Caso da atriz agredida por diplomata: ‘Ando com botão do pânico e tocou 10 vezes. Entrei com nova medida protetiva’


Vítima de violência doméstica, atriz Cristiane Machado virou ativista da causa. Mesmo com crise de ansiedade, depressão e sem residência fixa, ela tem obtido avanços da lei para proteção das mulheres que passam pelo mesmo drama. “Tive experiência de quase morrer e uma segunda chance me foi dada. Ele usou as redes para me difamar”, diz. A Justiça determinou que ele apagasse tais postagens e o proibiu de  fazer outras sem a autorização dela, com multa de R$ 500, por post. “Fui a primeira a ter direito a esta medida protetiva. Isto é simbólico”, frisa, acrescentando que ela irá encorajar outras mulheres a serem firmes para que denunciem, sem medo, o agressor.

* Por Carlos Lima Costa

Uma recente vitória obtida por Cristiane Machado na Justiça se tornou emblemática, pois irá beneficiar inúmeras mulheres também vítimas de violência doméstica. Em novembro de 2018, ela denunciou o então marido, o ex-diplomata Sérgio Schiller Thompson-Flores, comprovando através de vídeos que era agredida por ele, posteriormente condenado a três anos por lesão corporal e cárcere privado, em setembro de 2019. “Mesmo assim, continuei vivendo a violência psicológica e moral, que são graves e podem destruir a vida de alguém. Ele pegou vídeos de intimidades nossas e disseminou entre amigos. É muito comum o homem condenado fazer este tipo de vingança. A mulher tem vergonha. Então, isto é uma forma de nos intimidar. Usou as redes para me difamar. Não tenho vergonha por nada que um homem e uma mulher fazem na intimidade, mas vê-lo comentando, debochando e tentando me diminuir de forma chula com outros homens também condenados pela lei Maria da Penha, foi demais. Ele criou plataformas. Tive acesso a essas coisas”, ressalta ela, que recorreu e venceu mais uma vez.

A Justiça determinou que ele apagasse tais postagens e o proibiu de fazer outras sem a autorização dela, com multa de R$ 500, por post. “Fui a primeira a ter direito a esta medida protetiva. Isto é simbólico”, frisa, acrescentando que ela irá encorajar outras mulheres a serem firmes para que denunciem, sem medo, o agressor. Por opção pessoal, nesta entrevista prefere se referir ao ex como ‘ele’ do que dizer seu nome.

Cristiane é ativista contra a violência doméstica (Foto: Filipe Lisboa)

Cristiane é ativista contra a violência doméstica (Foto: Filipe Lisboa)

Cristiane ressalta que nunca fez nada que a desabone. “Se existe violência de qualquer lado, seja do homem ou da mulher, é sinal de que não tem mais nada a ser dito entre o casal. Tem que partir para outra. É comum na violência doméstica esse tipo de vingança, onde um tenta denegrir a imagem do outro. Sempre tive carreira sóbria nesse sentido. Ele sabe que atacando a minha imagem, está atacando a minha sobrevivência. Então, luto pelo que é de direito. Tudo que eu fazia ele ia lá e tentava me denegrir. Tem sido difícil. Mas cada vez mais vejo que tenho uma missão. Tive experiência de quase morrer e uma segunda chance me foi dada. Esperança e coragem andam juntas. Vejo um futuro mais bonito e feliz. Luto para transformar a minha realidade e a das outras mulheres. Quantas vidas eu consegui tocar. Isso pra mim é a coisa mais valiosa. E a lei evoluiu muito desde que denunciei”, afirma em longo e emocionado desabafo.

Cristiane prossegue seu relato. “Me deram o botão do pânico. É um pager. Fui até ao Uruguai, à convite do governo, conhecer esta tecnologia. Este aparelho é ligado a tornozeleira eletrônica que ele usa. Caso se aproxime de onde eu estou, o aparelho apita e vibra. Ele tinha que manter uma distância de 200 metros. Mas já tocou dez vezes. Então, acabou de sair uma nova medida protetiva aumentando essa distância para 300 metros. Quando toca, primeiro fazem contato com o agressor, depois comigo para me manter em local seguro. Uma vez, ele chegou a 50 metros e permaneceu por pouco mais de dez minutos na porta de onde eu faço terapia”, revela a atriz.

