Deborah Colker: “Não tenho o menor saco para normalidade. Me desculpe, perdi a paciência”


A coreógrafa fala de ‘Cura’ seu novo espetáculo que terá estreia inédita ao vivo e com sinal aberto pela Globolplay. Com dramaturgia do rabino Nilton Bonder e música de Carlinhos Brown, o novo espetáculo mostra a dedicação da coreógrafa desde o nascimento do primeiro neto Theo, há 12 anos, buscando caminhos para a cura da doença genética epidermólise bolhosa. Essa vivência é o ponto de partida do novo trabalho, que trata de ciência, fé, do enfrentamento da discriminação e do preconceito. E quando a Covid se espalhou, pensar no cruzamento do tema foi inevitável. “O Theo sabe o que é isolamento. Agora todo mundo conheceu. Já ele foi obrigado a fazê-lo muitas vezes ao longo da vida. Na verdade, o problema não são as doenças raras, é a sociedade. Quem não sabe lidar com isso somos nós. Ninguém é melhor do que ninguém, mas existem pessoas raras, extraordinárias e precisamos ampliar nosso olhar”

*Por Brunna Condini

Deborah Colker concedeu esta entrevista ao site HT às vésperas da estreia do seu novo espetáculo, ‘Cura‘, diretamente da Cidade das Artes, onde a companhia ensaia e vai se apresentar. E falou com entusiasmo da transmissão do espetáculo – pela primeira vez neste formato ao vivo, com sinal aberto por streaming – no sábado (25), através da Globoplay, às 20h .”Estou muito feliz com essa estreia. Ninguém nunca fez no streaming a transmissão de um espetáculo de dança ao vivo, gratuito, isso é uma democratização da arte e da dança em um momento em que estão querendo mutilar e aniquilar a arte a cultura deste país. É muito importante dar esse acesso”, vibra Debora, que depois segue em temporada com o espetáculo presencial no mesmo local, entre os dias 6 e 31.

E adianta: “Quem assistir ‘Cura’ pode esperar se emocionar. É um trabalho que faz um caminho, te chama para uma aventura intensa. Passa por povos, culturas, pensamentos, passa pela doença e vai construindo conexões com forças poderosas, forças divinas. Cada um tem as suas, eu proponho algumas, mas o importante é entender que tem algo maior. E termina com uma festa, uma alegria. As células vão ficar cantando e dançando”.

Com dramaturgia do rabino Nilton Bonder e música de Carlinhos Brown, o novo espetáculo mostra a dedicação da coreografa desde o nascimento do primeiro neto Theo, há 12 anos, buscando caminhos para a cura da doença genética epidermólise bolhosa. Essa vivência é o ponto de partida do novo trabalho, que trata de ciência, fé, do enfrentamento da discriminação e do preconceito. E quando a Covid se espalhou, pensar no cruzamento do tema foi inevitável.

“Falo de uma cura que não é a do vírus, mas a pandemia também nos coloca diante do respeito à ciência, à natureza, à saúde. Este espetáculo nasce de uma história pessoal, mas vai para povos, religiões, culturas, saberes. Com o nascimento do Theo, fui aprendendo que meu grande inimigo é a ignorância e meus maiores parceiros são as pesquisas genéticas e científicas”. E revela que a presença do neto em ‘Cura’ vai além da força motriz: “Quem conta a história de matrizes africanas no espetáculo é o Theo. A voz que narra é a dele. É muito lindo. Normalmente são as avós que contam as histórias para os netos, mas aqui é meu neto que conta para a avó”.

"Quem assistir o espetáculo pode esperar se emocionar. É um trabalho que faz um caminho, te chama para uma aventura intensa. As células ficam cantando e dançando" (Foto: Cafi)

“Quem assistir o espetáculo pode esperar se emocionar. É um trabalho que faz um caminho, te chama para uma aventura intensa. As células ficam cantando e dançando” (Foto: Cafi)

Deborah detalha o processo intenso. “Esse espetáculo nasceu entre o final de 2017 e o início de 2018, quando Stephen Hawking, morreu de ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), que  é uma doença super cruel. Por fim, ele só mexia a pálpebra. Um homem que escreveu tantos livros importantes, com teses sobre o cosmos, sobre o buraco negro. E apesar de terem dado apenas três anos de vida quando ele contraiu a ELA, esse cara genial viveu mais 50 criativos e iluminados anos”, diz.

