Nany People tem 50 anos. Destes, 30 vivendo em São Paulo como artista. Ela chegou à pauliceia “com um colchão de espuma embaixo do braço, num ônibus e um sonho na cabeça” vinda de Poços de Caldas, no interior de Minas Gerais, onde foi criada. De lá para cá, o sonhou virou realidade, muita coisa mudou e o currículo inchou: coluna em revista, repórter de programas sociais (o de Hebe Camargo é um deles), atriz – tanto em teatro, quanto em cinema -, reality show, programa de rádio, jurada de show de calouros e muitos espetáculos de comédia. São tantos aliás, que ela resolveu compilá-los num só. É o “Nany 3 em 1” com história do “Então…deu no que deu”, “Tsunany” e “Minhas verdades – Muito mais que um stand up“; em curta temporada de dois meses no Teatro J Safra, todas as quintas, na Zona Oeste da terra da garoa. Horas antes de assumir a ribalta para arrancar gargalhas, Nany guardou a seriedade para conversar com HT. Abaixo, as palavras da também nova contratada da Rede Record para ser repórter do programa da “Xuxa”. “Da Hebe para a Xuxa: de uma rainha para a outra”, ela se gaba. Porque pode.
HT: Você é a mesma Nany People do palco quando está em Poços de Caldas?
NP: Poços de Caldas é meu grande reduto. Lá eu tiro meu salto de 20 centímetros, coloco a sandália e vou ser a filha da dona Ivone.
HT: Mas agora você é famosa. Qual a diferença comparado a antes?
NP: Famosa eu sempre fui, desde criança (ri). Minha fama lá é antiga (gargalha). Eu saí de Poços, mas Poços nunca saiu de mim. Mas eu nunca perdi a noção da realidade. Nunca deixei a falsa expectativa que o povo tem de fama entrar no meu dia a dia. Sou daquelas que convive com amigo de escola até hoje. Lá eu não sou a Nany People e sim a filha da Dona Ivone.
HT: Mas você, querendo ou não, tem lá sua fama…
NP: O que muda, na verdade, é a expectativa. Eles acham que você tem que desfilar com roupa de grife, andar em certo tipo de carro. E eu continuo visitando as mesmas senhorinhas que eram minhas vizinhas quando era criança. Eu não me deslumbrei, continuo a mesma pessoa. Sabe o Zeca Pagodinho que não sai de Xerém (na baixada fluminense)? É que nem eu em Poços de Caldas. Essa ideia de glamour, de tomar banho de champanhe, é um equívoco.
HT: Quando você fala que não se deslumbrou, o que reflete na prática?
NP:Eu, por exemplo, não tenho empresário, tenho produtor. Ou seja: eu não sou mais uma galinha no poleiro de um empresário. Eu mando no meu galinheiro. Mas continuo batalhando. Faço a linha: “Sou brasileira e não desisto nunca”. Vejo muitos amigos mesmo que começam a se deslumbrar e eu faço a louca e falo: “Filho, cai a ficha, desce do palco”. Tem uns já que começam a não querer tirar foto com público. Tá louco? Eu tiro foto com toooodo mundo.
HT: Ser famosa ajudou você a não sofrer preconceito por ser trans?
NP: Como eu posso sofrer preconceito, sendo transexual, com o currículo que eu tenho? Hebe Camargo, “A praça é nossa”, “A fazenda”, “Amaury Jr”, fora o teatro. Sou a pessoa menos indicada para falar sobre sofrer preconceito. Eu centralizei minha vida pela minha profissão e não pela minha condição. E talvez, por eu já ter 50 anos, não fique tão escrava dessa ditadura da beleza, desses padrões impostos, dessas cobranças. As pessoas só fazem com a gente o que a gente deixa.
HT: Mas quem dera se os versos de Pepeu Gomes, “ser um homem feminino não fere o meu lado masculino”, não refletissem ainda em preconceito para a maioria…
NP: Se todo mundo resolver revelar sua posição homossexual, o dinheiro vai mudar de mão. A indústria de casamento não vai vingar, por exemplo. O problema é que as pessoas precisam de estatuto, de uma pose. É o que eu chamo de “Estatuto do Casamento”. Eu até falo em uma peça minha, que a mulher, por mais que tenha se emancipado, capota na curva quando está ficando velha e vê que não casou. O motivo? Porque ela quer parir. O casamento é um controle de aceitação, parece. As pessoas se deixam levar pela cobrança desse estatuto. Mas o Brasil tem outras coisas muito mais graves como o preconceito social, racial, de estética; do que o próprio sexual. O preconceito é baseado na ignorância. Quando não se entende a colocação do outro. Nós só não temos leis severas que punam a discriminação sexual, em específico, como tem a Maria da Penha para as mulheres, por exemplo.
HT: Você não sente na pele, mas conhece de perto a realidade de quem sente, então…
NP: Eu cansei, cansei, cansei, cansei de, aos 50 anos, ver vários, vários amigos meus enterrarem seus companheiros e, quando chegar em casa, a família do falecido já ter trocado a fechadura e deixarem o coitado a rua. Eu mesmo já abriguei na minha casa mais de uma meia dúzia. Ninguém quer entrar de véu e grinalda em Igreja. É isso que não entendem . E teve muito juiz por aí, com seu preconceito, que se recusou a casar dois homens em seu cartório. Aí precisou de alguém com bom senso lá em Brasília dar uma canetada para falar “meu filho, guarde seu preconceito para longe do cartório” e liberar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. E é aquilo, né: manda quem pode, obedece quem tem juízo.
HT: O problema então, é mais na questão dos direitos, na sua ótica.
NP: Eu acabei de chegar do cartório por causa do título de eleitor. Só me chamam de senhora. Senhora, senhora, senhora. Eu não mudei meu nome por causa da burocracia. O problema não é nem o Nany, é o People. Teve uma vez que, como estava sem nome social no meu cartão de crédito, quando a telefonista ouvia minha voz, não batia e eu tive problemas. Cheguei no banco, nas tamancas, e disse: “Estou fechando a minha conta, porque eu não preciso estar passando por isso”. Rapidinho resolveram e hoje, até no meu cartão, tem lá na frente: Nany People. E o bom também que a trans consegue agora a chamada identidade social, que tem até no cartão do SUS (Sistema Único de Saúde) o nome.
HT: Para encerrar, você já contou alguma piada melhor que essa que os políticos contam para a gente diariamente?
NP: Nossa! A política brasileira não conta piada, contra tragédia. É para chorar. Passou da fase da graça. Não dá para virar circo, tem que procurar virar prisão. Não dá mais. É um acusando o outro. O sujo falando do encardido, um sentado em cima do outro.
*O Teatro J Safra fica na Rua Josef Kryss, 318 – Parque Industrial Tomas Edson, São Paulo – SP.
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