*Por João Ker
Já se passaram 12 anos desde que Ícaro Silva apareceu no fenômeno teen “Malhação”, onde ficou por quatro anos vivendo o queridinho do público, Rafa. Dali, ele passou por outros programas da Rede Globo, como a novela “Joia Rara” (2013) e a TV Globinho por um tempo (2009), até que aterrissou nos palcos do teatro. Após viver Gilberto Gil em “Rock in Rio – O Musical” e o músico Jair Rodrigues na peça “Elis – A Musical”, onde atuou sob a direção de Dennis Carvalho interpretando o texto criado por Nelson Motta e Patrícia Andrade, o ator se prepara para mais uma atuação à frente de uma grande produção musical, repetindo a dobradinha de roteiristas. Em “S’Imbora, o Musical – A história de Wilson Simonal”, que estreia sexta-feira (16), no Teatro Carlos Gomes, Ícaro Silva vive o papel principal da peça e declara em entrevista exclusiva ao HT: “Ele foi a prova de que a vida cobra um preço alto daqueles que querem ser “grandes””, diz, fazendo referência à forte ascensão e dura queda do cantor.
A história de Wilson Simonal (1939-2000) parece um livro com os maiores ensinamentos do beabá do showbiz: negro de origem humilde, o cantor suou acamisa e trabalhou duro até chegar ao estrelato. Nos anos 1960, já havia se consagrado como um dos maiores nomes da música popular brasileira, pioneiro nas rádios e nos programas de TV e rivalizando em popularidade apenas com a turma da Jovem Guarda. Com hits como “Balanço Zona Sul” (o primeiro da carreira), “Mamãe passou açúcar em mim”, “Sá Marina”, “País Tropical” e muitos outros, ele comandava o público. Mas, tão forte quanto sua ascensão, foi a polêmica enfrentada com seu nome associado à delação durante a ditadura militar.
“Queríamos descobrir que espetáculo desejávamos fazer, o que focar na história do Simonal. Há muitas atmosferas dramáticas, porque a vida dele foi assim. Optamos por um resgate do riquíssimo repertório dele, mostrando essa figura improvável, a do pobre e negro que se tornou o maior astro popular do país, fazendo música de altíssima qualidade. Ele foi um personagem único”, comenta o diretor Pedro Brício sobre o espetáculo. E acrescenta: “S’Imbora” foca na trajetória controversa de um dos maiores artistas negros do pop brasileiro e que, graças a um escândalo como delator, sofreu um exílio artístico involuntário no auge de sua fama e permaneceu assim até o fim de seus dias. Ele foi uma figura contraditória, com múltiplas facetas, mas a peça não faz um julgamento. O espetáculo tem essa riqueza, essa multiplicidade: vai da ascensão absoluta do artista negro pop à total decadência”.
Faltando apenas alguns dias para sua estreia no Teatro Carlos Gomes, Ícaro Silva bateu um papo com HT sobre o novo rumo da carreira, a onda de musicais que tem invadido o país, sua relação com Wilson Simonal e a preparação para o papel. E você lê isso tudo abaixo:
HT: Você já participou como Jair Rodrigues do musical sobre Elis Regina e, agora, fará Wilson Simonal em “S’Imbora”. Qual dos dois se assemelham mais com você e qual dos personagens você precisou pesquisar mais a respeito?
IS: Tenho uma identificação bastante positiva com ambos. Jair tinha o dom da alegria e um sorriso poderoso, além de ser um intérprete excepcional. Simonal “passeava” por uma malandragem elegante e seu poder de comunicação com o público é, provavelmente, o maior que já vi em um artista brasileiro. Ambos são artistas negros de origem humilde que trilharam um caminho de grandiosidade amparados pelo próprio talento. No entanto, a pluralidade artística de Simonal e sua procura por um estilo próprio descrevem melhor minha busca artística. Simonal soube muito bem como ser popular e sofisticado ao mesmo tempo, em um momento no qual escolher um lado era a premissa da maioria. Embora eu tenha estudado a vida e obra de Jair para interpretá-lo em “Elis, a Musical”, em “S’imbora” tenho a responsabilidade de conduzir o espetáculo, através da história controversa de um grande ídolo. O mergulho foi bem mais profundo e a pesquisa muito mais intensa.
HT: O que acha dessa nova onda de musicais brasileiros inspirados em grandes nomes da nossa cultura?
IS: Gosto de saber que o mercado brasileiro de musicais está crescendo. Isso significa mais trabalho para artistas, produtores e técnicos e também o aperfeiçoamento do nosso know how. Além disso, dentro do que podemos considerar a “vanguarda das grandes produções musicais no Brasil”, os musicais biográficos desempenham o papel fundamental de conectar o público à sua identidade, uma vez que são histórias que fazem parte da nossa própria história. Todavia, acredito que esse já seja o momento em que podemos nos desvincular daquilo que já conhecemos musicalmente e explorar musicais totalmente novos, com texto e canções originais, produzidos por brasileiros. Esse é o caminho natural e também a melhor maneira de expandir o mercado.
