*por Vítor Antunes
Um show divônico à altura de uma diva. Paciente renal crônica, Silvetty Montilla – ícone drag da noite paulistana, que marcou a sua imagem no Brasil participando de programas de TV – passa por um momento delicado de saúde. Recentemente, descobriu um problema cardíaco, fez um caterismo e precisou ser submetida a uma angioplastia, em razão do entupimento de artérias, o que a impediu totalmente de seguir a agenda de trabalhos. Um quadro de anemia aguda fez com que a cirurgia fosse remarcada e só há 15 dias pôde ser realizada. Devido ao diabetes, há dois anos Silvetty faz hemodiálise e têm problemas renais seríssimos. Diante do que tem enfrentado com a pausa nos shows, Nany People e mais de 15 artistas, dentre os quais Vanessa Jackson e Ricky Vallen, se unem numa corrente do bem para ajudá-la. No dia 20, na boate Blue Space, em São Paulo, haverá um show beneficente com renda revertida para Silvetty.
A mobilização em prol de Silvetty foi tão grande que Nany People topou na hora participar como apresentadora ainda que ela não se apresentasse mais em boates há pelo menos 17 anos: “Quando me ligaram falando se eu poderia apresentar o show, aceitei com o maior prazer, justamente para ajudar minha amiga, tanto que vou estar em cartaz no teatro no mesmo dia. Saio de lá e vou para a apresentação”.
Eu estou feliz, eu quero antemão agradecer muito à Nany. Eu fico ainda mais feliz porque há amigos meus que resolveram fazer esse show para me ajudar. Não tenho vergonha nenhuma, sou muito grata. As pessoas não sabem que se eu não trabalhar, eu não ganho dinheiro. A gente não tem registro, a gente não tem carteira assinada. Eu estou com condomínio atrasado e não posso perder meu plano de saúde. Ele é tudo na minha vida – Silvetty Montilla
Recuperando-se do procedimento cirúrgico, Silvetty torce para poder conferir as performances das amigas. “Ainda não estou 100%, mas me recuperando e gostaria muito de ir ao show-homenagem. A única questão ainda é que fico um pouco cansada, especialmente para subir escadas, e faço hemodiálise três vezes por semana. A anemia tem me deixado cansada, às vezes. Então, eu estou, aos poucos, me recuperando na minha casa. Tenho uma família maravilhosa que me ama, minhas irmãs que cuidam de mim muito bem”, comenta.
AMIGAS PARA SEMPRE
Durante nossa entrevista, pedimos que Nany e Silvetty contassem como nasceu a amizade entre elas. Naturalmente, ambas compartilharam suas versões, mas Nany resumiu em uma frase definitiva e fazendo referência a filme: “Tem um filme da Bette Midler que chama ‘Amigas para Sempre‘. Nossa amizade é tal qual esse título”. A história de Nany People e Silvetty Montilla é longa, e a dupla só existe porque resiste. São quase 40 anos de amizade. Antes mesmo de Nany se apresentar na noite sozinha, foi Silvetty a primeira pessoa a levá-la para o palco, ainda em 1987.
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Nany People: Amor e gratidão (Foto: Divulgação)
Nany relembra: “Eu lembro da Silvetty na porta da Corinto, boate que havia no Ibirapuera, numa época em que eu ainda não frequentava casas LGBT. A Silvetty já frequentava o universo gay, antenada com o movimento da noite paulistana. Eu não conhecia ainda. Ela sempre foi muito querida, muito divertida, muito prestativa. Quando eu entrei, ela meio que me amadrinhou, me adotou, estando sempre comigo. Ela me apresentou ao mercado, me abriu locais de trabalho e fez isso com muita gente”.
Agora, em razão da parceria de uma vida inteira, Nany e outros artistas se mobilizam em uma ação em favor de Silvetty, que, inclusive, não sabia até pouco tempo da iniciativa. Ela louvou a presença de Nany no evento, já que a atriz não se apresenta em boates desde 2008. “Com a presença dela, a coisa vai ficar muito mais linda. Eu fiquei muito feliz, porque eu sei da questão do afastamento de Nany das boates. Isso, para mim, foi uma felicidade enorme”.
