Ao contrário de gente famosa como Fernando Meirelles, Walter Salles ou José Padilha, o cineasta Eduardo Coutinho não era celebridade ou conhecidíssimo do grande público, embora tenha deixado uma obra valiosíssima para a cinematografia nacional e fosse aclamado pelos cinéfilos. Autor de clássicos como “Cabra Marcado Para Morrer” e “Edifício Master”, o documentarista ganhou fama entre a inteligentsia a partir dos anos 1960 como um film maker sensível, mestre na arte de contar histórias através de películas não ficcionais, mas tão emocionantes quanto histórias encenadas em roteiros de fantasia. Seus personagens da vida real eram capazes de causar profunda comoção na plateia, tal a sensibilidade com que o diretor captava aqueles momentos onde os seres humanos eram, digamos, mais humanos. Infelizmente, a partir de hoje, Coutinho se tornará bastante conhecido do público médio em geral – cujo interesse por documentary cinema não é o seu forte –, não pelo reconhecimento de sua obra nas páginas de segundo caderno, mas justo através das crônicas policiais dos tabloides. Seu estúpido assassinato a facadas, cometido neste sábado, na Lagoa, bairro chique da Zona Sul do Rio de Janeiro, tendo seu próprio filho como principal suspeito, ocupará os noticiários pelos próximos dias, chamando a atenção daquele mesmo vasto contingente de leitores e telespectadores que não tem nenhuma referência além dos elencos de novela ou participantes de reality show. Triste fim para um profissional brilhante que, aliás, sabia contar histórias dessa mesma gente ordinária que desconhece seu trabalho.
Premiadíssimo diretor de 23 filmes, Eduardo Coutinho tinha 80 anos e travou seu primeiro contato com o cinema através de seminário no MASP, fazendo parte da turma que frequentava as mesas de bar do Cinema Novo. Estimado como roteirista, atuou com diretores importantes como Leon Hirszman, Zelito Viana e Eduardo Escorel e, dentre seus trabalhos, sobressai o roteiro do icônico “Dona Flor E Seus Dois Maridos”, de Bruno Barreto, pela importância que o filme conserva ainda hoje como um marco de público nacional. Em meados dos anos setenta, entrou para a equipe do “Fantástico”, na TV Globo, ficando até 1984 para em seguida estourar na mídia especializada com “Cabra marcado para Morrer” (1985), o longa que começou a filmar na década de 1960 sobre o assassinato do líder das Ligas Camponesas, João Pedro Teixeira, e que acabou interrompendo por quase vinte anos, a partir do Golpe Militar de 1964. Ele e sua equipe foram tachados de comunistas, mas a trajetória de Coutinho não seria a mesma sem esses percalços. Tudo que era questão das minorias lhe fazia sentido.
Pobre-coitados surpreendidos por processos históricos, metalúrgicos do ABC, sindicalistas, prostitutas da Boca do Lixo, em São Paulo, grevistas, favelados, romeiros de Padre Cícero e até o pintor Cândido Portinari foram personagens reais que estrelaram seus média e longa-metragens. E, na virada do milênio, o diretor voltou a causar rebuliço com uma nova produção, “Edifício Master” (2002), que contava as desventuras dos moradores de um edifício de minúsculos apartamentos – tipo pardieiro – encravado na babélica Copacabana dos dias atuais. Ele e a equipe chegaram a se mudar de mala e cuia para o minhocão durante três semanas, de forma a criar intimidade com os moradores, todos de classe baixa ou média-baixa, o que contribuiu para o resultado visceral. De emocionar. Sim, com Coutinho, a vida era assim. Masterizava as vidas dos curiosos habitantes de cabeças de porco e registrava as peripécias severinas dos desafortunados pelo Brasil afora. O que ele não sabia é que, assim como a vida imita a arte, ele também estava destinado a ser cabra marcado para morrer.
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