Davi Lucas. De ‘criança prodígio’ à negação da fama, psicólogo fala sobre haver sido ator mirim: “Não recomendo”


Atualmente em reprise com “Alma Gêmea”, no Canal Viva, Davi Lucas fala sobre a experiência de haver sido ator mirim e classifica a experiência como difícil e extenuante: “(…) A infância é meio que suprimida pelo trabalho. Tive muito mais ônus do que bônus por trabalhar desde cedo. (…)”. Lucas discute também os possíveis traumas que podem decorrer da maxi-exposição dos pequenos às redes sociais onde eles próprios são os famosos. “A gente continua fingindo que não faz mal e continuamos deixando tudo acontecer da mesma forma como um grande freak show onde as pessoas são absolutamente machucadas e poderão ser marcadas para o resto da vida”, pontua. Ativo na internet, o psicólogo alcança cerca de 145.000 seguidores nas redes sociais Instagram e TikTok com vídeos voltados à Psicologia

*Por Vítor Antunes

A toda criança que faz sucesso na televisão ou no cinema aplica-se imediatamente o estigma de “criança prodígio”. Não foi diferente com Davi Lucas. O carismático menino que co-protagonizou “O Pequeno Alquimista”, da TV Globo, em 2004, e Orelha, de “Malhação“, rapidamente foi alçado à teledramaturgia diária, fazendo Terê, personagem-orelha da mocinha Serena, de “Alma Gêmea”, novela de Walcyr Carrasco. Com trabalhos relevantes, Lucas resolveu encerrar a carreira também com uma novela do autor, “Êta Mundo Bom”, de 2016: “Quando a fiz eu já havia decidido em não continuar atuando. Eu queria novos horizontes. Passei dos sete aos vinte anos fazendo o mesmo e queria ver outras possibilidades de trabalho. Como eu já cursava a Faculdade de Psicologia, estava diante de uma grande chance de mudança, então só deixei que ela acontecesse”, relata ele, que, atualmente alimenta as suas redes sociais como o TikTok e o Instagram com vídeos direcionados à Psicologia.

Davi Lucas em “Eta Mundo Bom”, de 2016. Seu último trabalho na TV (Foto: João Cotta/Divulgação TV Globo)

A experiência com a fama e com o fato de haver iniciado uma carreira muito precocemente também foi algo definitivo e marcante para o jovem haver decidido mudar de profissão: “A minha ideia é de que só quer ter fama quem nunca teve, portanto a minha relação com ela é péssima. A fama, na minha ótica, dialoga com algo que foi falado pelo Dr. Paulo Muzy, médico, que é ‘A fama é o ônus do sucesso’. Em qualquer profissão, eventualmente, alguém há de ser famoso, porém eu nunca gostei de estar nesta posição, nunca flertei com essa possibilidade de uma maneira branda. Não gosto, em absoluto”, enfatiza.

Além da fama propriamente dita, outra ausência também é relatada: O fato de não ter vivido a infância com plenitude. Segundo Lucas, é algo incompatível trabalhar por várias horas e ‘ser criança’. “A infância”, conta ele, “Tanto no meu caso, como no de muitas pessoas que eu conheço, é suprimida pelo trabalho. Eu tive muito mais decréscimo, muito mais ônus do que bônus trabalhando desde cedo. Não é o que eu recomendo, já que é uma carga muito pesada, podendo chegar a 12, 14 horas de trabalho e num meio onde só há adultos”. Além disto, Davi comenta que a rotina doméstica em sua família era típica àquela de um lar onde todos trabalhavam demais. Seu pai, Davi Rangel, é radialista. Sua irmã, Aline Peixoto, cantora e atriz: “Quase não nos víamos e nos restava somente o fim de semana”. Efetivamente cicatrizada a ferida provocada pela fama, o rapaz salienta que hoje sente-se com “mais liberdade (para falar sobre) esse tema”.

