Discursos emocionados, histórias de superação, puxões de orelha na Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro e um objetivo em comum: a luta contra a discriminação cega, infundada e violenta. Foi assim que se deu a terceira edição do Prêmio Rio Sem Preconceito, um projeto da Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual do Rio de Janeiro, presidida por Carlos Tufvesson, e apresentado por uma dupla mais que animada, Marcelo Tas e Glória Maria, que tornou a noite de ontem (15/9) no Teatro Oi Casa Grande ainda mais memorável.
Dirigido por Guilherme Piva, o evento homenageou 12 personalidades, escolhidas por um júri formado por 26 jornalistas (incluindo HT), e que contou com artistas, militantes e personalidades que tenham se destacado nos últimos dois anos pelo combate a qualquer tipo de preconceito – e aqui entram os ataques por descriminação de raça, crença, deficiência, gênero, orientação sexual etc. Dentre eles, estava Kailane Campos, a menina de 11 anos que foi apedrejada em Vila da Penha, no Rio, após sair de um ritual de umbanda. “Esse convite foi especial porque chegou com um propósito. Eu nunca tinha sofrido nenhuma forma de preconceito antes desse incidente, e espero realmente que isso acabe. O preconceito só piora na nossa sociedade – hoje foi uma pedrada, amanhã pode ser um tiro”, disse a garota ao site, pouco antes de subir ao palco e receber o troféu com a seguinte declaração: “Eu respeito o amém de vocês. Respeitem o meu axé. Meu branco é da paz!”.
Quem também estava por lá era Jéssica Córes, modelo e atriz que interpreta a Lyris, de “Verdades Secretas”. Acostumada a ouvir as maiores ofensas possíveis na trama, de “top cotista” para cima, a moça contou para HT que, na vida real, é preciso ter força para aguentar esse tipo de situação: “Tenho orgulho de ser negra, mas, às vezes, a gente repara alguns olhares e finge que não percebe”, disse, comentando ainda que Marieta Severo chega a pedir desculpas antes das cenas pelo que vai dizer a ela.
Rogéria, entretanto, que teve uma participação de destaque em “Babilônia”, disse ao site que nunca passou por situações de homofobia: “A questão de eu sempre ter falado que sou Astolfo Barroso Pinto me ajudou bastante. Eu nunca passei por bullying, sempre fui o bullying da vida. E meto porrada em qualquer um que mexer comigo! Antes da novela, as pessoas me paravam na rua e pediam para que eu aparecesse logo. Depois, pediam para eu ir no programa da Fátima Bernardes! Pode me chamar de transexual, de transgênero, do que quiser – eu traço tudo. Só não venha para mim com preconceito. Isso é burrice!”, comentou.
A noite seguiu com apresentações da sempre incrível Simone Mazzer, e da nova sensação underground Johnny Hooker, que conseguiu até comover um fã a ponto de ele se levantar e sensualizar na frente do palco, interagindo com o cantor. Dentre as homenagens, Fernanda Honorato, “a primeira repórter com Síndrome de Down do mundo!”, como a própria frisou, conseguiu divertir e emocionar o público simultaneamente; Dráuzio Varella repetiu o discurso épico que se tornou um viral no Youtube; Thammy Miranda foi substituída por Antonia Fontenelle; Bruno Chateaubriand recebeu o troféu pela ex-ginasta Laís Souza, citando a situação difícil em que ela se encontra após o acidente que a deixou tetraplégica; a campanha inclusiva de O Boticário também foi reconhecida ao longo da cerimônia como um exemplo de coragem; o casal Gilberto Scofield Jr. e Rodrigo Barbosa ainda conseguiu tocar todos os presentes, ao realçar a questão de um mundo no qual o filho PH (que se tornou uma estrela involuntária pelo resto da noite) possa ser quem ele quiser sem precisar enfrentar qualquer forma de preconceito.
Durante o Prêmio Rio Sem Preconceito, duas homenagens emocionaram os convidados: a primeira, Betty Lago, que faleceu no domingo, e apareceu no telão do evento depondo a favor da campanha “CEDS – A sua voz contra o preconceito”, dizendo que achava abominável qualquer forma de preconceito e quase levando Glória Maria às lágrimas; a segunda, a Cazuza (1958 – 1990), cujo falecimento completa 25 anos em 2015 e, no palco, ganhou um tributo de Simone Mazzer e Johnny Hooker e ainda contou com a presença de sua mãe Lucinha Araújo, que subiu ao palco para receber o troféu e, momentos antes, desabafou com HT: “Eu posso falar do meu caso específico, com a AIDS, e sei que o preconceito é pior que a doença. Há muita gente sem caráter nesse mundo, não podemos parar de lutar”.
