Contundente. Esse é o único adjetivo possível para definir esta edição do ‘Back 2 Black’, festival de música negra que que acabou ontem à noite na Cidade das Artes. Desta vez, evento saiu da Estação da Leopoldina, no Rio, onde convivia com carcaças de trens abandonados em um prédio secular e mal cuidado, mas maravilhoso, e rumou em direção à exuberante Barra da Tijuca, aterrissando de para-quedas na moderníssima Cidade das Artes. O festival perdeu em cenografia – já que a Leopoldina, devidamente iluminada à noite, se transforma em cenário deslumbrante – mas ganhou a suntuosidade futurista do espaço construído especialmente para sediar grandes espetáculos. Houve um pouco de tudo nesta edição, desde um tributo à mitológica Mirian Makeba a baile de charme, passando pelo show de Femi Kuti, filho do lendário músico africano Fela Kuti e a presença marcante de Gilberto Gil. É pouco ou quer mais?
Foto: divulgação
Algumas cenas vão ficar para a história, assim como o showzaço de Al Jarreau neste sábado no Sesc Amplifica, o evento de jazz que movimentou o Rio em paralelo ao Back 2 Black. O negro de vozeirão forte, mas adocicado, foi a grande estrela do último dia do evento. Jarreau, que tem no repertório o mega ultra hit ‘Your song’, que também é sucesso atemporal nas vozes de Elton John e Billie Paul, repetiu, ao seu modo, o magnetismo que já havia demonstrado em outras passagens pelo Brasil, como no primeiro Rock in Rio, em 1985, quando dividiu com Ivan Lins, James Taylor e George Benson a programação dos dias próprios para fãs mais calminhos. Mais uma vez, ele provou porque é excelente pedida para quem quer ver um belo espetáculo sem precisar se esquentar muito. Brilhante! Abaixo, confira a galeria de fotos deste mito.
Fotos: Vinícius Pereira
Diante da efervescência desses eventos, é cabível comparar seus momentos mais significativos a um período histórico para a música negra mundial, mas ainda pouco estudado: o ano de 1988, data emblemática também para o Rio de Janeiro e o Brasil, período simultâneo tanto de resgate quanto de descoberta da negritude pela nova geração de modernos da época. Assim como foi a virada dos anos 1960/1970, quando o suíngue black deixou os guetos rumo ao mainstream mais uma vez (mas, agora, tendo a contra-cultura como poderosa aliada e a mitológica gravadora Motown como veículo), oitenta e oito foi o ano em que quase todo mundo botou trancinha afro nos cabelos. No sentido figurado, é claro, embora, nessa época, começassem a pipocar curiosas figuras na cena pop, com penteados rastafári ou trancinhas étnicas, como os cantores Tracy Chapman e Terence Trent D’Arby (lá fora) ou Toni Garrido (aqui no Brasil). Gente que serviu de referência para quem surgiu muito mais tarde, tipo Negra Li ou Paula Lima.
Em 1988, há muito a Tropicália já havia se tornado história e a MPB começava dar indícios de banalização, enquanto o Rock Brasil, que havia conquistado os brasileiros com grupos pioneiros como Blitz, Kid Abelha, Ritchie, Barão Vermelho e Paralamas do Sucesso, estava diluído, com muito menos força do que em seus primeiros anos, à exceção dos Titãs e Legião Urbana. Cazuza havia enveredado por outro caminho, mais amplo, depois que abandonou o Barão. E, lógico, tinha a questão da AIDS. Nessa época ele ainda não assumia, mas todo mundo sabia. A juventude brazuca, portanto, estava entediada. Ela, que havia começado a década no balanço da disco, passado pelo new wave (primeiro, ao som de The Police e Duran Duran, depois, no agito das pérolas dos B-52’s, Gogo’s e Culture Club) e já havia descoberto o beabá da eletrônica com Kraftwerk e Devo (ou a cafonice sintética de Giorgio Moroder), carecia de novidades. Afinal, a garotada da época já não venerava mais tanto assim nem os ídolos que haviam despontado nas lonas do Circo Voador ou no Rock in Rio 1, em 1985, muito menos aquele tipo de som inglês, herdeiro do punk e do wave, que se tornou conhecido como dark (ou rock inglês eighties), de bandas como The Cure, The Smiths, Siouxsie and The Banshees ou The Cramps.
