*Por Brunna Condini
“Deus é mesmo mulher. Deus é negra.
Ouçam a sua palavra que nos invade.
Salve a Mulher do Fim do Mundo.
Salve Elza Deusa Soares”
O trecho da sinopse feita por Fabio Fabato para o enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel, que homenageia Elza Soares este ano, nos invade de cara com a potência da cantora traduzida nas palavras.
Eleita pela rádio BBC de Londres, a cantora do milênio, Elza da Conceição Soares, que completa 90 anos em junho de 2020, será eternizada neste Carnaval pela verde e branca da Zona Oeste do Rio de Janeiro, sua escola de coração e raiz, já que Elza nasceu na favela carioca de Moça Bonita, atual Vila Vintém. E mesmo com sua intensa trajetória, ela jura, que ser enredo da Mocidade é umas das maiores emoções que já sentiu. “Estou vivendo um sonho, e muito emocionada com isso”, diz a diva, e garante que o carnavalesco Jack Vasconcellos conseguiu traduzir sua vida para o desfile do dia 24. “Nasci em Padre Miguel. Tenho amor por essa escola, paixão. Vou estar na avenida muito feliz, se Deus quiser. Olha, sou suspeita, é muita emoção o que estou passando, mas se pintar um campeonato neste Carnaval, é tudo o que quero, vamos com tudo”, vibra.
Com o enredo “Elza Deusa Soares”, que tem entre seus sete compositores, a cantora Sandra de Sá, a agremiação celebra a vida e a obra de uma das mais importantes cantoras do país, que passou por muitas adversidades ao longo da vida, mas sempre lidou com uma força (impressionante!) com os acontecimentos, entre eles, a perda de quatro filhos e a fome. Você tem essa potência e energia, o que te mantém assim, há tantos anos? “Cuido de tudo em mim. Da cabeça aos pés. Como coisas boas, mas as vezes como pouco, quase nada. E sigo a vida assim”.
E no clima do desfile, quisemos saber do ícone: o que é ser uma deusa? “Não sei, porque nunca me senti assim, deusa. O que é ser deusa, hein? ”, responde, aos risos. Deusa? Você, Elza. Uma mulher infinita em resistência, vanguardista, corajosa e empoderada.
Há poucos dias do desfile, Elza visitou o barracão da escola na Cidade do Samba, no Centro do Rio, e conheceu de perto o trabalho que a agremiação vai apresentar na Marquês de Sapucaí. Que filme foi esse que passou na sua cabeça, quando viu tudo pronto? “Que pergunta, hein? Foi demais. Passou um filme da minha vida de criança principalmente, quando morava na Água Santa. Foi muito forte”, recorda Elza, que teve uma infância de extrema pobreza.
Entre os carros alegóricos, ela destaca o que fala da sua fé e religiosidade, em que vem junto com seu afilhado musical Flávio Renegado, e o do “Planeta Fome”, lembrando as dificuldades passadas, e também uma referência ao seu último trabalho. “Me emocionou ver os pratos vazios, tinha também o meu barracão representado, lembrei muito da minha mãe, do meu pai, da minha vida ali”, diz Elza, que é filha de um operário e de uma lavadeira. O carro alegórico também é uma alusão ao período em que ela era ainda uma aspirante a cantora, e participou do programa Calouros em Desfile, na rádio Tupi, apresentado por Ary Barroso. Na ocasião, ao vê-la franzina, vestida de forma simples e improvisada, Ary perguntou de que planeta ela tinha vindo. Elza não pestanejou: “Do mesmo que o senhor, do planeta fome”.
Você é precursora de caminhos para muitas mulheres. A escola vai exaltar, além da sua música, suas superações, suas lutas em defesa da mulher, contra o racismo, o machismo, a censura, e todo tipo de preconceito. Quais são as lutas que continuam? “Infelizmente ainda é preciso lutar contra o racismo, homofobia e a violência contra as mulheres. Não tenho medo da verdade, e quem fala sobre a verdade, não merece castigo. Não me intimido e nem tenho medo de continuar lutando”, diz Elza. “Na minha trajetória me orgulho da minha força de vontade, tenho essa força dentro de mim. E não tenho arrependimentos, se tivesse que fazer tudo outra vez, faria”.
Se pudesse enviar um recado, através de uma letra de música, para uma jovem mulher, passando por dificuldades similares as que passou, qual seria? “Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”, canta Elza, sem titubear, e com experiência nas reviravoltas da vida.
Você é uma apoiadora e difusora da cultura nacional mundo afora. Como vê o cenário cultural no Brasil hoje? “Escuta aí, minha gente, queremos e precisamos de cultura”, convoca. “Me deixa muito triste ver esse Brasil como está, na agonia. Mas quando olho para o povo, me alegro. Um povo que aguenta tudo isso e ainda é capaz de lutar por dias melhores”.
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