“Se fortuitamente, eu estiver em um shopping, por exemplo, e ele cruzar comigo, ele tem que se retirar do recinto”, completa. De segunda a sexta-feira, ele tem horário determinado para permanecer na rua. Aos sábados, domingos e feriados, tem que ficar recolhido em casa. Ela lembra que Sérgio passou sete meses preso preventivamente. Aí foi julgado e condenado, mas para sair de Bangu 8 fez um acordo judicial e passou a usar a tornozeleira. “Uma vez, fui a uma delegacia prestar depoimento e ele apareceu lá e não podia. É uma pessoa que tem certeza da impunidade, um homem que não respeita a Justiça”, aponta. “Ele ainda não começou a cumprir pena. Está com tornozeleira eletrônica, porque recorreu. Também recorri, mas para que aumentem a pena dele”, explica.

A atriz planeja lançar livro, em 2021, com relatos da violência que sofreu do ex-marido (Foto: Filipe Lisboa)

A atriz planeja lançar livro, em 2021, com relatos da violência que sofreu do ex-marido (Foto: Filipe Lisboa)

No momento, Cristiane está fortalecida. “Me senti dona da minha história de que precisava transformar a realidade. Com tudo que aconteceu com o botão do pânico que eu reportei as autoridades, consegui avanços para que outras mulheres também recebam este pager e de forma melhorada, sabe, sou vitoriosa, sou sobrevivente e virei ativista para que outras não passem pelo que eu passei. Uma experiência traumática que eu estou tentando transformar em algo bom e consegui grandes avanços: o botão do pânico e a medida protetiva da violência psicológica. O vazamento de vídeos íntimos agora é punido criminalmente. Venho lutando para que a fiscalização ocorra. Minha parte como mulher e cidadã é reportar tudo que acontece.”

Cristiane relembra o início dessa história. Eles se conheceram em março de 2017, começaram a ficar muito grudados e não demorou para que os dois fossem morar juntos. “Um ano após, em março de 2018, fui agredida pela primeira vez, ele me esganou com as mãos e ensanguentada, fui à delegacia denunciá-lo e ele lá com uma tropa de advogados. Foi preso em flagrante a primeira vez. Mas foi solto 20 minutos depois pagando fiança de 1.500 reais”, relembra. O casamento estava marcado para 28 de abril. “Ele me procurou várias vezes, dizia que não ía viver sem mim. Os agressores trabalham muito com a culpa. Duas semanas depois, aceitei conversar em lugar público e na presença dos filhos dele. Ele dizia que ía ser uma renovação de votos”, conta. Como muitas mulheres fazem , ela acabou aceitando retomar a relação. “Ele virou novamente o príncipe encantado. Quando voltamos da lua-de-mel, gradativamente, aquele homem tranquilo começou a falar palavras ríspidas, não queria que eu trabalhasse na minha profissão, que não era mulher que se dava ao respeito, me diminuía. Foi meu primeiro casamento e eu tinha a ilusão de que seria único. Mas chegou um momento, em 13 de agosto, que me empurrou novamente. Minha mãe estava lá, eu queria sair de casa. Com uma faca no pescoço, ele falou que se eu o entregasse a polícia ele iria me matar e aos meus pais também”, frisa sobre seu drama.

Os pais de Cristiane necessitam de ajuda. Julio, 74 anos, é deficiente visual, e Edith, 65 anos, operou quatro vezes a coluna e anda com a ajuda de um andador. “Me vi refém daquela situação. Não bastava salvar a minha vida. Tinha os dois. Não tinha muita saída. Mesmo que eu fugisse para outro país, meus pais estariam aqui. Entrei em pânico quando ele ameaçou a minha vida e a dos meus pais”, assegura. Foi aí que teve a ideia de instalar as câmeras com as quais registrou as agressões dele que ajudaram a condená-lo. “Na minha cabeça, era a única chance que eu tinha. Não bastava denunciar, tinha que ter provas, principalmente pelo poderio financeiro dele”, pontua.

Ela tem pesadelos, depressão, anorexia e transtorno de ansiedade (Foto: Filipe Lisboa)

Ela tem pesadelos, depressão, anorexia e transtorno de ansiedade (Foto: Filipe Lisboa)

Cristiane enfrenta dificuldades até por que depois da denúncia não conseguiu voltar a trabalhar como atriz. Até, então, na televisão, por exemplo, ela havia atuado em novelas como Duas Caras (2008), Negócio da China (2009), Malhação (2012) e Amor A Vida (2013), todas na Globo, e o seriado Um Contra Todos, da Fox, em 2017. “Temos leis brandas, então, a vingança é moralmente denegrir a imagem da mulher. Viemos de famílias economicamente simples. Então, passo por momento complicado financeiramente e na carreira. Isso afeta a minha sobrevivência, vivo com a ajuda dos meus pais e de amigos. Isto também está no livro que estou escrevendo sobre esta história. Não é só a violência física e psicológica, vai atingindo direto no sustento”, pondera.

