*Por Flávio Di Cola, diretamente de Cannes
As primeiras tomadas do filme de abertura e fora de competição exibido ontem no primeiro dia do Festival de Cannes 2015 já são uma aula de cinema. Na sala atulhada de uma vara de juizado de menores corre solta uma discussão entre as partes de um caso de incúria de um bebê e uma juíza. A temperatura do embate sobe descontroladamente e a situação descamba para um bate-boca para lá de histérico e desrespeitoso, recheado de gritos, choros, murros e palavrões. A diferença é que só ouvimos em off o rumo degradante do conflito, pois a câmera está exclusivamente ocupada em registrar as expressões de desespero e pavor de Malory, uma criança de seis anos que a tudo presencia desnecessariamente uma vez que o seu caso é o seguinte a ser examinado segundo a ordem da agenda da autoridade judicial – nada menos do que Catherine Deneuve.
Esses constrangedores e perturbantes minutos iniciais apresentam sem pestanejar as premissas de “La tête haute”: algo de muito errado está acontecendo nas famílias – pelo menos nas que sobraram – e na vida social, quem acaba mesmo pagando o pato são as crianças que – de criaturas indefesas – acabam se transformando em futuros monstros de ressentimento e destruição.
Trailer de “La tête haute” (Divulgação)
O tema em si do abandono da infância e a consequente delinquência juvenil não tem nada de original. O próprio cinema já se debruçou sobre ele inúmeras vezes (relembre abaixo alguns clássicos cinematográficos sobre o mesmo assunto). Mas a diretora-atriz parisiense Emmanuelle Bercot – já conhecida dos brasileiros através da deliciosa comédia dramática “Ela vai” (Elle s’en va, 2013, com a mesma Deneuve) – consegue extrair dele uma seiva nova exatamente por colocar no centro desse fenômeno permanente e atual o papel que – segundo a ótica das roteiristas Marcia Romano e a própria Bercot – deveria ser o da Justiça: não o de carcereiro, mas o de reeducador; não o de uma máquina fria de execuções, mas o de uma instância pública com face humana.
É claro que a “face” humana – neste caso – é o da beleza madura da diva máxima do cinema francês das últimas cinco décadas: La Deneuve. Ela vive com emocionante convicção o personagem de uma carismática juíza que advoga obstinadamente a idéia de que a recuperação e a reconstrução de um ser humano com infância e adolescência devastadas podem, sim, ser possíveis, desde que esse jovem conte com o apoio irrestrito e o acompanhamento diligente de uma “justiça republicana” no termos mais elevados da palavra.
E é o que a juíza tenta colocar em prática, apesar de todas as trágicas reviravoltas que ela vive ao longo dos 12 anos da turbulenta trajetória rumo à redenção do jovem Malony, o mesmo menininho que abre o filme como espectador atônito das mazelas dos adultos.
Nesta altura, você, leitor, talvez ainda não esteja convencido da originalidade de “La tête haute” para merecer o privilégio de inaugurar o maior e mais importante festival de cinema do mundo. Mas é bom contextualizar com mais profundidade as qualidades desse filme e seu papel no festival. Em primeiro lugar, “La tête haute” é uma realização cinematográfica vigorosa, competente, segura (até nas derrapadas no melodrama) e que voa ao encontro de sua tese com a velocidade de uma flecha, deixando o público sem fôlego e sempre exposto a fortes tensões tal o atropelo de situações em que a vida e a esperança de salvação de Malony são colocadas em risco.
As interpretações de todo elenco são simplesmente primorosas, a começar – é claro -por Rod Paradot no papel do martirizado Malony, fruto de uma graça obtida pela diretora Emmanuelle Bercot junto à “Nossa Senhora do Casting”, como gostam de brincar os profissionais do meio artístico ao se referirem ao poder salvador ou destruidor que a escolha do elenco tem sobre o resultado final de um projeto teatral ou cinematográfico.
O processo de “envelhecimento forçado” que esse jovem ator – descoberto num curso de carpintaria – faz transparecer dos 15 aos 18 anos por conta da sua trajetória traumática é absurdamente espantoso, comparável até ao que vimos acontecer com o elenco de “Boyhood” (Idem, 2014, de Richard Linklater).
Depois da Segunda Guerra, o cinema ajudou a inventar o paradigma do adolescente desajustado, violento e massacrado pelos sistemas de controle e regeneração. Relembre alguns grandes momentos dessa temàtica cada vez mais presente em nossas vidas:
Além disso, os mentores do festival – o novo presidente Pierre Lescure e o delegado geral Thierry Frémaux – tinham em mente um conjunto de três objetivos para serem atendidos quando conferiram à obra de Emmanuelle Bercot essa função inaugural: restituir ao país-sede do evento, a França, a primazia que se deve a qualquer anfitrião, isto é, a de abrir ele mesmo a porta da sua casa; deixar bem claro que um festival com a envergadura e a repercussão como as de Cannes tem a obrigação de colocar em pauta temas pertinentes e que afetam diretamente a vida de homens e mulheres de todas as partes do mundo; finalmente, revalorizar a vocação criativa das diretoras, uma vez que foi há exatamente 28 anos atrás que outra cineasta teve a honra de abrir o evento – Diane Kurys com “Un homme amoureux” (1987).Bem, depois da exibição de “La tête haute” já podemos replicar aos senhores Lescure e Frémaux: “Touché!”.
*Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e ex-coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria
Artigos relacionados