*por Vítor Antunes
Na semana passada, durante o pré-lançamento de “Betinho – No fio da Navalha“, o produtor cultural José Junior – que é um dos realizadores do projeto, uma parceria do AfroReggae com o Globoplay, revelou que o seu próximo trabalho será a biografia de Herbert Daniel (1946-1992), escritor, sociólogo, jornalista e que deixou sua chancela na luta pela democracia no Brasil, pelo fim da discriminação contra pessoas portadoras do vírus HIV, pelos direitos das mulheres, dos homossexuais, da população negra, e dos povos indígena. Herbert Daniel uniu-se a Betinho e fundou a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA), assim como o Grupo pela VIDDA (Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids), ONG que teve como objetivo garantir às pessoas que conviviam com o HIV, tivessem participação ativa e determinante nas políticas públicas sobre a doença.
Foi nessa época, 1989, que Herbert descobriu-se soropositivo. A série biográfica sobre o sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), o Betinho, é a primeira sobre ativistas sociais que o líder do AfroReggae quer tocar. Herbert Daniel é citado com recorrência na série sobre Betinho, na qual é vivido por Ed Moraes. “Ele foi um dos nomes importantes em fazer com que a medicação para o HIV fosse trazida para o Brasil”. Neste ano, 2023, completa-se 40 anos da chegada do vírus no país. Hoje há controle sorológico através de apenas um medicamento, além do uso do PrEP (profilaxia pré-exposição), que auxiliou a diminuir o contágio do vírus. O mês de dezembro é tido como aquele no qual se debate sobre a conscientização do HIV.
Dados apresentados na última quinta-feira (dia 30) pelo Ministério da Saúde sinalizam que, em 2022, 1milhão de pessoas vivia com HIV no Brasil. Desse total, 90% (900 mil) foram diagnosticadas, 81% (731 mil) das que têm diagnóstico estão em tratamento antirretroviral e 95% (695 mil) de quem está em tratamento antirretroviral têm carga indetectável do vírus. Além disso, o boletim epidemiológico HIV/Aids também documentado pelo Ministério da Saúde pontua que “o Brasil alcançou uma das três metas globais definidas pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) para que a patologia deixe de ser uma ameaça à saúde pública até 2030. A entidade fixou as metas popularmente conhecidas como 95-95-95, em que os três índices devem ficar em 95%”.
PARA TODO MAL, HÁ CURA
Na série sobre Betinho, a temática do HIV esteve presente. E de forma tão singular, a data escolhida para hospedar a série na plataforma foi 1º de dezembro, Dia da conscientização para o HIV. O protagonista da série convivia com a doença, contraída numa transfusão de sangue, assim como seu irmão, Henfil (1944-1988). Ambos eram hemofílicos. Enquanto estava na produção da série sobre Betinho, José Junior flagrou-se com a biografia de Herbert Daniel, também militante de esquerda, e depois ativista da causa do HIV. Herbert ganhou destaque na série e foi vivido por Ed Moraes. “Fui descobrindo camadas importantíssimas de Herbert Daniel através de seus artigos e livros. Ele foi um grande articulador de oposição à ditadura militar no Brasil. Herbert foi um dos principais personagens a fazer com que a medicação para o HIV chegasse ao Brasil, além de ser um dos últimos exilados políticos, quando deixou o país em 1972”, disse o ator. Ed chegou a ter contato com familiares de Herbert, além de ter participado de um documentário sobre ele e ter conversado com Dilma Rousseff, que era amiga do ativista, e tal como ele, participou dos movimentos de oposição ao regime militar.
O nome de Herbert Daniel também é muito relevante para a historiografia LGBT. Leila Míccolis e ele publicam em coautoria um texto intitulado “Jacarés e Lobisomens: um ensaio sobre a homossexualidade” (1983), em plena ditadura militar, que combatia duramente qualquer discussão ou citação ao tema. Colocou-se em grupos de oposição à ditadura, e em 1972 exilou-se em Portugal e só retornando ao país em 1981. Tentou ser deputado em 1986, mas não foi eleito. E colocou-se como crítico às organizações guerrilheiras da qual fez parte, tendo-as como muito academicistas e distantes do povo. “É o povo assistindo a luta entre
guerrilha e ditadura, mas sem conseguir intervir para o resultado final (…). Torcer não é participar, mas a condição limitada da platéia”, dizia Herbert. Ele tinha medo de expor e debater sua homossexualidade, pois acreditava que isto atrapalharia a militância política.
Quando descobriu a soropositividade, Herbert não queria que o HIV fosse mais valorizado do que outras doenças e problemas sociais “para que não exercesse um fascínio mórbido, uma
curiosidade extremada, que como se verá, desembocará somente em malefícios”, como diz o pesquisador Cláudio Piotrovski na dissertação “A Trajetória Soropositiva de Herbert Daniel“. Ainda segundo o pesquisador, a ABIA “criou um banco de AZT. Pessoas com o vírus se cadastravam e, numa emergência, recebiam-no sob a garantia de repor a quantidade usada”.
(…) Eu estava vendo tal coisa esse e ano que vem eu não vou ver, vou
perder’. Quando falei isso, Cláudio, meu companheiro, disse assim: ‘você não vai perder nada. Quem vai perder sou eu, que vou estar vendo isso sem você. Eu vou estar muito triste.
Eu vou perder’. Eu aprendi que é isso: [Com a morte, é ] O outro é que perde! A gente não
perde a vida. O outro perde a vida que a gente tem – Herbert Daniel, jornalista e sociólogo, em 1989.
Um pioneirismo naqueles idos, em que receber o diagnóstico da Aids era quase similar a uma sentença de morte. Quarenta anos depois, há uma nova leitura sobre a doença. Além de muita esperança. Cada vez mais, ela é compreendida como a uma doença crônica, controlável com medicação, e que permite à pessoa que convive com ela, ter uma vida normal.
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