*Por Rafael Moura
‘Ela vem chegando…’, cantou Margareth Menezes. E Preta Gil chegou. “Com um pouquinho de paciência tudo acontece. Com certeza, essa readaptação de tudo, da vida, desse momento da humanidade que tudo parou. Um fato inimaginável”, comenta Maga. “Estamos nos adaptando a essas novas realidades e novas formas de se comunicar”, diz Preta Gil. Logo no início dessa conversa as duas comentam o caso considerado por muitos como racismo da embalagem de Bombril. “Em pleno 2020, ter uma marca com esse tipo de pensamento e atitude, é inimaginável. A Bombril deu uma bola muito fora. Tá cancelada!”, pontua Preta. E acrescenta: “Estamos há tanto tempo nessa luta pela igualdade de direitos e combate ao racismo que é bonito ver esse movimento global. A internet traz uma grande força e acaba amplificando as nossas lutas”.
“A internet é uma grande revolução na comunicação humana. Chegou para ficar e já está. E com isso vemos uma grande resposta e apoio como nossas mensagens reverberando. Estamos vendo que o grande sentimento de irmandade e fraternidade está despertando na nossa sociedade. Até por conta dessa nova geração que faz uma bonita articulação nas redes sociais”, enfatiza Maga. Preta acredita que apesar de estarmos evoluindo como humanidade, temos grandes momentos de retrocessos, principalmente por conta do aumento de casos de racismo, homofobia e gordofobia.
A cantora segue a conversa contando que conhece a baiana há 35 anos e lembra do primeiro show que assistiu da diva baiana. “Eu me lembro desse momento. É muito fresco na minha cabeça. Foi em Salvador, perto do Centro de Convenções. No estacionamento fizeram um palco, eu tinha nove ano, eu já a achava maravilhosa. E, como eu sempre fui ‘ozada’, não podia perder. Me recordo de tudo, da expectativa, eu me arrumando, chegando, do impacto, e como você foi importante para revolucionar a minha negritude e como revolucionou a música afro baiana. Virei sua tiete e isso tem 35 anos. Eu já a admirava desde que a via nos programas locais e ouvia o seu LP a todo momento, e foi um frisson”, relembra Preta.
Maga segue contando que a mãe de Preta, Sandra Gadelha, foi a primeira a receber a cantora no Rio de Janeiro. “Nós fomos jantar no Madame Butterfly, em Ipanema, foi a primeira vez que fui em um japonês”. E Preta acrescenta: “Foi na época do seu primeiro show, na Lapa, no Asa Branca. Esse show foi uma comoção. Eu ligava para as pessoas fazendo uma espécie de RP, porque queria que todos os meus amigos a conhecessem. Eu vivi a minha vida inteira uma dupla personalidade entre ser carioca e ser baiana. Eu nasci de um ventre de uma mulher muito forte, minha mãe Sandra, sou fruto desse Brasil misturado e miscigenado, sempre me enxerguei como um mulher preta, sou berço e fruto dessa união de duas pessoas que se amavam e que são muito importantes na minha vida. Eu cada vez mais voltada para esse amor e isso me faz acionar a minha ancestralidade, minhas raízes, pelo meu filho, pela minha neta e quero caminhar sempre para esse lugar a família, que é a base da minha vida. Por mais que eu tenha tido meus momentos de rebeldia, a gente só quer abraçar, ter o carinho afeto e o colo da família”.
Maga fala o seu ponto de vista: “É o que nos fortalece. Essa conexão de estar juntas é muito bonito. Você veio de uma família que é uma fonte rica para a música brasileira e a nossa cultura”. E pergunta: “Como foi o seu caminho até se descobrir como cantora?” “Demorou um pouco, porque quando você nasce em uma família com essas referências tão fortes é difícil. Quando eu era criança meu pai (Gilberto Gil) já era um astro. E quando cheguei na adolescência, por conta das comparações, eu fui me perdendo, por medo. O medo de não corresponder, de não ser um décimo do que meu pai é. Eu sempre me questionava. E se eu for cantar e ser atriz como vai ser?”.
Com 16 anos, Preta começou a trabalhar com o empresário José Maurício Machline, segundo ela para ganhar uma grana e comprar calças da Company e da Fiorucci. “Eu me perdi durante dez anos, crie minha produtora de publicidade e clipes, mas sempre com um receio, negando minha veia artística. Quando comecei a fazer terapia, o que me ajudou muito, consegui resgatar esse dom. Foi quando o meu irmão Pedro começou a aparecer nos meus sonhos, diariamente. Eu estava sempre no palco com ele, e entendi que aquilo era um chamado”, revela. Já aos 28 anos, tomou coragem e abandonou o ‘medo’ de ser filha de Gil e de ter possíveis frustrações. “Eu descobri o meu valor e entendi que o meu medo é um grande privilégio, mas eu tinha que descobrir a minha identidade. Só me lancei como cantora em 2003”, desabafa.
