*Por João Ker
Esses têm sido anos difíceis e peculiares para a comunidade LGBT do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo em que a cidade é anunciada e vista pelo mundo afora como um paraíso do turismo gay, são raras as semanas em que um novo ataque não toma conta das manchetes. Mais do que isso, os últimos dias têm se mostrado paradoxais: nas eleições, ao mesmo tempo em que o governo atual tem um programa chamado “Rio Sem Homofobia” e o estado elege para deputado federal Jean Wyllys (PSOL) – talvez o maior e mais sério militante atual da causa – com um aumento de 11 vezes em comparação à sua candidatura em 2010, Jair Bolsonaro (PP) foi o candidato a deputado federal com mais votos no estado, com a maior porcentagem de votos (464 mil), perpetuando seu legado na Câmara dos Deputados. É nesse contexto que surge a entrega do 1º Prêmio Félix do Festival do Rio, realizada na noite desta segunda (6/10), no Centro Cultural Banco do Brasil.
O “Félix” já seria importante, mesmo se o Brasil não tivesse acabado de passar pelo período de eleições e não fosse obrigado a engolir as baboseiras e os absurdos que candidatos falaram impunemente durante debates e entrevistas, e que continuam insistindo em proferir. Sua criação resultou no dissolvimento da antiga mostra Mundo Gay no Festival do Rio que, intencionalmente ou não, criava um nicho específico para filmes de temática LGBT. Criado aos moldes do Teddy Award, que desde 1987 premia os melhores títulos do gênero dentro do Festival de Berlim, o Félix (que não tem a ver com o personagem de Mateus Solano na novela “Viver a Vida”, mas sim com a origem da palavra que, em latim, significa “feliz”, uma das traduções para “gay”) elege as melhores produções que abordam a temática queer, mas dessa vez com os filmes espalhados pelas outras inúmeras mostras do Festival.
Fotos: Zeca Santos
Dos 350 filmes selecionados e exibidos durante o evento desde 24 de setembro, 43 apresentavam conteúdo relacionado ao tema LGBT e, dentre esses, 22 foram escolhidos para disputar o prêmio. Ilda Santiago, diretora do Festival, comenta a importância da criação do Prêmio Félix: “Esse prêmio poderia ter acontecido há um ou dois anos ou, quem sabe, no ano que vem. Mas por uma coincidência, ele acabou saindo esse ano, quando a gente vê tanta coisa errada acontecendo na política. Eu digo que o Festival “saiu do armário” e agora dá uma maior visibilidade e representação para a questão do cinema com temática queer. É importantíssimo levantarmos essa bandeira agora”.
Wieland Speck, um simpático alemão responsável por co-criar o Teddy Awards e presidente do júri no Félix, também acredita na importância da criação de um prêmio como esse: “Para pessoas gays, em todo o mundo, é basicamente o mesmo problema: são minoria. E pior que isso: uma minoria sexual. Em Berlim, nós começamos isso há quase 30 anos, não mostrando filmes de conteúdo LGBT em um programa, em um nicho específico, mas incorporando os títulos em meio ao Festival. E isso mudou no Rio, o que me deixou muito feliz por esse sinal de emancipação. Basicamente, vocês estão clamando “normalidade”. O lado ruim é que a normalidade é um pouco entediante, então nós temos que apimentar isso, porque a minoria sempre será minoria. Nós sempre seremos 10% de qualquer população no mundo, mas muitos povos ainda não sabem disso. Eles acham que não existimos, que nós viemos de fora, que somos invasores. Então eu respeito o Brasil por estar levantando a bandeira e estou feliz de estar aqui apoiando a causa”.
Fotos: Zeca Santos
Outra jurada que elogiou a iniciativa foi a argentina Albertina Carri, cineasta e diretora artística do “*Asterisco – Festival Internacional de Cinema LGBTIQ de Buenos Aires”: “Acho que é muito importante a existência de prêmios LGBT em festivais como o Festival do Rio, que é histórico. Porque toda a vida houve direitos que as minorias não têm alcançado e é nesse sentido que é necessário uma visibilidade à cultura e aos temas LGBT”. A importância dessa visibilidade, que jurados e diretores tanto observam, não é pura banalidade. No Brasil, personagens gays sempre foram varridos para debaixo do tapete, principalmente na televisão, que só recentemente vem se mostrado mais aberta à questão, ainda assim estando longe da representação adequada e cheia de nuances que essa “pequena” parcela da sociedade tem. Estereótipos estão sendo gradativamente desconstruídos, mas em passos de tartaruga. Nisso, o cinema tem ajudado e não só através do Prêmio Félix. A escolha de um filme com temática queer para representar o país na disputa ao Oscar pode ser considerada como um marco histórico, principalmente se for levado em conta que “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” (Daniel Ribeiro, 2014) está longe de ser o “filme gay” que o público geral espera.
