De “Bonnie and Clyde” à revista Vogue: Veneza celebra os irmãos Arthur e Irving Penn em documentário e expo de fotos


Dois irmãos célebres que se distinguiram em diferentes artes são lembrados simultaneamente em Veneza: Arthur, o cineasta-símbolo dos revolucionários anos 1960 e Irving, o refinadíssimo fundador do conceito de imagem-moda

*Por Flávio Di Cola, direto de Veneza

Seria possível um encontro dos gangsters Bonnie e Clyde com a Duquesa de Windsor? Ou de uma tribo Cheyenne com Salvador Dalí? Pois bem, isso está acontecendo em Veneza e através do legado artístico de dois irmãos na vida real. É verdade que em lugares e contextos culturais diferentes: na praia do Lido, aconteceu já no final da Mostra, a estréia mundial do documentário sobre e com o cineasta-produtor Arthur Penn (1922-2010) Mise en scène with Arthur Penn (A conversation), fruto de vários encontros do diretor iraniano Amir Naderi radicado nos Estados Unidos com Penn, dentro da Mostra Venezia Classici-Documentari, cujo objetivo é revisitar as obras dos grandes criadores da Sétima Arte através do olhar documental de outros cineastas. Enquanto isso, no primorosamente restaurado Palazzo Grassi, a alguns quilômetros da ilhota em que se desenrola o festival de cinema, estão expostas 130 fotografias de um dos mais importantes fotógrafos da alta moda, celebridades, still life e etnografias do século XX, na exposição “Irving Penn, Resonance”.

Arthur Penn: o cineasta posa no set (Foto: Reprodução)

Arthur Penn: o cineasta posa no set (Foto: Reprodução)

Embora fortemente influenciado pela obra de Orson Welles e pela Nouvelle Vague francesa, Arthur Penn viu mesmo a sua carreira deslanchar com um filmão poderosamente construído dentro do velho estilo de Hollywood e suas grandes interpretações femininas: “O milagre de Anne Sullivan” (The miracle worker, 1962) que recebeu dois prêmios Oscar da Academia, precisamente para Anne Bancroft e Patty Duke que simplesmente arrasam na história real de Helen Keller em sua cruzada para tratar de uma menina surda e muda praticamente selvagem.

"O milagre de Anne Sullivan": Bancroft e Paty Duke no filme que consagrou Arthur Penn (Foto: Reprodução)

“O milagre de Anne Sullivan”: Bancroft e Paty Duke no filme que consagrou Arthur Penn (Foto: Reprodução)

Depois desse triunfo, a obra cinematográfica de Arthur Penn passa a acompanhar o clima de revolta e inconformismo que tomou de assalto o próprio establishment hollywoodiano do meio da década de 1960 até quase o final dos anos 1970, através de títulos seminais como “Caçada humana” (The chase, 1966) – reunindo um elenco de primeiríssima linha de nomes como Robert Redford, Marlon Brando e Jane Fonda, para ficar só nos “monstros sagrados” daquele tempo -, e seu grande sucesso “Bonnie and Clyde uma rajada de balas” (Bonnie and Clyde, 1967), com Warren Beatty e Faye Dunaway, cuja cena final em que a dupla de gangsters é meticulosamente metralhada e literalmente reduzida a uma massa disforme de carne extrapolou todos os limites de violência explícita até então tolerados. Com esses dois títulos Penn foi entronizado como o diretor que ousou ir mais fundo na denúncia da violência endêmica sobre a qual estaria erigida a civilização americana.

Warren Beatty e Faye Dunaway em "Bonnie & Clyde", filme que redefiniu os parâmetros da estilização da violência  no cinema (Foto: Reprodução)

Warren Beatty e Faye Dunaway em “Bonnie and Clyde”, filme que redefiniu os parâmetros da estilização da violência no cinema (Foto: Reprodução)

Em 1970, Penn desfere uma nova patada no “sistema” – como se dizia naquele momento de radicalismos –, com o belíssimo e telúrico “Pequeno grande homem” (Little big man), estrelado por outro ator-referência dessa década de grande renovação do cinema norte-americano: Dustin Hoffman. Desta vez, a denúncia recai sobre o genocídio dos povos originais americanos ao narrar as peripécias de um homem branco num perigoso território Cheyenne até ser adotado pela tribo local. Em 1976, Penn dirige um western cômico “Duelo de gigantes” (The Missouri breaks) apostando na combinação corajosa de dois intérpretes sui generis: Marlon Brando e Jack Nicholson. Embora obtendo um resultado desapontador nas bilheterias, o filme suscitou boas fofocas de set, entre as quais a de que Brando e Nicholson estavam tendo um caso, o que nunca foi “desmentido” por esses dois grandes atores deliciosamente maliciosos e debochados.

