*Por Brunna Condini
Como em um roteiro de filme, uma jovem determinada foi contra todas as estatísticas e o que esperavam dela. Claudia Gadelha realizou o sonho de menina de se tornar uma lutadora. E das melhores. Profissional no MMA de 2008 a 2021, participou de 23 lutas, com 18 vitórias e cinco derrotas. Estreou no UFC em 2014, e pela maior organização de MMA do mundo, chegou a disputar o cinturão do peso-palha. Acostumada a desafios, após uma concussão na cabeça, viu a necessidade do cuidado com seu corpo e se aposentou do octógono. Hoje é a primeira brasileira, mulher e nordestina, a ter um cargo na administração do Ultimate Fighting Championship (UFC), e garante que vai seguir na missão de ajudar outros atletas a realizarem sonhos como o dela.
“Essa transição não está exatamente fácil. Meu corpo ainda acha que sou aquela atleta que acorda e vai treinar, mas não. Treinava o dia todo, estava no topo da minha categoria, no UFC e antes dele. Mas, agora, acordo e venho para o escritório. Estou construindo projetos de incentivo a atletas. Demorei um ano para tomar a decisão de me aposentar das lutas e tenho a certeza que foi o melhor”, conta ao site, direto de Las Vegas, onde mora há cinco anos.
“Mesmo sem lutar, ainda estou por aqui porque pretendo transformar coisas dentro do UFC. Lutei a minha vida inteira. É uma experiência de 20 anos. Parei em dezembro do ano passado, e, em fevereiro, comecei a trabalhar aqui no UFC, na parte administrativa. Fui convidada pela minha experiência. O UFC é uma empresa gigante e todos têm trabalhado muito para dar mais suporte aos atletas, para melhorar o desenvolvimento, principalmente o dos atletas brasileiros”.
A faixa preta em Jiu Jitsu, campeã em diversas categorias, relembra o episódio que a fez ressignificar os rumos profissionais. “O episódio da concussão cerebral foi determinante para eu tomar minha decisão. Isso me fez ficar sentada com a minha lesão e ver o que realmente importava na vida. Tudo aconteceu quando explodiu a pandemia, ninguém podia entrar nos Estados Unidos, meus pais não puderam vir, eu não pude sair, porque não podia voar, por conta da pressão. Então, passei por tudo sozinha. Foi difícil sem ninguém, em um país estrangeiro. Tive a concussão e uma síndrome pós que durou 10 meses. Sentia náuseas, dores de cabeça fortes, incômodos com luz, barulho, e todos os sintomas emocionais durante esses meses todos. Pensei: lutei a minha vida toda e estou aqui agora, sozinha. O que realmente importa? Comecei a buscar estar mais com a família, com os amigos, a investir mais nos meus relacionamentos”.
Desbravando
A atleta saiu da pequena cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, apenas com o quimono e uma mochila nas costas para realizar o sonho de ser lutadora de artes marciais mistas e se tornou campeã de MMA. “Comecei a treinar quando as mulheres ainda não estavam no UFC. Fazia muitas coisas erradas no começo da minha carreira. Achava que treinar para luta era sair na ‘porrada’ todo dia na academia (risos). Não existia uma estrutura de treino para nós, mulheres. E era assim que os homens estavam treinando. Fui jogada no meio de um monte de homens. Me virei e fui evoluindo no esporte. Fui uma das pioneiras. Uma das primeiras mulheres a se arriscar a treinar MMA. As meninas hoje têm uma estrutura muito melhor, mas alguém precisou passar por tudo para entender como era”, lembra.
“Nasci no interior do Rio Grande do Norte, em uma família sem oportunidades nenhuma e saí no mundo em busca dessas oportunidades. Trabalhei duro por todas as minhas conquistas. Se eu morrer amanhã, levo da vida a ideia concreta que não existe mesmo sucesso sem trabalho duro. Quem decide praticar um esporte de impacto e estar no topo, vai sim, se lesionar, e passar dificuldades”. E acrescenta: “Falando de abuso físico e psicológico, acho que qualquer coisa que você decide fazer na vida para ser o melhor, vai exigir muito do seu corpo e mente. Acredito que você tem que se tornar resiliente para passar por todos os desafios que a vida vai te dar. Já lesionei meu corpo todo, mas esse foi o esporte que me fez crescer como pessoa, ser humano”.
Machismo e preconceito
Claudia comenta também sobre a existência de padrões machistas dentro do universo das lutas. “No MMA, por essa questão da gente se provar dentro do octógono, é o esporte mais parelho. O homem e a mulher no UFC entram ganhando a mesma coisa. Não tem essa de homem ganhando mais que mulher, sendo tratado melhor que mulher dentro do MMA”, garante.
