*Por Rafael Moura
As definições de recordes foram atualizadas, pelo menos na F1, porque o piloto britânico Lewis Hamilton virou as pistas de automobilismo pelo avesso e deixou todos mundo comendo poeira. Aos 35 anos, o piloto da Mercedes conquistou 92 vitórias, pegando a taça de grande campeão do alemão Michael Schumacher (91 vitórias), conseguindo um lugar entre as personalidades mais influentes do mundo, segundo a lista da revista norte-americana Time.
O primeiro negro a ocupar esse posto de heptacampeão na categoria é um ativista na luta contra o preconceito racial. Ao saber do caso de João Alberto Silveira Freitas, espancado até a morte por seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre, na quinta-feira passada (19), véspera do Dia da Consciência Negra, Hamilton se disse devastado com “outra vida negra perdida”. “Ainda está acontecendo e nós temos que lutar para que isso não continue. Estou mandando todos os meus sentimentos e minhas orações para o Brasil. Descanse em paz, João Alberto Silveira Freitas”, escreveu o piloto em uma publicação no Instagram.
A luta de Hamilton contra o racismo é antiga. Ele já bateu boca com Bernie Ecclestone quando o ex-chefão da Fórmula 1 disse que “negros são mais racistas do que os brancos”. Em suas redes sociais, o piloto expôs que inúmeras vezes foi silenciado pelo racismo em tentativas anteriores de se posicionar sobre o problema. “É um combate por igualdade, não se trata de política ou propaganda”, disse. Defendendo pautas de inclusão e diversidade, o ídolo tem a força para provocar uma debate antirracista que o automobilismo provavelmente jamais teria. “Eu expliquei que o silêncio se torna cúmplice. Há silêncio em alguns casos, mas acredito que isso faz parte do diálogo, do processo de compreensão, porque ainda há pessoas que não entendem o que está acontecendo e o motivo dos protestos, então vou continuar tentando ser um guia, uma influência para o máximo de pessoas que puder”, ressaltou.
O piloto acrescentou que não se preocupa com a fama. “O que está claro para mim é que, embora seja legal ter todas essas vitórias, o mais importante é o que você faz fora do carro. Acho que é assim que o verdadeiro impacto pode ser feito. Em relação a ser lembrado, eu nunca tive essa vontade. Tomara que meus fãs se lembrem de mim como alguém que é um bom ser humano, que realmente se importa com o mundo e que fez o que fez com a melhor das intenções. Não é importante para mim ser lembrado como o melhor”, afirmou.
Não foi um processo fácil a caminhada de Hamilton desde que era um “estranho no ninho” até se tornar um catalisador de mudanças no esporte, tanto abrindo a discussão sobre a falta de diversidade, quanto discutindo pautas ambientais. Quando o inglês estreou na categoria, aos 22 anos, em 2007, pela então sisuda e conservadora McLaren, até evitava tocar em temas raciais. Dizia que não queria ficar marcado apenas como o primeiro negro da categoria.
Foi necessário primeiro ir para a Mercedes a mudança de postura. A equipe lhe permitiu firmar contratos que cada vez mais lhe davam autonomia para tocar seus projetos extrapista. A voz de Hamilton ia ganhando mais importância à medida que colecionava vitórias. Assim, ele passou a ser mais atuante, levantando bandeiras relacionadas à diversidade e ao ambientalismo, tema em que se aprofundou depois de se tornar vegano, em 2017.
Mas como um piloto de F1 pode ser ambientalista? “Pelo menos estou iniciando a discussão a respeito disso. Eu nunca tinha sido perguntado sobre o assunto em toda a minha carreira. Isso mudou agora, e é positivo. Eu respeito totalmente as pessoas que têm opiniões negativas porque eu sou piloto. Mas lembrem-se que, se eu não corresse e mencionasse essa questão, ninguém me ouviria. Faço o que eu faço porque amo, mas também porque acho que isso pode criar uma plataforma para eu gerar mudança.”
Pai de Hamilton o ensinou ignorar o racismo e “responder nas pistas”
A questão racial obviamente fez parte da vida de Hamilton desde a infância. Os negros são minoria no Reino Unido, especialmente, nas pistas de kart. O piloto foi ensinado pelo pai, Anthony Hamilton, que era melhor engolir os insultos e “responder na pista”. “Quando eu comecei, segui o conselho do meu pai para trabalhar dobrado, não revidar, fechar a boca e deixar que a minha pilotagem falasse por mim. Era só quando eu estava de capacete que eu me sentia livre para ser eu mesmo.”
A mentalidade de Hamilton começou a mudar quando ele rompeu com o pai, em 2011, e entrou em contato com um mundo completamente diferente, dentro do círculo da então namorada, a cantora norte-americana Nicole Scherzinger.
Foi naquele ano, inclusive, que fez sua primeira menção clara ao racismo na F1, após ser punido durante o GP de Mônaco. Perguntado por que achava que tinha recebido a punição, ele disse: “É porque eu sou negro. O Ali G que me disse. Eu não sei”, respondeu, referindo-se ao comediante canadense de origem iraquiana. Na época, a declaração causou um furor, especialmente na mídia britânica, que culpava as novas amizades do outro lado do Atlântico pela mudança de comportamento. Hamilton chegou a se desculpar pelo comentário. Mais uma vez, tratava-se de um atleta questionando o racismo e sendo repreendido em vez de ouvido.