E conta que tem ainda uma ajuda de custo decretada pela Justiça para bancar tratamento terapêutico e medicamentos. “Por isso, reafirmo que esta decisão é emblemática, para evitar essa constante perseguição, porque é a tentativa para que eu não consiga me recolocar no trabalho. Ele ligou para várias pessoas para me denegrir. Quero, mais do que nunca, ter minha vida de volta que foi roubada. Tinha uma vida profissional e financeira digna. Depois que casamos ele me fez parar, cheguei a negar participar de uma novela”, suspira. E completa: “Fiz campanha para o governo do Estado da lei Maria da Penha. Aí ele fez grupo de WhatsApp com outros agressores enquadrados nessa lei. Tudo que faço, que sai em revista, ele sai me difamando. Não fiz mais nada justamente por isso, ele procura as pessoas que trabalharam comigo, essa perseguição inibe e eu quero ter a minha independência como qualquer pessoa”, garante.

O livro deve ser lançado no início de 2021. “Virei uma ativista presente e conto essa história no livro. Mas quantas mulheres morrem sem ter voz?”, ressalta. Cristiane conversou com várias que passaram pelo mesmo trauma e colocou alguns relatos na obra. “São enfrentamentos parecidos. E falo sobre como essas mulheres podem voltar a ter uma vida normal. Muitas me procuraram pedindo ajuda. Sempre me perguntam de onde vem essa coragem. Nada mais lindo do que viver. Recebi essa missão. Mesmo quando voltar a carreira normal, o ativismo estará sempre comigo. Eu renasci e me sinto orgulhosa de abrir espaço para que outras mulheres consigam ter vida mais digna”, conclui.

Tem pesadelos, depressão. “Foi muito difícil, não posso dizer que a vida volta ao normal, porque vivo violência continuada. Instalei câmeras nas casas dos meus pais, que são separados, não tenho residência fixa, tenho pesadelos, transtorno de ansiedade, depressão, anorexia… não consigo ter paz, por isso todas as decisões da justiça são importantes”, reafirma.

Cristiane deseja voltar a atuar (Foto: Filipe Lisboa)

Cristiane deseja voltar a atuar (Foto: Filipe Lisboa)

Aos poucos, Cristiane está tentando reconstruir a vida até mesmo na parte afetiva. “O ativismo me ajuda nesse sentido. Sou uma sobrevivente. Eu poderia ser mais uma na estatística do feminicídio. Sou vitoriosa. Aprendi na terapia que falar é a melhor busca para a cura. Em geral, toda mulher tem vergonha de falar sobre a violência doméstica. Sou vítima da violência, passei por inquietação, mas sou dona da minha história. Acredito muito no amor. Esse trauma não ficou, pelo contrário. Só que agora eu sou mais atenta e criteriosa com qualquer pessoa que eu vá me relacionar. Mas ainda vivo uma turbulência, não tive minha vida de volta. Conheci uma pessoa, estamos nos conhecendo, posso viver uma vida feliz. Na realidade é alguém que eu já conhecia, que sei da história. Foi um reencontro e começamos tem dois meses.”

Por tudo que passou, não teve medo de ser tocada por um homem? “Isso não aconteceu comigo. Não tive trauma de me relacionar. Trabalhei na terapia, tive um luto sobre isso. Comecei a descobrir a autoestima, a primeira coisa que o homem agressor destrói. Tive que ter um encontro comigo mesma para estar preparada para conhecer outra pessoa e está me fazendo bem. Estava me permitindo ficar só, porque não é vida normal ainda. Meu agressor é muito presente para ter vida em paz.”

Antes da pandemia, ela vinha participando de palestras na OAB, no Ministério Público, em empresas privadas. “Como mulher ativista, conversei com autoridades, fiz campanha de patrulha pela lei Maria da Penha. E agora tem um aplicativo gratuito, o Linha Direta. Foi criado baseado no meu caso. Ele dá a geolocalização da vítima e pessoas cadastradas podem apertar a sirene no aplicativo para a polícia ser acionada”, finaliza.