Preta segue contando sua emoção de ser contratada pela gravadora Warner Music. “Eu lembro que eu sentei com meu pai e disse: vou gravar meu primeiro disco, faz uma música para mim? Ele respondeu: “Vá procura sua turma garota. Eu fiquei passada e chorava. Meu pai não incentiva, não gosta de mim, quase desisti de tudo”, brinca. Então, a estrela resolveu procurar sua turma ligou para os amigos e músicos Pedro Baby e Davi Moraes para dar o start nessa carreira de grande sucesso. “Seu pai estava te dando um sim e para você começar a descobrir sua própria linguagem e ter se juntado com esses grandes músicos foi uma grande sabedoria. A sua primeira capa foi inesquecível”, elogia Maga.
O CD ‘Prêt-À-Porter’ lançado em 2003 traz composições da própria e da cantora Ana Carolina, uma energia bem pop com influências da música popular brasileira, funk e axé. O disco fala sobre o amor e regrava grandes clássicos da MPB, como ‘Ele Mexe Comigo’ gravada originalmente por Baby Consuelo no final dos anos 70. A capa gerou uma grande polêmica, porque a artista apareceu nua. “Era uma coisa meio Novos Baianos com Doces Bárbaros, um Doces Baianos. E eu que sou uma boa leonina, filha de Oxum, e que já não gosto de me ‘mostrar’, já queria chegar chegando. Fiz as fotos com Vânia Toledo e arte foi do Fernando Zarif. Na hora da sessão de fotos, estava achando tudo uma caretice. E perguntei para a Vânia: “Eu posso ficar pelada? Estou renascendo, aos 28 anos, e acho que seria uma escolha perfeita, porque nós nascemos nus”, conta.
Animada com o resultado das fotos, Preta correu para a casa do pai para mostrar as fotos e a capa do álbum. “Pai, eu procurei minha turma, fiz meu disco e aqui tá a capa. E ele apenas disse: “Desnecessário Preta!” E eu pensei: “Meu deus, meu pai sendo careta. Só tomo fora do meu pai”, brinca. Ela que se define como uma mulher, preta, gorda causou um grande frisson no mercado ao aparecer nua na capa de seu trabalho de estreia. “Eu sou filha do Tropicalismo e fiquei em choque com tanta caretice. Não imaginava que ia ser tão polêmico. Eu achei que estava fazendo arte, me inspirei em capas de LPs tropicalistas mas foi um massacre”, revela.
“Quando cheguei na Warner para a coletiva de imprensa fiquei achando que todos tinham amado o disco, mas as perguntas foram pautadas pela capa. Nesse dia Sérgio Affonso, presidente da gravadora disse: “Eu nunca vi ninguém mandar jornalista ‘tomar no cu’ com tanta classe. Foi uma chuva de moralismo, e isso tem 18 anos”, gargalha. Margareth lembra que ainda não existia rede social na época. “Se já existisse você estaria bombando. Teria sido um buxixo muito maior”.
A empresária Marina Moreno foi quem apresentou o Orkut para Preta. “Quando eu entrei na rede, a primeira coisa que eu dei de cara foi com uma comunidade: Eu odeio Preta Gil. Marina fez um perfil, se infiltrou na comunidade para saber o que as pessoas falavam de mim. O que eu descobri com tudo isso foi que pessoas livres incomodam muito”. E completa: “Eu não conseguiria ser diferente”.
A primeira entrevista da cantora foi para a revista Trip, deitada em uma cama no Hotel Glória, para o jornalista Fernando Luna. “Eu fiz um ensaio sensual para a revista, eu jurava que estava tendo um papo com um amigo. Eu tinha uma ingenuidade muito forte, fofocas, brigas, intrigas, não são da minha criação e quando eu vi que estavam deturpando tudo o que eu dizia, eu fiquei muito chateada. Eu considerava o meu trabalho uma arte, mas tudo virava polêmica em programa de fofoca. Eu fui muito atacada e rotulada”, enfatiza. A cantora passou de ‘panfleto para outdoor’ do dia para a noite. “Até hoje eu carrego muito esse rótulo de polêmica. Quando eu olho para trás e vejo a força dos movimentos LGBTQIA+, as mulheres gordas se amando eu fico muito feliz por ter contribuído”. Maga comenta que Preta agiu sempre com muita naturalidade e nunca forçou a barra. “Nunca íamos imaginar que as pessoas eram tão caretas”.