Brando e Nicholson em "Duelo de Gigantes": suposto caso no set nunca desmentido pelos astros (Foto: Reprodução)

Brando e Nicholson em “Duelo de Gigantes”: suposto caso no set nunca desmentido pelos astros (Foto: Reprodução)

Já a trajetória de Irving Penn (1917-2009) na fotografia foi bem diferente da do irmão no cinema. Seu gosto pelas artes gráficas levou-o rapidamente ao encontro do mundo do luxo e da beleza ao iniciar sua carreira com passagens pela revista Harper’s Bazaar e a loja Saks, da Quinta Avenida, em Nova York. Isso não o impediu de se sentir atraído pelo “chamado ao exótico”, pois logo viajou para o México e Peru onde iniciou sua outra vertente de apuradíssimos trabalhos de registro de tipos humanos escolhidos em paragens remotas e ainda imersos num tipo de vida ancestral, preferencialmente “jovens de perfeita beleza física e de uma grande paz interior”, segundo seu próprio relato.

Esse campo de documentação etnográfica de Penn está muito bem representado na mostra do Palazzo Grassi através de fotografias captadas no Marrocos, Camarões, Daomé (atual Benin) ou Nova Guiné e publicadas na Vogue, que encomendou a maioria desses trabalhos, provocando forte impacto sobre o público e toda uma geração de fotógrafos. Este encontro de Penn com padrões de vida tribal fertilizaria – décadas depois – os registros que fez para a revista Look de outras tribos que proliferaram durante o auge da contracultura norte-americana dos anos 1960, como a dos hippies e Hell’s Angels. Por ser essencialmente um fotógrafo de estúdio, Irving Penn precisou construir um set portátil em que pudesse trabalhar os seus temas e objetos no contexto de um espaço neutro durante esses incômodos deslocamentos pelo mundo.

Mas foi o seu estúdio-sede em Nova York que tornou-se o point obrigatório das maiores celebridades do mundo do teatro, música, dança, literatura e cinema em passagem pela Big Apple a partir do final dos anos 1940. Mas seus retratos das personalidades que praticamente definiram toda a vida artístico-cultural do século XX tinham uma peculiaridade única: seus modelos deveriam ser fotografados entre os ângulos fechadíssimos de tapadeiras que constrangiam violentamente seus movimentos, embora eles fossem convidados a escolher a pose que preferissem. Os resultados são antológicos como comprovam os retratos que formam um arco de gente famosa tão diferente entre si como Marcel Duchamp, Duquesa de Windsor, Marlene Dietrich, Joe Louis, Georgia O’Keeffe, Salvador Dalí, Alfred Hitchcock, Jean Cocteau, Cecil Beaton, Truman Capote, Tennessee Williams ou Woody Allen caracterizado como Chaplin.

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Com uma contribuição toda própria para a longa tradição da arte ocidental no nu feminino, Irving Penn manipulou fotograficamente o corpo humano ao ponto de quase um abstrato absoluto, o que curiosamente se contrapõe às suas célebres e super midiatizadas fotografias para a alta costura, cristalizando uma perturbadora imagem de modelos absolutamente olímpicas que vão influenciar decisivamente não só essa modalidade de fotografia como a própria percepção que hoje temos da alta moda. Já no lado oposto – o da vida “real” – a exposição de Veneza inclui também a festejada série “The Small Trades”, fotografada no modesto estúdio ambulante de Penn entre 1950 e 1951 que retrata representantes de profissões populares como jornaleiros, bombeiros e operários, colhidos em Paris, Londres e Nova York. Sobre seus “modelos”, Penn fez um comentário que expressa zombeteiramente suas diferenças culturais: “Enquanto os trabalhadores franceses foram os mais ressabiados e os ingleses os mais orgulhosos, os americanos foram os mais engraçados, pois alguns compareceram à sessão de fotos com roupas de domingo, como se apresentassem para um teste em Hollywood!”.

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Grande parte dessas obras-primas de Irving Penn pertence à Coleção François Pinault, nome do empresário que sedimentou inicialmente a sua fortuna nas atividades de exploração de matérias-primas africanas. Já como grupo com atuação diversificada, Pinault passou a fazer aquisições de grandes marcas mundiais como a rede FNAC, até consolidar-se como a terceira maior empresa mundial do ramo do luxo, detendo o controle das etiquetas Gucci, Saint-Laurent, Boucheron, Stella McCartney, Alexander McQueen e Balenciaga, entre outras. A aquisição e a reforma do Palazzo Grassi e a transformação do ex-porto de Veneza na Punta della Dogana num dos centros mundiais da arte contemporânea mundial fazem parte do projeto da família Pinault de difusão ampla do conjunto de suas aquisições ao longo de quatro décadas.

Irving Penn: dos anos 1940 até 2009, mais de 60 anos de ótimos serviços prestados à iconografia da moda mundial (Fotos: Reprodução)

Irving Penn: dos anos 1940 até 2009, mais de 60 anos de ótimos serviços prestados à iconografia da moda mundial (Fotos: Reprodução)

Serviço:

Irving Penn, Resonance”

De 13 de abril a 31 de dezembro de 2014

Palazzo Grassi, Campo San Samuele 3231, Veneza

* Flávio Di Cola é publicitário, jornalista e professor, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ e coordenador do Curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá. Apaixonado pela sétima arte em geral, não chega a se encantar com blockbusters, mas é inveterado fã de Liz Taylor – talvez o maior do Cone Sul –, capaz de ter em sua cabeceira um porta-retratos com fotografia autografada pela própria