* Por Carlos Lima Costa
Desde o início da pandemia da Covid-19, para manter a dignidade, uma grande parcela da população se reinventa e dribla as adversidades. Jorge Omar Iglesias, argentino naturalizado brasileiro, que há 50 anos criou a personagem Isabelita dos Patins, figura carismática no Brasil, em especial na sociedade carioca, está entre os que enfrentam o baque. Desde março de 2020, quando mudamos nossas vidas por conta do isolamento social, ele ficou impossibilitado de trabalhar fazendo presença em variados eventos e festas, como de costume.
Até outubro, o único dinheiro que ganhou foi vendendo sua boneca, caneca e leque, entre outros produtos com sua imagem e semelhança pelo Facebook ou por e-mail. Quando houve a flexibilização, todos os sábados, das 9 às 14h, vem comercializando os mesmos em uma barraca na Feira de Antiguidades da Praça XV, no Centro do Rio. “Todo mundo precisa trabalhar, também tenho essa necessidade. Não tenho coronel nem general para pagar as minhas contas, então, a minha solução foi exatamente a feira. Se tiver que vender cachorro-quente na esquina, vestido de Isabelita, eu vou vender, não é vergonha nenhuma, pois tenho que sobreviver. Todo mundo fala: ‘Isabelita, você é famosa no Brasil inteiro.’ Claro, tenho fama, mas não tenho grana, tenho que correr atrás”, pontua.
E frisa que não chegou a passar necessidades. “Graças a Deus, tenho bons amigos. Quando tenho um aperto, ligo para um, para outro e aí depositam uma ajuda na minha conta”, acrescenta Isabelita, que antes da pandemia, quando trabalhava a todo vapor, marcava presença em outra feira de artesanato, mas apenas no primeiro sábado de cada mês.
Hoje em dia, por conta do clima quente que tem feito não tem ido à barraca vestido de Isabelita. “Um dia, fui de menino, mas com a cara pintada. Não aguentei, o calor começou a soltar os cílios, as pedras, a derreter a maquiagem. Desde então, vou somente de menino”, explica. Assim, como não está montado, muita gente não o reconhece. “Mas é gostoso e é uma maneira de eu sobreviver. O que me interessa é vender, trazer dinheiro para casa. Então, quem quiser colaborar comigo e comprar algo, eu agradeço a Deus”, observa. Atualmente, muitos fãs encomendam algum item pela internet e vão buscar o produto na feira.
Jorge chegou no Brasil em 31 de julho de 1970 e aqui nasceu sua personagem. Mas ganhou maior notoriedade e fama internacional, em 1993. A drag queen foi contratada para receber um convidado em uma boate, em Copacabana, onde foi desafiada a ir caracterizada até o Hotel Copacabana Palace (atualmente Belmond Copacabana Palace). “Eu acabei parando do lado de um senhor de braços cruzados e coloquei a mão em cima do ombro desse homem. Quando fiz isso, surgiram 20 fotógrafos. Me perguntaram quem eu era. Respondi que era uma figura folclórica do Carnaval do Rio. No dia seguinte, na primeira página de quase todos os jornais tinha uma foto minha com esse homem. Ele era simplesmente o Ministro da Economia, Fernando Henrique Cardoso. Ali minha vida mudou da água para o vinho. Ganhei notoriedade no mundo, fui quatro vezes a Nova York, duas a Roma, Lyon e Paris, como Isabelita, a personagem que tem a cara do Rio de Janeiro”, lembra.
A paixão pelo Rio vem da infância, desde os nove anos quando ganhou do pai, que trabalhava nos Correios, um cartão postal com a foto da enseada de Botafogo. Nessa mesma idade, quando os pais se separaram, ele foi morar em Rosário, onde estudou no colégio Estados Unidos do Brasil. “Lá aprendi sobre a história e a geografia daqui, e o hino”, recorda. O pai tinha ainda um grupo, onde Jorge tocou instrumentos como atabaque e reco reco. E acabou sendo convidado para interpretar o Bumba meu Boi em uma apresentação do Centro de Estudos Brasileiros, em Buenos Aires. Na plateia, estava o Embaixador do Brasil. Com 13 para 14 anos ele foi trabalhar no Consulado do Brasil servindo café. Quando deixou o emprego, para se mudar para o Rio, já era auxiliar administrativo.
