“Colocar em pauta a gordofobia é militância branca. Só agora se fala sobre racismo no movimento”, diz Bielo Pereira


A apresentadora e influenciadora é convidada da série ‘Gordofobia, até quando?’, e destaca a importância da racialização da gordofobia: “Pouco se fala sobre o racismo dentro desse movimento, o que é muito alarmante. A pessoa gorda é patologizada na sociedade, e uma pessoa gorda e negra também sofre com a deslegitimização de seu discurso e intelecto. A pessoa negra é colocada como inferior à pessoa branca, mesmo em um movimento que as duas têm uma causa em comum. É por isso que falta uma representatividade de recorte racial dentro de movimentos anti-gordofóbicos. Mulheres e mulheres trans são ainda mais inferiorizadas diante do padrão da sociedade, e aí que se dá a importância de se racializar a gordofobia para que nossa voz seja ouvida e nossas demandas plenamente atendidas”

*Por Brunna Condini

Salve, salve quem deseja ouvir, trocar, aprender e desconstruir por um mundo melhor. Nós aqui do site, continuamos trilhando esse caminho e com a escuta aberta às manifestações que contribuam para isso. Jogar luz, mais do que nunca, é preciso! Isto dito, anunciamos nossa convidada da matéria de hoje da série ‘Gordofobia, até quando?: a influenciadora e apresentadora Bielo Pereira.

A militância de Bielo veio engrossar o movimento Corpo Livre, incentivando o auto amor e a aceitação do corpo que cada um habita. A gente já vem falando do quanto a gordofobia é algo estrutural, fincado na sociedade de forma nociva e subestimada. Ela está presente no cotidiano e é praticada até por “boa gente”, que a exerce muitas vezes sem perceber, de tanto que foi naturalizada. Segundo o dicionário, gordofobia é: “aversão a pessoas gordas que se efetiva pelo preconceito, intolerância ou pela exclusão delas”. Mas Bielo ressalta que quando falamos de corpos gordos, pretos e trans, doses extras de preconceito são adicionadas.

Pensando nisso, a apresentadora destaca a importância de se colocar em pauta também a racialização da gordofobia e a questão da representatividade. “Essa ainda é uma militância essencialmente branca e somente recentemente que se começou a falar sobre o racismo dentro desse movimento, o que é muito alarmante. A pessoa gorda é patologizada na sociedade, e uma pessoa gorda e negra também sofre com a deslegitimização de seu discurso e intelecto. A pessoa negra é colocada como inferior à pessoa branca, mesmo em um movimento que as duas têm uma causa em comum. É por isso que falta uma representatividade de recorte racial dentro de movimentos anti-gordofóbicos. Mulheres e mulheres trans são ainda mais inferiorizadas diante do padrão da sociedade, e aí que se dá a importância de se racializar a gordofobia, para que nossa voz seja ouvida e nossas demandas plenamente atendidas”, alerta.

“A gordofobia ainda é uma militância essencialmente branca e somente recentemente que se começou a falar sobre o racismo dentro desse movimento, o que é muito alarmante” (Divulgação)

Por que acha que a gordofobia ainda é um preconceito que não é combatido com a mesma adesão da homofobia e do racismo, por exemplo? “Porque existe uma patologização dos nossos corpos, o que leva a uma crença de que somos pessoas gordas e, consequentemente doentes, porque queremos, e não porque a nossa morfologia é assim, e que os nossos corpos estão estabilizados e saudáveis quando gordo. O preconceito mascarado de preocupação com a saúde é um dos que mais machuca e deixa o nosso corpo e mente cada vez mais doentes. Ainda não há um entendimento de que o corpo gordo é um corpo saudável e que merece respeito. Isso precisa mudar”.

Boas novas

Bielo é apresentadora do jornal “Coisa Boa pra Você”, uma parceria entre o Quebrando o Tabu e Razões para Acreditar para o canal do GNT no Youtube, que acabou de levar sua primeira temporada ao ar. Vai continuar?Isso foi um presente para mim, uma parceria e tivemos oito episódios incríveis. Foram transformadores para mim e para quem assistiu! Estamos conversando sobre uma possível segunda temporada”, anuncia. “No momento tenho trabalhado com a minha empresa de consultoria “Diversidades In Company” e me dedicado a falar sobre diversidade em campanhas nas redes sociais que se comprometam em amplificar minha voz”.

“Existe uma patologização dos nossos corpos, o que leva a uma crença de que somos pessoas gordas e, consequentemente, doentes, porque queremos, e não porque a nossa morfologia é assim” (Divulgação)

Com este trabalho, o que viu de bom sendo feito por aí que gostaria de destacar? “Uma das coisas que mais me tocou foi no último episódio, em que tivemos contato com o Refúgio 343, que é uma organização de interiorização de refugiados venezuelanos no Brasil. Essa causa me tocou, e hoje sou embaixadora do Refúgio 343, e foi através da divulgação pelo “Coisa Boa pra Você” que eles conseguiram aumentar o número de acolhedores na causa”.

Ela conheceu o movimento Corpo Livre em uma festa que começou a frequentar na cidade de São Paulo. “Foi quando eu me senti realmente aceita dentro de uma balada e à vontade dentro de um lugar”, mencionou na ocasião. A partir daí, Bielo começou a se tornar uma influenciadora. E divide conosco, quando teve a consciência do preconceito em sua vida: “Esse ponto é um pouco complicado, porque eu sempre soube que a gordofobia existia, mas não deixava que ela me atingisse, pois sempre fui muito imponente nas minhas opiniões e sabia como me colocar na vida de modo que isso não me afetasse, mas foi na primeira vez em que eu me apaixonei de verdade, que eu senti na pele como era ter que ser avaliada pelo outro e ser medida pelo meu tamanho, isso desencadeou um processo no qual pela primeira vez eu comecei a me ver com olhos da sociedade, comecei a limitar o meu corpo e as minhas ações, projetando a visão do outro sobre mim, e isso foi muito dolorido. E eu nunca fui essa pessoa, e comecei a entender tantas outras pessoas que viveram vidas inteiras se sentindo inferiores aos outros porque a sociedade assim determinou, esse foi um período de redescobrimento de propósito muito difícil”.

