*Por Simone Gondim
Com o isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus, a internet, mais do que nunca, tem sido fonte de informação e distração. Nesse contexto, uma mania entre artistas – que começou desprentensiosamente – está dando o que falar, para o bem e para o mal: as lives musicais. Sejam as superproduzidas e em parceria com canais de TV, como a do DJ Alok, realizada no megapartamento em um condomínio de luxo em São Paulo, que quase deixou o síndico em uma saia justa por causa do barulho, ou as mais intimistas, como a da cantora Teresa Cristina, feita diariamente na residência da artista, no Rio de Janeiro, transmitida via Instagram e bastante elogiada justamente por ser zero ostentação, privilegiando o conteúdo.
O que começou como uma ótima ideia – levar diversão a quem está em casa e conferir um pouco de leveza em tempos de Covid-19, aproveitando para angariar doações aos mais necessitados – rapidamente virou alvo de críticas. “A live se torna um grande problema quando é apenas para ostentar, dizer ‘olha como eu sou moderno e consigo ter um milhão de seguidores’, porque anula todo o discurso envolvendo o lado social”, afirma o escritor e pesquisador Valmir Moratelli.
A primeira apresentação da dupla sertaneja Jorge & Mateus, por exemplo, embora tenha reunido 3,2 milhões de pessoas assistindo simultaneamente e arrecadado, segundo os organizadores, 172 toneladas de alimentos, dez mil frascos de álcool gel e 200 cursos para a área da saúde, envolveu uma equipe de 18 integrantes, desrespeitando claramente uma das regras da quarentena: a do distanciamento. Outro show problemático foi o do cantor Gusttavo Lima, que se tornou alvo do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) por conta de ações publicitárias de bebida alcoólica – ele apareceu bebendo diante das câmeras, sem restringir a transmissão a maiores de 18 anos. Já o sertanejo Eduardo Costa, que se apresentou em 1º de maio ao lado do cantor Leonardo, usou o próprio Instagram dias depois para dizer que pensava em desistir da carreira artística – ele foi massacrado na internet após chocar os fãs durante o show, fazendo comentários machistas e soltando vários palavrões.
Segundo Valmir Moratelli, de nada adianta aproveitar o lado beneficente das lives para aparecer. “Ajudar alguém é não usar isso como autopromoção nem esperar retorno financeiro, porque caso contrário, deixa de ser ajuda e vira marketing pessoal. Em várias lives, esses significados andaram se misturando muito nos últimos dias”, observa.”Empresas e muitos artistas vêm usando a boa vontade do público e de seus seguidores para imprimir essa imagem de benevolência com causas sociais. Antes de mais nada é preciso manter a cabeça no lugar. O consumidor não vai sumir dali, o público não vai desaparecer. Artistas e empresas não precisam entrar em desespero para se exibirem a todo custo”, acrescenta.
Mesmo lives consideradas bem-sucedidas e bastante elogiadas por uma plateia de anônimos e famosos, como a da cantora Ivete Sangalo, acabaram criticadas por causa de inserções publicitárias consideradas muito agressivas – entre uma canção e outra, a baiana citou o nome de algumas marcas, como as de uma empresa de alimentos e uma operadora de telefonia celular, junto a pequenos textos. O show teve transmissão simultânea na TV e na internet, com um clima calculadamente intimista. Usando pijama, Ivete transformou a cozinha e a sala de sua casa em palco, com a participação do marido, Daniel Cady, e do filho Marcelo, de 10 anos. “Gera incômodo quando o artista fala de alguma empresa primeiro e só depois vem a música. Por que não fazer uma live anunciando antes quem são os patrocinadores? E o mais importante: dizer se essas marcas estão doando, o valor oferecido e para quem vai esse dinheiro. Não se pode capitalizar de forma vil uma situação como a que estamos vivendo”, explica Valmir.
Valmir Moratelli defende a espontaneidade na hora de fazer lives. “Live se faz ligando o celular em casa e falando com quem está ao vivo. É simples, rápido e ágil. Quanto mais organizada e produzida, menos espontânea. E as redes sociais exigem verdade. O público sabe identificar quem está sendo ou não espontâneo nos seus recados. Nesse sentido, a teatralidade não cabe nesse tipo de apresentação”, diz.
Alguns artistas, entretanto, exageraram um pouco na espontaneidade. Várias pessoas que acompanharam a live de Luiz Carlos, vocalista da banda Raça Negra, levantaram a hipótese de o cantor, visivelmente alterado, estar bêbado durante o show. Ele negou, avisando que só poderia beber água por causa das restrições impostas pelo Conar. Já a cantora Ludmilla levou um tombo e caiu na piscina enquanto cantava uma versão de “Planos impossíveis”, de Manu Gavassi, participante do “BBB20”. Ela não se machucou, mas fez questão de frisar que o pequeno acidente era facilmente evitável. “Alguém poderia ter botado uma proteção ali”, reclamou.
Um dos artistas que montou uma estrutura mais enxuta para transmitir shows foi Lulu Santos. Ele fez questão de manter o isolamento: os músicos que o acompanharam na live gravaram as participações sem sair de casa. Na hora da transmissão, cantor e banda foram sincronizados graças a um jogo de câmeras. A sertaneja Marília Mendonça também chamou a atenção dos fãs pela simplicidade de sua apresentação. Calçando chinelo de dedo, usando pouca maquiagem e com as unhas por fazer, a cantora deixou claro que estava sem a banda para reduzir ao máximo o número de pessoas envolvidas na produção da live. Ainda assim, ela alcançou 3,2 milhões de pessoas no YouTube e arrecadou mais de 225 toneladas de alimentos.
Para Valmir Moratelli, as posturas de Lulu e Marília foram corretíssimas. “Não sou contra o entretenimento, muito pelo contrário. Mas as pessoas precisam entender que ficar em casa é obrigação, a menos que a saída seja para resolver algo essencial. A live é uma maneira de se comunicar, prender a atenção de quem assiste”, pondera. “Saber que um artista só está fazendo live para que os outros doem e seus fãs achem ele bacana, engajado, é um tiro no pé. Acho irresponsável fazer uma live pregando que todos fiquem em casa, mas estão lá 30 pessoas ao redor para cuidar de tudo”, completa.
O escritor e pesquisador ressalta que não é contra as lives, só lembra que é preciso um certo cuidado. “Não tem como a gente ficar cantando em uma live achando que tudo está ok. Se tem alguém lucrando com isso, lá na frente vai ter que se ver com esse público. O entretenimento é mais do que necessário no momento atual, mas não pode ser relegado a um discurso vazio de festa para poder beber em casa. É preciso que as pessoas entendam claramente que só está acontecendo uma live porque não é possível ir para a rua se divertir nos shows ao vivo”, esclarece.
Valmir acredita que as lives estão longe de ser um fenômeno passageiro. “Antes da pandemia começar para valer no Brasil, já vinham lives interessantes acontecendo. Agora, com toda a programação de entretenimento da televisão aberta suspensa, as redes sociais ganharam um foco muito interessante. Depois que tudo isso passar a gente tende a buscar outras formas de diversão e ficar menos em casa, mas acho que a ferramenta veio para ficar”, argumenta. “O interessante é que o artista volta a ser valorizado no instante em que se discute, de forma mesquinha, que a cultura é algo secundário. Na pandemia, se não fossem os filmes, as novelas, as músicas e os livros produzidos pelos nossos artistas, como sobreviveríamos diante de uma realidade tão dolorosa como a que estamos passando?”, questiona.
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