"Precisava fazer uma ponte entre a fé e a ciência. Sabia que precisava de outra cura. Precisava poder gritar e saber calar. Agir e saber esperar. A ciência demanda muita paciência" (foto: Leo Aversa)

“Precisava fazer uma ponte entre a fé e a ciência. Sabia que precisava de outra cura. Precisava poder gritar e saber calar. Agir e saber esperar. A ciência demanda muita paciência” (foto: Leo Aversa)

“Isso foram dois anos antes da pandemia. Este trabalho é sobre a cura do que não tem cura. A doença ELA não tem cura, é terrível, mas ele encontrou a cura, caminhos. E tem a ver com esse processo meu e o questionamento de não entender como algo pode ser considerado incurável. Tudo tem que ter cura. Senão física, emocional, intelectual, espiritual”. E completa: “O meu espetáculo anterior, ‘Cão sem Plumas’, era sobre o inadmissível, o inconcebível, sobre a minha indignação, a minha revolta, a minha luta. Quando saí deste trabalho, sabia que precisava fazer uma ponte entre a fé e a ciência. Sabia que precisava de outra cura. Precisava poder gritar e saber calar. Agir e saber esperar. A ciência demanda muita paciência. Porque cada experimentação, caminho de uma terapia genética, tem muitas fases, até chegar numa criança, demora. Então, precisava me fortalecer com outros conhecimentos, sabedorias, precisava ampliar tudo que eu já vinha conhecendo, estudando, lutando nestes anos”.

"A pandemia me fez ter certeza de que não era apenas da doença física que eu queria falar. A cura que eu quero não se dá com vacina" (foto: Leo Aversa)

“A pandemia me fez ter certeza de que não era apenas da doença física que eu queria falar. A cura que eu quero não se dá com vacina” (foto: Leo Aversa)

Dores e esperança

A estreia de ‘Cura’ aconteceria em Londres ano passado, mas o adiamento por conta da pandemia deu ao espetáculo mais um ano de imersão no tema. “Isso me fez ter certeza de que não era apenas da doença física que eu queria falar. A cura que eu quero não se dá com vacina”, afirma. “Então, precisei fazer viagens, fui à África, à Bahia. Visitei outras culturas, estudei. O Nilton Bonder é o rabino mais transgressor que eu conheço, ele veio comigo neste projeto e ‘dançamos a guerra da doença’, o curativo, os pedidos, a transcendência. Lembro que quando voltei da África ele me perguntou se eu tinha encontrado a cura que eu fui buscar. Eu respondi que não, mas encontrei a alegria. Lá as pessoas que vivem nas situações mais miseráveis ainda conseguem cantar e dançar nas ruas. Existe alegria, potência. A arte nasceu da África. Neste espetáculo vamos cantar e dançar. Há dores mostradas no palco, mas há esperança no final”.

"Neste espetáculo vamos cantar e dançar. Há dores mostradas no palco, mas há esperança no final" (Foto: Leo Aversa)

“Neste espetáculo vamos cantar e dançar. Há dores mostradas no palco, mas há esperança no final” (Foto: Leo Aversa)

A artista incorporou ao espetáculo referências das três religiões monoteístas e elementos de culturas africanas, indígenas e orientais. E tudo começa com a história de Obaluaê, orixá das doenças e das curas. “Quando ouvi na Bahia a história dele vi que conhecia essa história de perto. Quer dizer, são coincidências que não são coincidências. A vida vai te fazendo olhar melhor o que você não está vendo”.

O novo projeto também evidencia o amadurecimento de Deborah ao contar histórias em seus espetáculos. “Eu diria que em ‘Cura’ tenho cinco personagens, meu neto Theo, que narra algumas histórias e é parte desta história; Obaluaê, que nos faz entender que doença e cura estão juntas, dentro da fragilidade você encontra força, você tem que preservar a alegria, o transcender. Tem o cientista Stephen Hawking que perde tudo, mas não perde a sua cabeça, sua capacidade de pensamento, sua inteligência. Tem Jesus, que talvez seja o maior símbolo, o homem que traz o amor para a civilização, a cura através do amor. E tem o Leonard Cohen, o poeta, que se encontra e percebe que a morte faz parte da vida. Talvez a grande cura seja a morte. Não é que a vida foi arrancada de você, mas a morte foi inventada pela vida. Este espetáculo tem algo muito forte com a fé e a ciência, mas também tem uma coisa muito forte, com o meu maior inimigo, a ignorância, a discriminação, o preconceito. A ‘falsa normalidade’, a ‘falsa inclusão’, para ‘inglês ver’, como se diz por aí”, define.