Priscila Fantin e Davi Lucas, em “Alma Gêmea”. Ator alega não ter vivido a infância em razão de trabalhar excessivamente (Foto: Zé Paulo Cardeal/Divulgação: TV Globo)

Davi relata ser importante que todo ator, especialmente o mirim, passe por um preparo psicológico. Segundo ele, no caso das crianças, esta terapia não deveria ser facultativa. Já no que tange aos adultos, poderia haver maior autonomia, embora devessem eles estar respaldados quanto à saúde mental na representação de seu ofício: “Sendo maior de idade cada um decide por si. Eu acho que a ponte entre a Psicologia e a Arte Cênica poderia existir, entre os atores adultos, de maneira muito mais proveitosa. (…) No caso dos atores infantis, é ainda mais grave quando eles estão expostos a um papel de vilão ou a um hiperssexualizado, onde os danos, em muitas das vezes são irreparáveis”. Com efeito, não são poucos os exemplos de atores mirins que, de maneira ou outra tiveram problemas decorrentes da fama precoce. O ex-ator cita o exemplo de Macaulay Culkin, que passou por diversos problemas de ordem pessoal. Lucas discute também os possíveis traumas que podem decorrer da maxi-exposição dos pequenos às redes sociais onde eles próprios são os famosos. “A gente continua fingindo que não faz mal e continuamos deixando tudo acontecer da mesma forma. Hoje, crianças são expostas como instagrammers, tiktokers e influencers, e eu vejo tudo como um grande freak show onde as pessoas são absolutamente machucadas e poderão ser marcadas para o resto da vida”.

Davi Lucas é, atualmente, psicólogo clínico e atende na linha da Terapia Cognitivo Comportamental (Foto: Divulgação)

Sobre a história construída como ator e a inter-relação entre a prática clínica da Psicologia, Davi conta-nos que, lançando mão da Terapia Cognitivo Comportamental (TCC), ele usa da encenação como forma de ilustrar um comportamento e assim auxiliar seus pacientes. Ele explica: “Eu uso a encenação, evidentemente que numa proporção muito menor do que num set de filmagem, para, por exemplo, ser espelho pra pessoa e de alguma forma evidenciar a ela os comportamentos que ela vem apresentando. Esta é uma ferramenta interessante que me dá resultados”.

Num mundo que ainda respira os reflexos da Covid, o psicólogo argumenta que não são poucos os problemas relacionados à saúde mental de seus pacientes: “A pandemia apresenta muitos reflexos na clínica e de diversas formas e fatores. Há quem tenha perdido entes familiares, ou ainda aqueles que têm sequelas decorrentes da doença. O que aparece muito na clínica, também, são pessoas ansiosas e, reflexo da ansiedade, aquelas que não aprenderam a dizer “não”. E que por não terem aprendido a se colocar, tornaram-se vítimas da ‘sociedade do bom mocismo’, esta que ensina que quando alguém te pisa você deve ser grato pela humilhação, por exemplo. O que é algo que eu discordo. Aconselho meus pacientes dizendo que eles não devem, em absoluto, ser gratos a este tipo de situação”.

Davi Lucas (Foto: Divulgação)

Ainda antes da pandemia eclodiram na internet os coaches, profissionais que, embora sem formação acadêmica, desempenham funções e terapias que, vez por outra, dialogam com a pratica da Psicologia em seus moldes tradicionais. Davi não os problematiza: “Eu acredito que vai muito da ética profissional de cada pessoa. É como a gente acompanhou por diversas vezes na história do mundo: Quando alguma profissão está incluída num mercado muito grande, há quem se insira de maneira horrenda, bem como há os que se inserem de maneira positiva. Acho que diz muito mais sobre o profissional e o que eles está fazendo com esta fatia de mercado do que a seu segmento”.

A totalidade dos pacientes de Davi sabe de seu passado, segundo ele nos conta. Todos que o procuram o fazem como forma de mudar a narrativa da própria vida e estabelecer uma leitura mais saudável e um olhar mais humano para a própria condição de ser. Naturalmente, permitir esta mudança de paradigma no outro só foi possível quando o próprio Davi resolveu reescrever a própria história. Tal como seu personagem em “Alma Gêmea”, que era um menino em situação de rua e, no último capítulo, revelou-se o autor de tudo o que o telespectador viu nos 227 capítulos da novela, num interessante recurso metalinguístico proposto pelo real autor do folhetim, Walcyr Carrasco. Ao abandonar a dramaturgia, o rapaz ensaiou mudar, também, de nome, e usar um dos que consta em sua carteira de identidade. Talvez este seja o que mais o representa no momento. Sob a luz de uma outra trajetória, tudo que ele quer é ser Davi Paz. E ser adulto sob o olhar da criança que não pudera ser.