É por isso que Hamilton só começou a tratar o tema com mais intensidade nos últimos anos, quando passou a ficar claro que, estando a bordo da Mercedes e cometendo pouquíssimos erros, era uma questão de tempo até que ele se tornasse o piloto mais vencedor da história da F1.
Sem referências negras no automobilismo, Hamilton sempre citou Ayrton Senna como o piloto em que se inspirou na infância. Quando superou as 65 poles do brasileiro, no GP do Canadá, ele ganhou da família Senna um capacete, O inglês ainda se emocionou quando teve a chance de pilotar o MP4/4, um dos melhores carros da história, com o qual o brasileiro venceu seu primeiro campeonato, em 1988.
Fora das pistas, Hamilton costuma citar Muhammad Ali, outro ativista antirracista, como referência. Com várias tatuagens pelo corpo, ele tem uma em homenagem ao pugilista. “Acredito que Muhammad Ali foi o maior ícone do esporte na história. Ele sempre foi alguém que eu admirei. Ele me inspirou muito ao longo da minha vida. E é por isso que fiz a tatuagem.”
Hamilton também tem tatuado um grande crucifixo nas costas e os dizeres “Still I rise” (ainda assim, eu me levanto), que acabou virando seu lema e é um dos detalhes que ele mantém em seus capacetes. Trata-se de uma referência ao poema da escritora norte-americana e ativista pelos direitos civis Maya Angelou.
Além disso, o inglês sempre citou Mandela como uma grande referência. Em 2008, o inglês se encontrou com o líder sul-africano, que morreu em 2013. É curioso notar que Hamilton raramente cita pessoas do próprio país como inspirações. Também chama a atenção o fato de ele não ter sido condecorado com o título de Sir pela monarquia britânica. Desde 2008, quando conquistou o primeiro mundial, Hamilton tem o título de OBE (Ordem do Império Britânico), mas a ausência de condecorações maiores já gerou especulações de que ele tenha rejeitado a nomeação.
Eu vi Ayrton quando criança e, naquela época, não entendia e não apreciava aquilo porque ainda não tinha passado por essa situação. Mas ele teve um impacto tão grande, movia toda uma nação. E não apenas um país, como pessoas ao redor do mundo todo. Ele me tocou profundamente e me levou a fazer aquilo que ele fazia.
Lewis Hamilton, sobre Ayrton Senna
Com base nas suas convicções fora das pistas, o inglês promoveu sua “pequena revolução” dentro da Mercedes —começou por si próprio, vendendo seu jato particular. Convencida por Hamilton, a equipe foi a primeira da F1 a prometer neutralizar o carbono que emite. O inglês também conseguiu uma parceria para que eles não usassem mais garrafas plásticas, cobrou uma investigação interna sobre diversidade (na qual a Mercedes descobriu ter somente 12% de mulheres e 3% de não-brancos em uma organização de mais de 1000 pessoas) e um plano de ação. Por influência do inglês, a Mercedes ainda mudou sua identidade visual do clássico prateado para o preto nos carros e macacões.
Paralelamente, fez o mesmo com a Fórmula 1, o que ajudou a acelerar um projeto de promoção da diversidade na categoria, chamado We Race as One (corremos como um só, em inglês).
Antes de cada corrida, Hamilton também comanda protestos antirracismo. Ele não conseguiu convencer todos os pilotos a se ajoelhar nos atos e, como barreira, viu a FIA (Federação Internacional de Automobilismo) proibir o uso de camisetas no pódio após uma manifestação sua no GP da Toscana.
E como se estivesse vestido de Pantera Negra (com o uniforme preto da Mercedes), que o piloto bateu dois recordes de Schumacher neste ano — número de pódios e vitórias, sendo que o de poles ele já havia batido em 2017 — e está próximo de igualar seus sete títulos. Ainda que, dentro da pista, não exista muito mais o que conquistar. Fora dela, Hamilton está no começo.
Carreira de Hamilton em números
- Seis títulos mundiais
- 92 vitórias
- 97 poles
- 57 vitórias largando da pole
- 161 pódios
- Vitórias em 28 pistas diferentes
- 157 largadas na primeira fila
- 22 corridas lideradas do começo ao fim
- Melhor estreante da história – Nove pódios nas nove primeiras provas, quatro vitórias e seis poles
Vocês também conhecem a camisa que ele vestiu recentemente? Lewis tem usado sua visibilidade para se manifestar em apoio às causas antirracistas, como o movimento Black Lives Matter, e, em 1º de novembro, em apoio ao movimento #EndSARS. O movimento que em português seria algo como “Acabe com a SARS” pede o fim do Esquadrão Especial Antirroubo da Nigéria, que tem uma postura de abordagem policial violenta e injusta, que inclusive assedia a população. É muito importante que a gente leia sobre o que tem acontecido com a população negra em outros países e usar o poder das nossas redes para reverberar causas e notícias que ainda não ganham a repercussão que poderiam e deveriam ganhar.
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