Ícaro Silva cantando “Nem Vem Que Não Tem” em ensaio de “S’Imbora”
HT: Como foi o treinamento vocal para o personagem? Você sempre cantou ou teve que aprender na marra?
IS: Gosto de cantar desde pequeno, mas comecei a fazer aulas de canto há uns quatro anos, quando percebi que os musicais eram uma possibilidade a ser explorada. Meu pai tinha uma banda quando jovem e minha mãe sempre foi dessas que não tem vergonha de cantar em público, por isso os dois foram uma referência importante de liberdade artística. Minha mãe é pernambucana e meu pai é baiano, por isso cresci ouvindo muita música do Nordeste, berço dos melhores intérpretes do país. Felizmente, minha voz foi nascendo para o canto ainda bem cedo, mas, para interpretar Simonal, tive de aprender algumas novas maneiras de usá-la. Embora tenhamos algo parecido no timbre vocal, Simonal é de um registro muito mais grave que o meu. Passei muito tempo do nosso processo identificando as nuances de sua voz e os pontos de proximidade com a minha. O Pedro [Brício, nosso diretor] deixou claro que a intenção não era fazer um cover ou uma cópia, por isso fugi de tudo o que pudesse ser imitação, mas trouxe o fundamental para evocar o que o conectava com seu público.
HT: O que te fascina sobre a história de Wilson Simonal e qual música dele você mais gosta?
IS: Me fascina a capacidade que o Simonal tinha de aprender e absorver tanto apenas observando e vivendo. O cara se tornou um artista excepcional e um maestro de multidões sem nenhum aprendizado formal. Virou músico na marra, com um talento imensurável, claro, mas também com muito “jogo de cintura” e poder de comunicação. Sua história, ainda que trágica, é bela. Nas condições e no país em que nasceu, ele era um ídolo muito improvável. “Tributo a Martin Luther King” e “Carango” são as canções que mais traçam um paralelo com essa realidade pessoal, por isso são minhas preferidas. Uma retrata a dificuldade de imprimir a própria identidade em um país racista e de maioria conservadora e a outra trata da ascensão de um tipo como esse, impossível sem muito trabalho e alegria.
Wilson Simonal cantando “Tributo a Martin Luther King”
HT: Qual a primeira memória que você tem do artista antes de entrar para o elenco da peça?
IS: O nome “Simonal” me era familiar, mas eu não tinha o menor contato com sua obra, tampouco com sua vida. O primeiro encontro veio com “Vesti Azul”, em uma festa de música brasileira. Fiquei muito curioso para saber que música era aquela. Um som cheio de suingue, com metais estilosos, um arranjo sofisticado e uma voz poderosa. Fui atrás dessa música assim que pude e, naturalmente, conheci mais do trabalho dele. Mas o mergulho real em sua vida e obra veio com o musical.
Making Of de “S’Imbora, o Musical – A História de Wilson Simonal”
HT: O que mais aprendeu com o cantor após o musical? Teve alguma “lição” ou “postura” dele com a qual você se identifica?
IS: A trajetória de Simonal é cheia de aprendizado. Ele foi de uma infância pobre e nula de oportunidades ao posto de maior artista do seu tempo, superando obstáculos duros como o racismo e o conservadorismo. Desenvolveu e aprimorou seu talento na escola da vida, absorvendo de cada encontro o que lhe servia pessoal e artisticamente. Tornou-se um homem elegante, sofisticado e extremamente comunicativo, sem deixar de ser popular. E caiu, vítima de sua arrogância ingênua e da inveja alheia. Simonal foi exemplo do que ser e do que não ser. Foi a prova de que a vida cobra um preço alto daqueles que buscam ser “grandes”.
HT: Você declarou em recente entrevista que o esquecimento é um terror para todo artista. Você já se sentiu aterrorizado com essa ideia? É algo que o preocupa também?
IS: Não sei se fui mal interpretado ou se não me fiz entender, mas não acredito que o terror de ser esquecido seja “privilégio” dos artistas. Ser esquecido, apagado ou deixado para trás é apavorante para qualquer ser humano.Talvez por isso tenhamos o costume de transformar nossas memórias em objetos palpáveis, como fotos e vídeos. Pode ser que a nossa necessidade de criar laços extra familiares resida aí também, na necessidade de ser lembrado. Se eu puder dizer que há um “terror específico” para nós, artistas, eu diria que é deixar de fazer arte. É perder a oportunidade de estar em contato com o público e com aquilo que nos move. Há tantos bons artistas que se perdem, ora ludibriados pela fama, ora mergulhados nos próprios vícios ou manias. Não necessariamente são esquecidos, mas acabam por suprimir o que os mantém verdadeiramente, artisticamente vivos. No caso de Simonal, há um misto de ingenuidade, sede de poder, arrogância, racismo, inveja e mentiras que o levaram à queda. Talvez ele mesmo tenha perdido contato com o “artista Simonal” antes de ter sido esquecido. O espetáculo trata um pouco disso e para mim é bem provável que tenha sido esse o estopim de seu esquecimento. De qualquer maneira, o recente resgate de sua obra me faz crer que os bons artistas não serão esquecidos.
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