Festival do Rio #15: espaço para as produções de apelo comercial. Afinal, por que não também?


Produções com acabamento premium voltadas para o mercado competitivo ganham destaque no evento

“A política nacional atual privilegia o cinema comercial em detrimento das produções independentes”. Essa máxima, proferida ao nosso site pelo cineasta Luiz Carlos Lacerda – o Bigode – durante a festa de abertura da 15ª edição do Festival do Rio, de certa forma revela a primeira impressão do evento. Lacerda não é único dos cineastas firmados nas décadas de 60, 70 e 80 que tem essa sensação. Mas, à parte desses questionamentos (e da reclamação de gente que não consegue abocanhar patrocínios do governo), ao observarmos as produções nacionais (ou latino-americanas) que começam a ser exibidas no festival, temos a impressão de que a opinião de Bigode faz sentido.

Logo na abertura do evento foi exibida Amazônia, a exuberante produção franco-brasileira que, com todo o seu aparato técnico, foi capaz de deixar a selva intergaláctica de Avatar no chinelo. Afinal, nada como uma floresta de verdade, filmada com sensibilidade e pela primeira vez em 3D, para sepultar fantasias de ficção científica inventadas por efeitos especiais. E que floresta melhor que a nossa Amazônia para ser revelada por tecnologias tridimensionais? Por aí já se pode perceber, quem sabe, uma tendência em equiparar o melhor da criatividade nacional à qualidade técnica depurada por mais de um século em países onde a produção audiovisual é encarada como indústria séria e geradora de renda. Desde quando Lucchino Visconti, Piero Tosi e sua trupe elevaram o nível da direção de arte às alturas no cinema europeu para, em seguida, Hollywood adotar este mesmo caminho como linguagem, vivemos a era do hiperrealismo estilizado ao extremo. E, obviamente, premissas como “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”, tão válidas durante o Cinema Novo para justificar a falta de recursos, deixaram de fazer sentido. Em um mundo globalizado, é necessário competir industrialmente de igual para igual, mesmo levando em conta as particularidades de cada contexto geopolítico. E cinema é indústria que, para se manter independente de subsídios, precisa dar lucro. Mesmo que, infelizmente, alguns olhares criativos sejam sacrificados e precisem, em função disso, chamar atenção para ganhar novas políticas próprias de incentivo.

Nesta noite de sexta feira, foi reforçada a impressão de que o Festival do Rio também dá espaço às produções que visam o sucesso comercial, e não somente experiências estilísticas. E por que não?  Os dois lançamentos programados para sexta no quartel-general do evento, o Cinema Odeon, tinham tudo a ver como essa visão globalizante da carpintaria de produção. Primeiro foi o lançamento do desenho animado argentino Um Time Show de Bola (Metegol), do cineasta vencedor do Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira em 2010, Juan José Campanella. Em um mercado onde o mainstream das produções animadas costuma ser abocanhado por empresas norte-americanas do porte da Disney, Pixar e Dreamworks, é uma proeza e tanto investir em um mega cartoon com nacionalidade argentina e, claro, sem a mesma bala na agulha que um peso-pesado como Toy Story ou Rio. E a empreitada corajosa revela, no fundo, a mesma preocupação em oferecer ao mercado produções de acabamento primoroso, não importando a origem do produto.

Em seguida, o mesmo Odeon foi palco da pré-estreia de Mato Sem Cachorro, a comédia brasileira estrelada pela quase onipresente Leandra Leal – alçada à condição de musa por estar em quatro produções que serão exibidas no evento – e pelo ator Bruno Gagliasso. O público que foi conferir o filme constatou que o roteiro segue aquele padrão básico de comédia de bilheteria que o cinema veicula desde a década de vinte, em produções que se tornaram standards e imortalizaram astros como Charles Chaplin, Jerry Lewis, Louis de Funès, Jacques Tati, Rowan Atkinson, Mike Myers, Peter Sellers e tantos outros. O Brasil já foi pródigo neste tipo de comédia na época da Atlântida e suas chanchadas, em um período mais ingênuo de sua produção cinematográfica, quando não era vergonha alguma querer fazer sucesso de público. Aí vieram o Cinema Novo e a aquela turma engajada influenciada pelo Neo-Realismo italiano e pela Nouvelle Vague francesa. Foi uma época difícil no quesito receita de bilheteria, salvo algumas investidas aqui e acolá, a despeito dos prêmios e do reconhecimento acumulados em festivais.