“Sou brasileiro naturalizado, nasci na Argentina por um acaso. Tenho um pavor de tudo que é de lá”, dispara. Ele não guarda boas lembranças. “Depois que vim para o Rio, nunca tive contato com minha família. Aqui sou mais feliz, tenho pessoas que me adotaram, como se fossem minha mãe, tia, sobrinha. A família é imposta, os amigos a gente escolhe. Sou a pessoa mais feliz do mundo morando aqui no Rio de Janeiro e sendo rodeado de bons amigos.”
Os três irmãos lhe viraram as costas por conta de sua opção sexual. “O único gay era eu. Então, era a Geni da família. Nenhum aceitou minha opção, a minha personalidade, porque aos 9 anos comecei a patinar. Isso lá, era como se eu tivesse fazendo balé, coisa de homossexual. Aqui no Brasil, não tive nenhum problema. Lá, lamentavelmente você tem que ter a linha machão, não pode sair do armário. Então, sofri muito”, frisa ele, que teve sua primeira experiência com um conhecido de seu pai. “Ele tinha um amigo lindo, um jogador, eu ficava enlouquecido vendo as pernas dele”, conta.
A opção sexual não lhe causou problemas no Brasil. “Tudo é a postura. Quando você respeita, você é respeitado. Quando estou de Isabelita, vou para os eventos sempre com uma cooperativa de táxi, sentado no banco da frente. Nunca um motorista, ao passar a marcha, passou a mão na minha perna. Ao contrário. A personagem Isabelita é muito querida, é respeitada, é família, não tem escândalo. Quando estou de Isabelita, eu me sinto uma bonequinha de biscuit. Eu não toco em ninguém, porque não quero que ninguém me toque. Agora, o meu leque tem um parafuso que sai do lugar, então, é uma arma para mim. Se for preciso desce um machão, um Jece Valadão (1930-2006) na Isabelita”, garante.
E prossegue sobre o tema do respeito. “Moro há quase 40 anos em um prédio que é da Marinha, tem coronel, general. Sou conhecido como o Senhor Iglesias, meu sobrenome. Eu saio de manhã, de tarde, de noite vestida de Isabelita dos Patins e nunca tive problema. Sou abençoado por Deus, porque o carinho que o povo tem com a Isabelita é impressionante”, reitera.
No Brasil, chegou a viver onze anos com um brasileiro, uma relação que terminou há mais de uma década e meia. Hoje, mora, apenas com seu gato, Bill. “Primeiro você casa, depois vira amigo e, em seguida, inimigo. Inimigo por que? Primeiro, é meu bem. Depois, quero seus bens”, reflete. E garante que não quer mais saber de amor nem sexo. “Com quase 73 anos, me sinto pessoa realizada e tudo é a cabeça. Com o tempo você se ocupa com outros negócios. Cada cabeça é uma sentença. Tem gente que tem 70 anos e tem um fogo do caramba. Estou tranquilo. Não sinto solidão, tristeza, porque sou rodeado de muito carinho pelos amigos”, observa.
Jorge fica emocionado com o movimento que viu surgir entre alguns deles quando completou 50 anos como Isabelita. “Querem fazer uma homenagem, uma exposição com meu acervo e estão batalhando para que me seja dado o título de cidadão carioca até o fim do ano. Então, nesse momento, espero com ansiedade chegar o dia que eu possa tomar a vacina contra a Covid-19 e depois que acabar essa pandemia, realizar o meu sonho de receber o Título de Cidadão Carioca”, afirma.
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