Eve Cosendey, sucesso no Youtube: ‘É doente a sociedade de único padrão. Homo, bi ou hetero, amor é o que conecta’


A atriz, roteirista, diretora e cantora se inspirou na própria história para criar “Patrícia”, webserie LGBTQIA+ que faz sucesso na internet assistida em mais de 64 países. Assumidamente lésbica, como ela mesma diz, Eve, com esse projeto faz uma catarse pessoal e dá visibilidade ao tema, se tornando mais uma voz na busca pelo fim do preconceito. “Seres homossexuais e bissexuais existem desde que o mundo é mundo. Só que foi imposto entre tantas religiões na sociedade que isso é errado, porque a gente não reproduz, a gente não faz filho, então, vai contra as leis de Deus. Mas que Deus é esse que impõe padrões e não a ama do jeito que você veio ao mundo?”, indaga

* Por Carlos Lima Costa

Na trajetória de Eve Cosendey, a profissão e a vida íntima caminham entrelaçadas contribuindo com descobertas e o crescimento pessoal. Através da arte, ela compreendeu sua sexualidade assistindo o envolvimento amoroso das personagens de Giselle Tigre e Luciana Vendramini na novela Amor & Revolução, do SBT. Uma década depois, aos 24 anos, a atriz extravasa seus sentimentos ao criar Patrícia, webserie LGBTQIA+, que caminha para a terceira temporada tendo como inspiração sua própria história. “Eu estava me sentindo muito mal com tudo que eu carregava e quis fazer uma catarse. Como artista, tenho como jogar a minha dor no meu trabalho. Era uma dor minha, mas acreditava muito nessa história. Como acredito que muita gente passa por isso. Conseguimos gravar, mesmo sem patrocínio, e foi um sucesso estrondoso”, pontua.

Na trama, Patrícia é uma mulher heterossexual, casada, com filho de 18 anos. Chef de cozinha, está a procura de uma fotógrafa para ajudá-la em um projeto da carreira. Aí surge a Lívia, personagem que representa Eve. “Ela é lésbica e quando bate o olho nessa mulher, se encanta por ela de uma forma que meu Deus! Elas se tornam amigas, Lívia diz que está apaixonada e se afasta. Nesse momento, Patrícia, que nunca teve relação homossexual, entende que também sente algo por ela”, conta Eve, que, além de assinar o roteiro, a direção, a trilha de abertura, também atua.

“A trama é parecida com a minha experiência pessoal. Mas não quis colocar o enredo completo da minha vida, porque não tenho o direito de expor ninguém, mas criei personagens de acordo com pessoas da minha vida que eu queria homenagear”, explica Eve, que interpreta a psicóloga Marília, melhor amiga da protagonista.

"A trama de Patrícia é parecida com a minha experiência pessoal. Mas não quis colocar o enredo completo da minha vida", Eve (Foto: Cacau Fernandes)

“A trama de Patrícia é parecida com a minha experiência pessoal. Mas não quis colocar o enredo completo da minha vida”, Eve (Foto: Cacau Fernandes)

Quando a webserie estreou, em dezembro de 2020, o número de inscritos no canal de Eve no YouTube pulou de 291 inscritos para mais de 30 mil, e em dois meses, os seis capítulos da primeira temporada atingiram a marca de 1 milhão de views. O sucesso prosseguiu com a segunda temporada, disponível no Vimeo On Demand, desde agosto, sendo assistida em mais de 64 países. “A aceitação foi melhor do que eu imaginava. As pessoas estão firmemente acompanhando o nosso trabalho. Em novembro, vamos retomar as gravações e no verão a galera já vai ter a terceira temporada para maratonar”, vibra ela sobre o projeto que antes de se tornar uma webserie de sucesso, foi recusado em um festival de teatro na faculdade de Eve.

“Além de atuar, sempre quis escrever e dirigir. Achei que era a minha oportunidade e criei um trecho do Patrícia, mas não foi aprovado nem para concorrer no festival. Fiquei muito triste, pensando ‘meu Deus, não sei escrever’. Me senti mal durante alguns meses. Aí, no início do isolamento social, desenvolvi os capítulos e quando estreamos e foi um estrondoso sucesso, comecei a dizer que o público aprovou o meu texto que a faculdade não aceitou”, aponta ela que esse mês vai gravar o clipe de Cinza, seu próximo single, que vai estar na trilha da webserie, cuja música da abertura, All I Want, também é dela. “Pretendo trilhar uma carreira assim como artista completa, atuando, dirigindo, roteirizando, cantando. Quero que o público entenda que gosto e sei fazer tudo isso”, diz.

Com a webserie, Eve fez uma catarse, mas não utilizou o projeto para expor sua orientação sexual à família nem aos amigos. “Minha sexualidade já é muito clara a alguns anos, então, não fiz isso para abrir o jogo para ninguém. Foi mais para colocar realmente essa dor para fora de alguma forma e mostrar para as pessoas que é comum o amor acontecer em qualquer formato, não só no mundo hetero. Seja ele homossexual, bissexual ou hetero, o amor é o que conecta o ser humano. Essa era a minha vontade”, frisa.