Fotos: Divulgação Festival do Rio

A escolha de uma comédia como Mato Sem Cachorro como pièce de resistence no primeiro dia do festival após a abertura, nos faz indagar, ainda mais se considerarmos que o filme de Pedro Amorim entra em circuito nacional na próxima sexta feira, ainda durante a vigência do Festival do Rio: seria este mais um indicativo de que as comédias com apelo popular, como as antigas produções da Atlântida, estariam de volta com toda a corda prontas para seduzir o grande público sedento de diversão descomprometida? Ultimamente, as bilheterias do cinema nacional têm confirmado isso.

O personagem de Bruno Gagliasso repete o tipo imortalizado em décadas de cinematografia mundial: o sujeito meio acomodado que quer recuperar algo que perdeu durante aquele período em que deixou a vida passar. Ganha um pacote de pipoca doce para a próxima sessão de cinema quem disser que seu personagem lembra outros interpretados por Ryan Reynolds, Adam Sandler ou Steve Martin em sucessos do cinema americano. Leandra, por sua vez, interpreta a ex-mulher de Bruno e mocinha do enredo. E, se a questão é a reprodução de fórmulas imortalizadas pela indústria audiovisual, até mesmo o fato de Leandra já ter participado de produções divertidas na TV, em novelas cômicas como O Cravo e a Rosa e Cheias de Charme, contribui para esta visão de mercado atual. Somam-se a isso sua boa fotogenia, o indiscutível talento e o fato de ela ser a segunda geração uma família firmada na televisão, tendo começado atuar quase criança. Qualquer semelhança com as trajetórias de gente graúda na iconografia mundial, como Liz Taylor, Judy Garland ou sua filha Liza, não é mera coincidência.

Além disso, contribui para essa corrida ao grande público a constatação de que tanto Bruno e Leandra vieram de carreiras sedimentadas na televisão, em um país onde as novelas são um dos seus patrimônios mais valiosos. Em uma análise até mesmo superficial, não é surpresa comprovar que a maior fábrica de sonhos brasileira, a Rede Globo, copia a engenharia da velha era de ouro de Hollywood, quando os grandes estúdios dispunham de suas próprias estruturas de produção sendo, inclusive, proprietários do seu star system. Chega a ser curioso o fato de a indústria televisiva brasileira ter herdado este know how de confecção hollywoodiana com tanta maestria, enquanto o cinema nacional parece somente agora estar dando os efetivos passos nesta consolidação.

Curiosamente, Mato Sem Cachorro traz ainda mais um poderoso atrativo capaz de conquistar as grandes massas: o cachorro Guto que, junto com os dois protagonistas, divide as atenções. Não é de hoje que bicho em filme é quase uma garantia de visto de no passaporte rumo ao sucesso de plateia. O cinema americano bem sabe disso. Rintintim já era famoso no cinema mudo, Lassie ajudou a lançar a carreira de Elizabeth Taylor e o Tarzan de Johnny Weissmuller gritaria para salas de exibição vazias, não fosse a presença de chipanzés, jacarés, leões e outras criaturas das savanas. E, mesmo hoje, as produções internacionais ainda costumam apelar para esta estratégia na hora de garantir uns trocados a mais. Cachorros agentes X-9, Beethovens, Marleys e até mesmo o fox paulistinha companheiro de Jean Dujardin no ganhador do Oscar, O Artista, que o digam. Ou melhor, que venham a latir.

*Por Alexandre Schnabl