“As mulheres vão lá e fazem lutas incríveis, mostram potencial. Mas, no começo da minha trajetória, como não tinham meninas lutando, sofri preconceito. Os caras ficavam perguntando o que estava fazendo treinando, mas eu insistia, voltava”.
E também pontua preconceitos que sofreu rumo a realização do sonho de se tornar uma lutadora. “Foi difícil também porque cresci no Nordeste. E o Rio Grande do Norte é um dos estados mais preconceituosos do Brasil. Quando volto lá, as pessoas me olham e não entendem, porque sou uma mulher mais atlética. Ficam olhando tipo: ‘por que essa menina é tão forte?’. Muita gente não entende ainda. Então, passei por muitas situações de preconceito e vivi o machismo dentro e fora da luta”, conta.
Menina de ouro
Claudia relembra o seu nada fácil início. “Treinava Jiu-Jitsu escondido dos meus pais. Com 15 anos fui morar na casa de um tio, em Natal, mas fiquei só dois meses lá, porque depois me mudei para a academia. Sério. Para ficar, limpava o lugar. Fiquei dos 15 aos 18 morando na academia. Treinava intensamente. Era a vontade de vencer, sabe?. Até que um dia vi que a capital da luta no Brasil era o Rio de Janeiro, e fui morar lá com 18 anos. Morei nas favelas da cidade, não tinha condições de bancar meus treinos e nem a minha vida. Fui me virando. Conseguia patrocínios de roupas de luta, ficava um pouco para mim e vendia o resto. Comercializava suplementos, ficava na missão desse empreendedorismo da sobrevivência. Fiquei dos 18 aos 28 anos no Rio, treinando na academia com José Aldo, Renan Barão, caras que eram campeões. Saí do Rio para os Estados Unidos”.
A potiguar diz que a família é seu alicerce, mas não esquece que precisou ter paciência na relação com os pais. “Eles só começaram a me apoiar quando as coisas deram certo. Não culpo a minha família por ter me julgado, acredito que era pela falta do saber, é cultural. Achavam que uma mulher não deveria praticar um esporte tão masculino. Antes mesmo da luta, eu já gostava de praticar esportes e minha família não achava que era coisa de mulher’, recorda.
“Então, passei por essa barreira em casa primeiro. Saí de casa sendo julgada. Isso foi uma das motivações para provar que seria diferente. Quando entrei no UFC minha mãe nem sabia do que se tratava. Lembro que as pessoas ligavam para ela parabenizando, porque eu estava na maior organização de lutas do mundo, uma super conquista. E, um dia, ela me ligou chorando, dizendo que não sabia o que era, mas estava orgulhosa de mim. Pela questão cultural, do que é padrão, minha mãe queria que eu fosse feliz, bem-sucedida, mas para ela isso seria através de uma faculdade, de cuidar dos filhos e tal. Foi maravilhoso poder mostrar que existem várias outras formas de uma pessoa se realizar”.
“Hoje ela entende. Um dos meus maiores objetivos era pegar na mão da minha mãe e mostrar as possibilidades da diversidade humana. Tem gente de todo tipo, com todo tipo de orientação. Consegui também levar meus pais para viajar, ver um pouquinho do mundo. Mostrando pra eles que existe uma pluralidade e que não podemos julgar as pessoas. Dona Izinha e seu Gadelha, já viajaram comigo para Argentina, Nova York, Novo México, Las Vegas, Portugal, Madri, e muito dentro do Brasil. E ainda vamos conhecer muitos lugares”. E divide: “Outro objetivo era dar uma vida melhor para os meus pais. A primeira grana alta que recebi comprei uma casa para eles. Antes até de comprar a minha. Agora meus pais têm uma casa em Natal e uma em Mossoró, de onde vim. Eles são tudo pra mim e vou cuidar deles para o resto da vida. Meu maior orgulho é ter conseguido me tornar bem-sucedida para dar uma vida melhor pra eles”.
Gadelha revela que está amando, feliz como nunca e cheia de planos. “Acho que estou muito na fase de querer construir a minha família. Namoro a Gabriela, tem seis meses, é uma médica do esporte, mora em São Paulo. Estamos nos relacionando à distância e tem dado certo. É a primeira vez que consigo me conectar com alguém que tem os mesmos propósitos de vida que eu, valores. Ela teve uma vida diferente em relação a oportunidades, mas é pé no chão. Nos apoiamos. Em breve acho que ela vem pra cá, e no futuro voltaremos para o Brasil”, anuncia.
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