Essa escolha alinhada ao Prêmio Félix parece encorajar cineastas. Ryan White, um dos diretores norte-americanos responsáveis pelo documentário “Prop 8: O casamento gay em julgamento”, comenta que antigamente se sentia pouco representado nas produções cinematográficas: “E não apenas como homossexual, mas como cineasta gay. Hoje eu acho que está acontecendo uma maior abertura tanto no tema dos filmes como na questão dos próprios diretores, que vem se escondendo menos do que antes. Eu acho que a existência de prêmios para esse tipo específico de cinema deve ser encorajada como uma forma de mostrar ao mundo que gays existem sim e que é algo normal”. Rodrigo Felha, que dirigiu o elogiado documentário “Favela Gay”, acredita que seu filme ainda tenha uma importância específica dentro da própria temática e comunidade LGBT: “O doc serve para mostrar como todos os gays são iguais, não importa se vindos do asfalto ou do morro. Quem tá na periferia passa pelos mesmos problemas e encara a vida da mesma maneira que os outros gays”.
Fotos: Zeca Santos
Karim Aïnouz, responsável pelo polêmico e ainda assim aclamado “Praia do Futuro”, é um dos cineastas que mais se dedica à causa. Estourou no cinema nacional no início da década passada com “Madame Satã” (2002), e, nesta nova produção, ao oferecer ao público um personagem gay interpretado por Wagner Moura – um homossexual completamente diferente do heroico Capitão Nascimento de “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007) – recebeu uma reação contrária por parte do público, que abandonou salas de exibição quando se deu conta de que o personagem principal era gay. Ele declarou: “Nós vivemos um momento muito perigoso de intolerância nesse país, então eu acho que é mais importante do que nunca a existência do Prêmio Félix. Ainda mais depois da tragédia que aconteceu de o Bolsonaro ser reeleito”.
Em contrapartida, a transformista Rogéria – a irreverente, divertida, alto-astral e sem um pingo de pudor – comenta: “Eu sou a maior bandeira desse país. Tenho quase 71 anos e já sou mulher há mais de 40. Passei por ditadura desse jeito e não é nenhum Bolsonaro da vida que vai me fazer mudar ou me calar. Pode vir, Bolsonaro, que eu não tenho medo!”.
A atitude corajosa e inspiradora é reverberada por Jean Wyllys, que também não se desanima com a apuração de votos (e por que desanimaria, certo?). Sobre a reeleição do candidato de causa oposta, ele ressalta: “À medida que a gente conquista visibilidade e posições no mercado de trabalho – novas representações – a tendência dos reacionários e conservadores é reagir da pior maneira possível. Mas eu acho que o cinema tem esse papel de desconstruir estereótipos e elevar o nível de conhecimento. Com essa contra-discurso, o preconceito pode diminuir e essas pessoas [os conservadores] podem se transformar em um pequeno grupo de gente ruidosa. A tendência é a gente prosseguir com isso. Não temer e não recuar. O número de Bolsonaro não me assusta não”, completa com sotaque baiano reforçando a animação.
Fotos: Zeca Santos
Apresentada por Julia Lemmertz e pelo cineasta Aluizio Abranches, a primeira cerimônia de entrega do Félix – que teve o troféu desenvolvido especialmente pelo artista plástico Rodrigo Cardoso – premiou como melhor filme de ficção “Xenia”, de Panos H. Koutras; como melhor documentário “De Gravata e Unha Vermelha”, dirigido por Miriam Chnaiderman e que mostra as várias representações de gênero que fogem do tradicional binarismo “homem” x “mulher”; e, como prêmio de júri, o australiano “Toda Terça-Feira” (“52 Tuesdays”), de Sophie Hyde, que mostra como uma filha encara a mudança de sexo da mãe. Os discursos reforçaram a importância do cinema e do Prêmio no combate à intolerância, com direito a Mateus Solano defendendo também o combate ao HIV e Julia Lemmertz gritando ao final: “Homofobia é crime. E se não é ainda, deveria ser”, o que ficou ecoando pelo teto abobadado do CCBB-RJ.
Mais tarde, ela mesma comenta a reeleição de Bolsonaro com HT: “Em um país que coloca Fernando Collor de Mello como senador, a gente não pode esperar muita coisa. A entrega do Félix é uma posição que se estabelece. O fato de estar premiando esse segmento de cinema faz com que a discussão em torno do tema aumente e que se estimule a feitura de filmes sobre o assunto. É uma forma de dizer que estamos todos juntos dentro do mesmo barco. As pessoas precisam se posicionar e pararem de ser hipócritas, achando que isso não existe, que é algo que você pode controlar ou ignorar de alguma maneira. O importante – e que a Rogéria falou no palco – é que não importa a sua posição perante as igualdades ou desigualdades, mas você tem que respeitar a escolha do outro. Isso não é problema seu! Você não precisa desrespeitar”. Recado dado. Por Julia, por Jean, pelo Festival do Rio e por toda uma comunidade que até se cansa de ver Bolsonaros e Felicianos reeleitos, mas que não deixa a peteca cair.
Fotos: Zeca Santos
Artigos relacionados