No pós-pandemia, quando tudo ainda estava recomeçando, a primeira saída de casa de Nany foi para visitar a amiga Silvetty. “Quando a gente começou a sair de novo, a Silvetty fez um chá da tarde na casa dela e eu lembro de ter me emocionado muito com o gesto. Ela sempre foi rodeada de muita gente, mas também sempre cultivou muitos amigos. É uma pessoa que agrega, que reúne, que faz”. A fala de Nany se alinha ao posicionamento de Silvetty. No auge da epidemia de HIV, nos anos 80, ela organizou o evento “Alerta CaridAids“, em um momento em que as casas LGBT não abriram. Ela somou esforços com empresas, DJs tocaram de graça pela causa, e houve desfiles de moda com grandes estilistas de São Paulo, além de shows com Adriane Galisteu, Alexandre Pires e Simonny, por exemplo.
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Silvetty Montilla tem uma amizade de quase 40 anos com Nany People (Foto: Divulgação)
Depois de tantos anos, Nany People e Silvetty percebem as mudanças que o universo LGBT atravessou. “Houve sim, muitas mudanças. A gente é de um tempo em que a pessoa saía para fazer show com a cara maquiada, bonezinho na cabeça e roupa masculina. Eu não. Eu já ia montada, mesmo no ônibus. Sabemos que o Brasil é o país que mais mata transexuais, mas hoje em dia a gente tem notificação disso. Antes, nem havia notícias. Não era dado a pessoas como os gays ou trans o direito de existir. Para mim, uma trans ir comprar um pão é um ato político”, pontua Nany.
Silvetty complementa, contextualizando: “Naquela época era bem diferente. A gente fazia de sete a nove horas de show. Hoje em dia, a gente conta nos dedos as casas. Viver de show é muito complicado. Mas as jovens artistas são batalhadoras, correm atrás, vão à luta. Antigamente, você podia falar que dava para sobreviver de shows na noite. Hoje, não”.
Tem pessoas que passam na sua vida. tem pessoas que chegam e ficam. Eu já estou com 60 anos. Não admito que meu álbum de figurinhas de amigos fique incompleto. Eu sou uma pessoa que eu contabilizo crédito e não contabilizo débito. Vejo muitas relações interpessoais que são calcadas em cima de post do Instagram. A gente não tinha Instagram nessa época. A gente é de verdade – Nany People
Diferentemente de outras pessoas da geração atual, Silvetty não quis fazer a transição de gênero. Ela é apenas drag e entende Silvetty como uma personagem de Sílvio Cássio Bernardo. Inclusive, costuma se referir a si no masculino e mistura os gêneros em suas falas. “Respeito quem optou pela transição de gênero, mas eu quero que me respeitem. Nunca tive vontade de passar pela transição. Sílvio é a pessoa. Silvetty, a artista”.
Já ao fim da entrevista para o site Heloisa Tolipan, Nany cita Judy Garland (1922-1969) que disse certa vez: “Feliz é aquele artista que cai nas graças da comunidade gay. Esse artista certamente se tornará imortal”. E complementa: “Hoje em dia, como muitos vivem em um sistema muito acelerado de informação, de degustação e de indisposição, descartam muito fácil as coisas. Eu acho que existe essa velocidade da informação e as pessoas, de certa forma, não digerem muito o que recebem. Mas quando a pessoa LGBT se linka numa coisa, ela é fiel. Quando uma mulher diz que tem uma amizade com um gay, ela pode contar com esse gay para tudo. Então, eu acho que é o mesmo também se dá quando um gay cai nas graças de uma pessoa. Razão pela qual somos gratas ao nosso público”.
Uma das muitas histórias publicáveis – e divertidíssimas – das duas, conversadas nesta entrevista, diz respeito a um show em que, durante uma piada, Silvetty falou sobre jogarem coisas valiosas no palco. “Jogaram uma barra de ouro para ela. Um bolo de bichas se jogou no palco pegar a barra de ouro e lá se foram as perucas”, relembram, às gargalhadas. Sem perceberem que, além daquele bem material, o mais valioso estava na intimidade de uma amizade perene. A beleza de quem vê a si no outro e ainda se reconhece – na foto passada ou no espelho de agora. A arte as apontou uma resposta, sem que elas soubessem: é preciso simplicidade para fazer a amizade florescer. Metade delas é amor. A outra parte, também.
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