experimentar, por exemplo, a culinária espanhola para voltar aos 50 e poucos quilos”, afirma.
Com cidadania espanhola, Livia planejava a mudança antes do surgimento da pandemia e conseguiu fazer a mudança em pouco tempo. “Eu, meu marido (o ator Alírio Netto) e minha mãe viemos para a Espanha buscar um estilo de vida diferente e rolou a coincidência de abrirem as audições para essa peça três meses depois que a gente chegou”, explica ela, que chegou a fazer testes tanto para a protagonista quanto para a antagonista. “A Scaramouche tinha que ser realmente uma menina espanhola, que dominasse 100% a língua, então, acabei enveredando para a vilã que tem a licença poética de ter um sotaque diferente, falar palavras meio americanizadas. Estou realizada e amando a experiência de estar aqui e poder viver o lado oposto dessa história”, vibra.
Apesar do título da peça ser homônimo a um clássico do Queen, o musical não é sobre a história da banda. “Ele é um produto do Queen, com suas músicas, o elenco é escolhido pelo Queen, mas é uma história fictícia superfuturista. A minha personagem é uma ditadora que conseguiu tomar conta da internet e baniu o rock’n’roll, porque era uma forma de individualismo e de ser rebelde. Aí existem os boêmios que são a resistência. Eles buscam um último instrumento que foi escondido pelo Queen para libertar o mundo dessa ditadora maluca que quer controlar todo mundo falando que a arte não serve para nada. É muito louco, mas é muito atual. Falo para as pessoas, você pode olhar para a história e achar que é a maior viagem do mundo, mas se você prestar atenção aos fatos que estão acontecendo hoje talvez não estejam tão distantes”, explica.
Foi na montagem brasileira que ela conheceu o marido. Os dois faziam par romântico. “Nosso primeiro beijo foi no ensaio e ai a gente já falou: ‘Tem algo aqui, olha essa cena não está boa, vamos lá em casa para a gente passar ela até a exaustão, até ficar boa’ (risos).” A gente tentou muito não se apaixonar, porque podia dar muito certo ou podia dar muito errado, mas nos apaixonamos loucamente. Não conseguimos segurar. Ele me pediu em casamento no palco no meio da temporada, no Dia dos Namorados”, conta. A cerimônia aconteceu em outubro de 2017.
Antes de se instalar em Madri, morou em Londres e Nova York, e conheceu diversos países durante um ano em que trabalhou como cantora no navio de cruzeiros Island Star. Diante da nova frente de trabalho que se abre, ela explica os planos em relação a retornar a viver no Brasil. “É uma pergunta que eu mesma me faço. Eu, meu marido e minha mãe estamos apaixonados por aqui, mas acredito que ‘pra sempre’ é muito tempo. Existem tantos lugares incríveis no mundo que a gente realmente não sabe se fica aqui pra sempre, porém planos de voltar a viver no Brasil pelo próximos anos não há. Vamos voltar esporadicamente para realizar algum trabalho ou visitar a família, mas mantendo a base aqui”, comenta ela, que foi imunizada com as duas doses da vacina contra a Covid-19, em Madri.
“Desde que cheguei na Espanha, em dezembro de 2020, percebo que todo mundo leva muito a sério o uso de máscara e o distanciamento. Então, existe uma estabilidade. Ainda tem alguns casos de coronavírus, mas os registros não tem mostrado mortes em Madri. Na semana passada liberaram a plateia toda nos teatros. Obviamente você tem que estar vacinada para poder entrar e o passaporte de vacinação é pedido”, explica.
Na Espanha, diante das notícias que recebe do Brasil que se aproxima da trágica marca de 600 mil mortos, não deixa de pensar nos parentes e amigos. “A sensação é de desespero e uma preocupação absurda. Não entra na minha cabeça como as pessoas não conseguem pensar no coletivo. Não consigo entender como as pessoas se recusam a fazer algo tão simples para um bem maior. Então, a preocupação é gigantesca. Na Espanha, se não me engano, mais de 90% da população já tomou as duas doses. Como você não vai ser a favor de uma vacina? Me faltam palavras para conversar com uma pessoa dessas”, ressalta.