Um dos momentos cruciais para o evento foi a entrega do prêmio para Maria Júlia Coutinho, a Maju, garota do tempo do Jornal Nacional que foi alvo de comentários racistas na redes sociais há apenas alguns meses. Aplaudida de pé, a jornalista foi chamada ao palco por um discurso empolgado de Glória Maria: “Quando vi a Maju apresentando a previsão do tempo no Jornal Nacional, quase chorei. Esperei por isso mais de 30 anos! Eu a vi fazendo tudo o que eu sempre sonhei, mas não importa quanto tempo passou. Tenho a honra, o orgulho, o prazer, a felicidade e a alegria de convidá-la para subir”, disse. Ela, por sua vez, lembrou um encontro que teve com a ex-apresentadora do Fantástico há alguns anos. “Glória, você me olhou nos olhos e disse: ‘Sempre lute! Nunca deixe de lutar!’. Aquilo me deu uma motivação imensa!”, disse, com a voz embargada.
Outro grande discurso veio de quem também sofreu grande repressão online, mas menos diretamente, já que, nesse caso, a reação veio por conta de sua personagem em “Babilônia”. Nathalia Timberg, que recebeu o troféu Rio Sem Preconceito por ela e por Fernanda Montenegro – que não compareceu pelo aniversário de 50 anos de Fernanda Torres -, fez um discurso corajoso e de queixo erguido: “Nós aprendemos na escola a cantar ‘Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós’. Mas o que nós entendemos por liberdade? Com que direito estão cuspindo nela?”, indagou, antes de falar que ela e a mãe já foram verbalmente atacadas na rua por serem judias.
Ao longo da noite, o Grupo Corpo em Movimento, de Niterói, ainda fez uma performance incrível e inclusiva, com vários dançarinos em cadeiras de rodas, seguidos pelo stand-up comedy de Aloísio de Abreu e, posteriormente, pelo bailarino John Lenon da Silva, que fez uma coreografia ao som de “Morte dos cisnes”, enquanto o telão exibia os nomes de 563 vítimas fatais da homofobia, desde a última edição do prêmio. Alguns dos atletas paralímpicos que bateram recorde de medalhas no V Jogos Parapan-americanos também contaram suas histórias de luta e superação. E, em outro momento inspirador, a jornalista Cláudia Werneck subiu ao palco para receber o reconhecimento pela Escola da Gente, projeto que inclui crianças deficientes no ambiente escolar. Ao discursar, Cláudia, em um ato de coragem, parou em frente ao Secretário Chefe da Casa Civil da Prefeitura do Rio de Janeiro, Pedro Paulo Carvalho Teixeira, e disse: “Eu tenho o dever de, em frente a representantes do poder público, retratar uma realidade. A educação inclusiva no Rio de Janeiro é uma vergonha! As escolas não estão preparadas! E escola que não gosta de crianças não pode existir”, apontou, sendo aplaudida de pé, inclusivo pela filha Tatá Werneck, que exibiu um sorriso de orelha a orelha de tão orgulhosa.
E em noite de celebração à luta pelos direitos civis, nem Marcelo Tas, o apresentador do evento, saiu sem ser reconhecido, graças ao apoio que mostrou ao filho transexual, Luc Athayde, e ao combate contra o preconceito de representantes do poder público, como Jair Bolsonaro. Por sinal, Tas e Glória Maria protagonizaram momentos divertidos no palco, com piadas e trocadilhos entre os dois, inclusive tiradas sobre a idade da apresentadora. “Eu já falei para você não ficar comentando isso!”, disse Glória, que notoriamente não revela quantos anos tem. “Mas acabamos de falar que a Fernandinha Torres tem 50 anos!”, ele respondeu. “Problema dela! Eu falei para ela não ir envelhecendo, porque um dia iria me passar!”, riu a apresentadora, deixando claro o tom de brincadeira entre eles.
Ao receber o troféu, Tas comentou: “O medo foi citado várias vezes ao longo da noite e eu acho que isso resume o preconceito. Essas pessoas que matam e oprimem querem continuar com o medo dentro dos outros e, para isso, nós precisamos de coragem. Muita gente que me apoiou contra o Bolsonaro disse que queria derrubá-lo. Não temos que derrubar a figura dele, mas sim o tipo de pensamento preconceituosos de quem vota nele!”, disse, comovido. Após a premiação, Carlos Tufvesson comentou com HT: “Esse é um prêmio muito emocionante, eu fiquei atrás do palco chorando sem parar com os discursos. O importante é que nós, juntos, acreditamos que o mundo pode ser um lugar melhor. Os crimes de ódio têm aumentado terrivelmente nos últimos oito anos. E, aqui, nós não militamos apenas uma causa, mas todas. Nós mostramos as caras do Brasil, que muita gente se nega a ver”.
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