“Foi na primeira vez em que eu me apaixonei de verdade, que eu senti na pele como era ter que ser avaliada pelo outro e ser medida pelo meu tamanho” (Divulgação)

Ser o que somos é ok

A dor e a delícia de ser quem se é deve ser plenamente vivenciada. E generosamente, Bielo nos esclarece mais a cerca de suas descobertas e identificações pessoais. Quando você se entendeu bigênero? “Depois que passei pelo meu processo de reconhecimento em um corpo gordo em uma sociedade gordofóbica, me encaixei e me entendi no movimento negro e consequentemente na causa LGBTQIAP+, e pude me permitir trazer questões que tangenciavam ao meu gênero. De modo que passei a entender o meu corpo como sendo um corpo que abrigava dois gêneros, e até então eu só conhecia histórias de pessoas trans binárias. Quando comecei a conhecer e entender o que era uma pessoa trans não-binária me encontrei, e vi que meu reconhecimento de gênero acontecia sendo de homem e mulher ao mesmo tempo, o tempo todo, independente da imagem social que eu apresentasse no momento, o que era algo extremamente normal e natural para mim, e eu não preciso que o outro me avalize para que eu seja genuinamente quem eu sou”, esclarece.

“A identidade de gênero é a forma como nos reconhecemos e ela é sempre auto designada, isso significa que sempre em algum momento da vida vamos nos olhar e nos reconhecer dentro de algum gênero, seja ele binário (homem ou mulher) ou não binário (homem e mulher, fluído, agenero, queer…), hoje existem mais de 30 gêneros conhecidos”. E complementa: “Sexo biológico é diferente de gênero e orientação sexual.O primeiro é referente ao órgão sexual do corpo humano. O gênero é a identidade do que é considerado feminino ou masculino, que não é universal e pode variar ao longo do tempo. Já a orientação sexual diz respeito ao tipo de atração, que pode ser por pessoas do mesmo sexo, do sexo oposto, os dois ou nenhum. E é sempre importante lembrar que uma coisa está dissociada da outra, por isso existe um movimento crescente de pessoas que se consideram pansexuais (que se sentem com possibilidade de atração afetiva por qualquer gênero) ou polisexuais (que se sentem atraídas afetivamente por muitos gêneros, mas não todos), como eu”.

“Me entendi bigênero depois que passei pelo meu processo de reconhecimento” (Divulgação)

Você já disse que “até na causa negra e trans sente gordofobia”. Como é isso? “Eu vejo que a causa negra e trans não se encontra numa bolha separada da sociedade, e sim, inserida nela. É preciso pensar numa interseccionalidade dentro dessas causas para que exista o acolhimento de todas as diferenças dentro de cada uma delas”.

Por respeito e acesso

Bielo é papo reto com generosidade para dividir. Ainda bem, porque a ideia aqui é desconstrução e aprendizado. Ela volta a falar da questão gordofóbica, da pressão estética e do patriarcado que estimulam o bullying a tudo que é  diferente, o que também dificulta o acesso de pessoas gordas à muitas coisas. O que é urgente mudar em relação a isso? “É preciso mudar a visão patológica que se tem em relação ao corpo gordo, uma vez que a gordofobia médica e social afastam a pessoa gorda de se cuidar e agravam situações que seriam facilmente evitadas se não fosse criado o medo de procurar ajuda, pois o processo de discriminação pelo qual passamos ao buscar essa ajuda é muito dolorido”.

Além da dor emocional, isso mostra uma dor social, de não caber na estrutura, a negação ao direito de ir e vir. Como quem deseja combater a gordofobia pode contribuir para que isso se transforme? “Pensar no corpo gordo não é ensinado como algo natural em nossa sociedade, e por isso os espaços são pensados como estruturas repelentes a esses corpos. Para que haja transformação, é preciso passar a pensar no corpo gordo com naturalidade e como saudável, com direitos como todos os outros corpos que são vistos como padrão. Dessa forma, a sociedade passará a entender que o corpo gordo é um corpo com direito de ir e vir, e os espaços que deverão se adequar, não o contrário”

“Pensar no corpo gordo não é ensinado como algo natural em nossa sociedade, e por isso os espaços são pensados como estruturas repelentes a esses corpos” (Divulgação)

O que diria para quem afirma que “não é gordofobia. É preocupação com a saúde”?Pediria comprovação da graduação em medicina, a liberação pelo conselho para atuar, e especialização em diagnóstico apenas pela visão e o direito de invadir a vida de uma pessoa que ela não conhece e nem sabe como funciona o histórico médico. Ser gordo não é ser doente! Ser gordo é ser gente, e quem tem que se preocupar com a minha saúde sou eu e o meu médico!”.

O que dá esperança no mundo de hoje? “Ver movimentações antirracistas, anti gordofobia e anti lgbtfóbicas me dão esperança, pois são atitudes e formas de ver essas causas baseadas em ação. Pela primeira vez vejo pessoas fora desse grupo se preocupando em fazer algo para que esses preconceitos não se perpetuem mais e isso é um sinal do início de um mundo melhor”.

Um mundo sem gordofobia é: ”Um mundo justo, igualitário e com respeito”.

“Ser gordo não é ser doente! Ser gordo é ser gente, e quem tem que se preocupar com a minha saúde sou eu e o meu médico!” (Divulgação)