"O figurino deste espetáculo é uma pele em carne viva, precisando ser protegida, curada. É muito forte. Quando você vai tratar de cura, tem que falar da doença" (Foto: Leo Aversa)

“O figurino deste espetáculo é uma pele em carne viva, precisando ser protegida, curada. É muito forte. Quando você vai tratar de cura, tem que falar da doença” (Foto: Leo Aversa)

Amor maior

Deborah também é avó de Alice e Rafael, irmãos mais novos de Theo que já é um pré-adolescente. “Ele curte ficar no computador, no celular, com os amigos, luta caratê. Tem a luta dele com a vida dele. Todos nós lutamos, mas digamos que uma pessoa que nasce com EB, nasce com uma outra realidade”. E diz que apesar dos interesses da sua idade, o neto já viu alguns espetáculos seus. “Gosta mais dos pops, das paredes escaladas (risos). Ele já viu ‘Cura’ e gostou. Mas têm partes que me questionou porque as pessoas vão querer assistir. Para você ter uma ideia, o figurino deste espetáculo simula uma pele em carne viva, precisando ser protegida, curada. É muito forte. Quando você vai tratar de cura, tem que falar da doença”.

"O Theo tem muito humor, é sagaz, ele sabe da importância de tudo o que estou fazendo. Meu neto sabe o que é isolamento. Agora todo mundo conheceu. Já ele, foi obrigado a fazê-lo muitas vezes ao longo da vida" (Reprodução Instagram)

“O Theo tem muito humor, é sagaz, ele sabe da importância de tudo o que estou fazendo. Meu neto sabe o que é isolamento. Agora todo mundo conheceu. Já ele, foi obrigado a fazê-lo muitas vezes ao longo da vida” (Reprodução Instagram)

“O Theo tem muito humor, é sagaz, ele sabe da importância de tudo o que estou fazendo. Meu neto sabe o que é isolamento. Agora todo mundo conheceu. Já ele, foi obrigado a fazê-lo muitas vezes ao longo da vida. Na verdade, o problema não são as doenças raras, é a sociedade. A natureza é diversa, isso não se questiona. Tem gente que nasce com uma doença rara, gente sem uma perna, e se a natureza nos coloca neste planeta assim, porque assim é. Quem não sabe lidar com isso somos nós. Ninguém é melhor do que ninguém, mas existem pessoas raras, extraordinárias e precisamos ampliar nosso olhar”.

E conclui, após um tempo. “Theo é meu primeiro neto e o motivo de uma felicidade imensa na minha vida. Sou apaixonada por esse Theo, esse que aí está. Claro que não quero que a vida seja tão difícil para ele, e sou a primeira que estou ali no batente para as coisas melhorarem. Para ele e para todos os que conheci. Porque passei a conhecer o mundo especial e te digo que não tenho o menor saco para normalidade. Me desculpe, perdi a paciência”. E acrescenta: “Hoje em dia sou uma pessoa muito melhor, muito mais forte. Dentro de todas as minhas fragilidades. Sou uma pessoa que tem muito o que fazer, o que lutar. Sou uma avó melhor, uma mãe melhor, uma filha melhor. Uma artista mais concentrada, focada. Existe uma urgência na vida. Ela é tão incrível para ser vivida, que é urgente, o que é diferente de ter pressa. Falo de qualidade, uma demanda por nobreza, respeito, compreensão. Têm coisas inevitáveis como o envelhecimento, a doença, a morte, mas o conhecimento acalma. Passamos a ter humildade quando entendemos que não somos o centro do mundo. Os valores vão mudando”.

"Temos que escolher o caminho da sabedoria, da luz, do bem. A EB do Theo vai ter cura. O câncer vai ter cura. Mas a ignorância é uma opção sem cura. Atravanca, atrapalha, é peso pesado" (Reprodução Instagram)

“Temos que escolher o caminho da sabedoria, da luz, do bem. A EB do Theo vai ter cura. O câncer vai ter cura. Mas a ignorância é uma opção sem cura. Atravanca, atrapalha, é peso pesado” (Reprodução Instagram)

Tem algo que identifique como não tendo cura em nosso país hoje? “Você não vai querer que eu fale o nome, né? (risos). Nem dele e nem do clã. A ignorância não tem cura. Alguém escolher esse caminho, não tem cura. Temos que escolher o caminho da sabedoria, da luz, do bem. A EB do Theo vai ter cura. O câncer vai ter cura. Mas a ignorância é uma opção sem cura. Atravanca, atrapalha, é peso pesado”.

Produzindo por aqui e acompanhando o seu ‘Cão sem Plumas’ estrear no Canadá, a coreografa conta que foi convidada pela Ópera Ventures e a Scottisch Opera, de Londres,  para dirigir ‘Anaidamar’ composta pelo argentino Osvaldo Golijov sobre Frederico Garcia Lorca (1936/1898), o poeta espanhol. “É algo que eu nunca fiz e a estreia será só em outubro do ano que vem. Tem elenco, orquestra, é algo grandioso, cinco protagonistas. E é a poética do Lorca, algo antifacista, pela liberdade. E isso estamos falando do início do século 20. Olha com o ser humano é lerdo em evoluir”.