"Foi complicado contar para os familiares, mostrar para a sociedade a sexualidade que eu carregava em mim", recorda Eve (Foto: Arquivo Pessoal)

“Foi complicado contar para os familiares, mostrar para a sociedade a sexualidade que eu carregava em mim”, recorda Eve (Foto: Arquivo Pessoal)

Eve não se relaciona com homens. “Eu sou assumidamente lésbica homossexual. O que me atrai são as mulheres, mas sou uma mulher livre regida pelo amor. Não gosto de me rotular. Se eu me apaixonar por qualquer outro gênero eu não tenho problema nenhum. O amor é o que cura a gente e se a gente negar isso é ruim”, pontua, lembrando que este ano, a webserie foi indicada ao 20º Prêmio Cidadania em Respeito A Diversidade LGBTQIA+ pela Parada de São Paulo. E, no momento, concorre aos prêmios de Melhor Atriz Drama, Roteiro Drama, Direção e Trilha Sonora no Rio WebFest. O resultado sai em novembro.

Da mesma forma que, hoje, com sua webserie, pode estar ajudando outras mulheres a se entenderem, ela reforça a importância que o desempenho das atrizes Giselle Tigre e Luciana Vendramini, na novela Amor & Revolução, do SBT, teve em sua vida. Ela, inclusive, conseguiu autorização do autor Tiago Santiago para colocar no cenário do quarto da personagem Livia, dois quadros delas se beijando. “Foi minha forma de homenageá-las por aquele trabalho lindo que me fez entender aos 14 anos que eu não era uma menina hetero”, explica.

Criada na Igreja Cristã Evangélica, para Eve foi complicado revelar ao mundo a sua orientação. “Quando vi essas personagens na televisão tive certeza de que era aquilo que eu estava buscando. Era por isso que eu ficava com os meninos e não me sentia apaixonada por eles. Percebi que só me sentiria assim com outra mulher. Mas foi complicado contar para os familiares, mostrar para a sociedade a sexualidade que eu carregava em mim. Tive crises existenciais por conta disso. Demorei anos para ter coragem de enfrentar o medo da igreja e o da minha família tradicional, religiosa, preconceituosa. Eu já estava com 19 para os 20 anos de idade, já nem fazia mais parte da igreja. Hoje, aos 24, tenho o maior orgulho de ter feito isso”, assegura.

"A sociedade doente é a que tem um olhar para um padrão só, não tem empatia pelo outro”, frisa Eve (Foto: Pino Gomes)

“A sociedade doente é a que tem um olhar para um padrão só, não tem empatia pelo outro”, frisa Eve (Foto: Pino Gomes)

Talvez por conta do lado machista da sociedade, os casais formados por mulheres se exponham mais na troca de carinho em público do que os formados por homens. “Nós mulheres somos criadas em uma cultura em que a gente pode demonstrar carinho com facilidade e os homens não. Na nossa cultura patriarcal machista, eles são travados o tempo inteiro de demonstrar afeto, então, para os rapazes, mesmo os gays ainda é difícil fazer isso em público. Eles ainda apanham fisicamente por isso. A gente consegue mostrar o nosso carinho muito fácil. Eu tenho um relacionamento faz alguns anos. No dia a dia, mostro quem eu sou. Com o meu relacionamento tenho olhares e quando estava solteira também tinha, porque as pessoas olham quando você é diferente delas. A sua diferença incomoda quem vive dentro de um padrão. É bem difícil nesse país tão machista ser uma pessoa LGBTQIA+. Acho que a gente ainda está no começo de uma grande luta”, aponta ela, que nunca foi agredida verbalmente, nem fisicamente por sua sexualidade. “Mas consigo ver uns olhares, sinto o clima de preconceito no ar. Mas como sou uma mulher cis feminina, mesmo quando chego acompanhada nos lugares, nem sempre as pessoas se dão conta da minha sexualidade”, explica Eve.

E avalia o que faz alguém se incomodar com o que as pessoas LGBTQIA+ fazem entre quatro paredes. “A sociedade é muito doente, porque ela tem medo de sair do que foi ensinado e imposto a ela, de enxergar isso fora dessa casinha. Por exemplo, se alguém fala que existem árvores amarelas, ela não cogita ver se existem. E diz que a mãe ensinou que só existem árvores verdes. Então, a sociedade está olhando só para si, carregando padrões estabelecidos há tantos anos do que é o certo e não tem empatia de ouvir o outro, nem respeita o que o outro nasceu para ser, porque ninguém quer ser nada. Isso não é profissão, é uma orientação. Todo mundo nasce com a sua sexualidade já dentro de si e descobre ao longo da vida”, avalia.

E prossegue: “Seres homossexuais e bissexuais existem desde que o mundo é mundo. Tem espécies de animais que tem relações homossexuais e é muito natural, é da natureza. Só que foi imposto entre tantas religiões na sociedade que isso é errado, porque a gente não reproduz, a gente não faz filho, então, vai contra as leis de Deus. Que Deus é esse que impõe coisas e não ama você do jeito que você veio ao mundo. Então, acho complicado porque a sociedade tem um olhar doentio de que a gente está errado, mas ela não está. Como você não está errado se não respeitou o que a outra pessoa é, o que ela tem para dizer. O ser humano precisa olhar para si e fazer terapia para que ele possa ter uma visão mais curativa para o mundo. A sociedade doente é a que tem um olhar para um padrão só, não tem empatia pelo outro”, filosofa Eve, que teve a primeira experiência como atriz no musical Vampires Union, do curso CNA, aos 16 anos, e depois, aos 19, participou de Hairspray.