Livia reflete também sobre ações do governo em relação à cultura nesse período. “Pelo que conversei com colegas de trabalho daqui, a ajuda do governo foi essencial e fez com que eles pudessem sobreviver durante toda essa fase. E também tendo acesso a saúde. No Brasil, a princípio, quando o vírus surgiu, eu estava trabalhando como diretora residente no musical Donna Summer, em São Paulo, e a produtora, a Atual Produções, fez questão de ajudar o elenco, manter parte do salário e distribuir cesta básica para as famílias dos técnicos. Mas grande parte dos nossos colegas do Brasil não teve essa ajuda. As pessoas tiveram que procurar outras funções para se manter. Foi difícil”, analisa.
A atriz traça um paralelo ao lembrar quando soube da lista de trabalhadores fundamentais e não viu nada relacionado às artes. “As pessoas estavam em casa assistindo Netflix, ouvindo Spotify, vendo lives ao vivo para poder desopilar da situação. Essas pessoas que estavam consumindo arte online tinham coragem de falar que arte não era essencial. Isso doeu muito para toda a classe. A gente se sentiu descartável, no sentido de que quando é para assistir de graça o que fazemos, eles adoram. Mas para ajudar os trabalhadores ninguém nos considera essenciais. Aqui na Espanha, a classe não precisou passar por isso de ter que implorar ajuda, pois já é totalmente subtendido de que a arte faz parte da educação e da formação de um indivíduo. Essa diferença de mentalidade entre Brasil e Espanha foi o que mais me doeu”, desabafa.
Com cinco anos de idade, ela participou de seu primeiro musical, Procura-se Um Amigo, no Rio de Janeiro. “Tenho memórias incríveis de coxia e de ensaio, de ali já ter certeza de que era isso que eu queria fazer”, frisa. Gravou comerciais e, aos 8 anos, entrou no grupo musical Oxgênios e cantou em variados programas. “Na Xuxa era todo final de semana. O auge foi o último episódio do Xuxa Park, quando ela estava grávida da Sasha, e a Marlene (Mattos) pediu para que eu cantasse sozinha uma homenagem surpresa. Até hoje quando a gente se fala ela pede para eu cantar a música Buá. Esse momento foi muito marcante para mim.” Com 11 anos, esteve no programa Gente Inocente. “Eu fazia participações. Por exemplo, quando a convidada foi a Claudia Raia, eu cantei Não Fuja da Raia, era como se a representasse.” Em seguida, com o curta Desastres de Sofia, ganhou prêmio de atriz revelação. “Foi muito legal, me abriu os olhos para outra possibilidade de carreira, a do audiovisual, e me apaixonei por cinema. Aí, com 13 anos, fiz o filme O Vestido, com a Gabriela Duarte, uma experiência maravilhosa.” Durante a adolescência atuou em vários musicais. “Eu só queria estar no palco cantando, foi incrível”, recorda.
Aos 17 anos, apareceu a oportunidade de cantar em um navio de cruzeiro. Mesmo muito jovem e sozinha pelo mundo (ela foi emancipada aos 15 anos), explica que nunca passou por uma situação de assédio, por exemplo. “Eu dei sorte. Antes dessa experiência, minha mãe esteve sempre do meu lado que nem um buldogue, me ensinou e me guiou para ficar de olho aberto. Mas a experiência do navio foi ótima. Até hoje sou amiga de todas as pessoas com quem trabalhei, temos um grupo no WhatsApp”, conta.
Financeiramente, a fase também foi excelente. “Eu era uma menina de 17 anos ganhando dois mil dólares por mês sem ter uma conta para pagar. Trabalhava longas horas. Eram dois shows de duas horas cada por noite, mas não era sacrifício, porque sempre amei o que eu faço. Foi um sonho, porque eu viajei o mundo inteiro, então, foi uma fase de desfrutar. O amadurecimento veio depois, com a desilusão, quando ao retornar ao Brasil voltei a ganhar em real. Aí veio a realidade e o amadurecimento, com certeza”, explica.
Abandonar o cruzeiro e retornar para São Paulo foi uma opção. “A vida em um navio é sedutora. Só que, ao mesmo tempo que você sente muita liberdade, que o mundo é seu, você percebe que não constrói nada. Veio a sensação de que não ia construir uma carreira sólida ficando em um navio forever”, relembra ela, que, posteriormente, no Brasil, atuou em espetáculos como Chacrinha, o Musical e Vamp, o Musical.
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