Em meio à Live Preta faz uma pausa para cumprimentar a família Godoy, do seu marido, porque seu afilhado Theo fazia seu primeiro aniversário. Sol de Maria, neta de Preta, acaba aparecendo dar um ‘olá’ para os seguidores da transmissão, ‘arrancando’ muitos corações nos comentários. Uma chuva de fofura.
As redes sociais, atualmente, se equiparam à força dos tablóides europeus em que tudo ganha proporções inimagináveis e Preta sempre foi um nome muito comentando, de maneira positiva ou negativa na internet. “O advento da internet trouxe a liberdade e o obscurantismo a tona. De repente aquela tia racista ou aquele primo homofóbico que faziam ‘piadas’ dentro de casa estão externalizando esses ódios. Todo mundo ganhou voz. Durante muito tempo me espantei, mas hoje não me assusto, porque eu já lido com pessoas caretas, racistas e fascistas há muito tempo. Eu nunca vou deixar de ser eu para agradar ninguém”, dispara.
As duas amigas mudam o tom da conversa e trazem a pandemia como pauta nesse final da transmissão e fazem muitas reflexões sobre o assunto. Maga comenta que estamos passando por um processo muito profundo de observação e principalmente, aqui no Brasil, em que estamos vendo a ignorância nos governos, em que uma sociedade arcaica, negativista, cafona ganhar voz pelas redes. E pergunta para Preta como ela enxerga a luta pela democracia, por um país mais justo, e o combate ao racismo? “Quando tudo parou e eu fiquei doente (Preta Gil foi uma das primeiras artistas a ser diagnosticada com Covid-19, pegou trabalhando em uma festa, em Itacaré, sula da Bahia), foi muito assustador porque não sabemos muita coisa sobre essa doença. Parecia uma sentença de morte e entendo que o nosso comportamento, a solidariedade, a responsabilidade com o outro, aguçou em mim, mil sentimento com o coletivo e que a falta dele é o grande mal da sociedade. Muitos só pensam no próprio umbigo. A gente só quer trabalhar, trabalhar, possuir, comprar, consumir e morrer”.
Preta revela que por conta do isolamento começou a ficar muito depressiva por conta da política brasileira e do mundo. “Apesar de tudo tem momentos como esse. Não temos que entregar o jogo para ninguém. Quem disse que ia ser fácil? Temos que nos organizar, nos unir e fazer coisas coisas boas. Como se combate o mal? Jogando luz. Quando você se depara em um cenário político como esse que é desesperador e vê na internet uma conversa entre Margareth Menezes e Djamila isso é um bálsamo. Nós somos o contraponto disso tudo, a nossa arte, música. Eu me assusto, principalmente sendo filha de um homem que foi preso político, expulso do seu país, uma família que viveu a ditadura de uma maneira brutal na pele, e ver esses clamores pela volta da ditadura, assusta muito, mas nós continua lutando, emanando amor, não tem outro caminho”, conta.
A anfitriã também revela que começou a ter sua saúde mental abalada, ficando depressiva. “Eu fui entrando em um situação em que eu ficava muito revoltada, mas ao mesmo tempo o que eu podia fazer? Minha agenda acabou, eu tinha shows até julho. Depois de um mês, eu estava agradecendo a Deus, por ter condições financeiras e psicológicas, mas estava preocupada com o povo”, revela. Para ela o grande segredo para estar bem neste momento é fortalecer a positividade da vida, e estar perto de pessoas que vibram com a mesma energia. “O bem sempre vence, só é preciso ter um pouco de paciência, existe um grande Deus que está vendo tudo isso, a força que emana na vida, que emana a saúde e é uma constante no universo e foram esses pensamentos que me resgataram. Você precisa ter os cuidados básicos de higiene, limpeza, cuidar da sua alimentação, e não deixar a negatividade se aproximar. Esse é o ponto chave”, conta.
Preta encerra dizendo que a situação do Brasil com relação ao coronavírus é muito trite, estamos nos aproximando dos 48 mil mortos. “É muito tenso. Não existe nenhum artista no Brasil que não sentiu esse momento, todos tivemos que nos reinventar, porque a nossa arte depende do público. Sozinhos em casa tocando violão, não somos ninguém. Por isso precisamos da internet. Quando eu imaginar que ficaria uma hora aqui conversando com você? Mesmo com esses 35 anos de amizade nunca tivemos essa oportunidade. A gente está trancado dentro de casa, mas não estamos parados”.
No fim da live, elas cantaram ‘Vá se benzer’, uma canção que é um grande hino ao preconceito e a maldade humana. Os versos dizem:
“Vá se benzer
Não banque o santo
Eu não pareço com você
Não acredito no que vejo na TV
Meu sangue é forte, de origem nobre
Negro, branco, índio eu sou
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