À parte da cena gay, que florescia abruptamente sob os acordes de grupos purpurinados como Pet Shop Boys, Depeche Mode, de Jimmy Sommerville e seus Communards, ou de babas tipo Rick Astley e Erasure, digeríveis apenas pela galera descamisada que estava aprendendo a tomar bomba, malhar e rodopiar a regatinha suada na mão esticada no meio da pista, não havia nada de novo no front. Templos do undergroung urbano nacional, como o Crepúsculo de Cubatão, no Rio, e o Rose Bombom, em São Paulo, a despeito de sua credibilidade junto ao povo da noite, precisavam urgentemente se reciclar. Os proprietários, Djs e produtores musicais desses inferninhos de música boa praticamente andavam com um bambolê na cintura, rodando a gilete na barra, arrancando os cabelos e tentando descobrir como atrair o público para as suas pistas, para não ter o mesmo fim que as danceterias (tipo Aeroanta, em São Paulo, e Mamão com Açúcar e Metrópolis, no Rio) que, de um sucesso retumbante iniciado em 1983 e que teve como auge 1985, acabaram fechando as portas ou, para sobreviver, haviam virado point do mulherio de vida fácil, como a mítica Help, em Copacabana. Algo precisava ser feito.
Foi aí que duas ou três novidades, aparentemente díspares, confluíram para que a música africana – que tanto havia influenciado a cena musical dos anos sessenta – com baluartes como Miriam Makeba – voltasse a ganhar espaço, agora com os moderninhos oitentistas. Primeiro, havia o sucesso indiscutível de Prince que, nesse época, era considerado um dos grandes, tão vendável quanto aqueles detentores das faixas números um da Billboard, como Madonna e Michael Jackson. Seu hit ‘Kiss’, por exemplo, não saía das pistas de dança desde 1986, fazendo o povo saracotear ainda em 1988, onde quer que fosse tocado. Um feito e tanto. Paralelo a isso, as novas faixas etárias haviam recém- redescoberto dois negros que sacudiram a virada dos setenta: James Brown, nos Estados Unidos, e Tim Maia, no Brasil. Este último, óbvio, influenciado pelo primeiro. Enquanto o segundo começava a sair do ostracismo causado pelas viagens lisérgicas, porres homéricos e abduções alienígenas pouco antes de subir no palco, o primeiro, com seu cabelo alisado com Henê Maru, fazia a nova juventude sacodir o esqueleto ao som de antigos relançamentos, como ‘Sex Machine’. Não havia festa boa que não engrenasse um ‘Descobridor dos Sete Mares’ ou entoasse um ‘Get up’.
Além disso, havia aquela turma novata do Rock Brasil que começou a aparecer no final de 1986 e, sobretudo, em 1987 e que tinha na veia o balanço da antiga gravadora Motown ou as novidades do hip hop recém-nascido, feito por grupos bacanas como Run DMC, Dazzy Jeff and The Fresh Prince (aliás, o futuro megastar do cinema, Will Smith), Neneh Cherry, o duo feminino Salt-n-Peppa, e Soul to Soul. Gente esperta, cheia de ideias na cabeça, tipo Ed Motta & Conexão Japeri, Picassos Falsos e Cidade Negra, que começava a dar as caras e para quem o carcará de Maria Bethânia nada significava, seduzindo todos com seu gogó de primeira ou o soul que aposentara o estilo dark inglês. E ainda tinha aquele cineasta novo, meio malucão, chamado Tim Burton, que naquele mesmo ano havia reapresentado ao mundo o velho sucesso de Harry Belafonte, ‘Banana Boat Song’, usado na trilha de sua comédia de terror ‘Beetlejuice’, misto de lisergia com modernidade pós-punk. Deve ter sido neste exato momento em que produtores e empresários de tino, como Nelson Motta, perceberam que a onda agora era encarapinhar as madeixas, pintar o cabelo de preto azulado e falar com voz de preto velho, só que com uma roupagem exuberante que deixava figurino de ponto de macumba no chinelo. Ô, misifio! Motta, por exemplo, logo transformou seu Noites Cariocas, antológica boate no topo do Morro da Urca, em Mama África, chegando a lançar até LP com os sucessos mais tocados.
E, no Leblon, surgia uma casa noturna interessantíssima, o African Bar, para onde a turma descolada migrava após dar pinta em outras boates ou barzinhos da moda. Uma galera que ia desde o diretor de arte Jair de Souza, o designer Jorge Falsfein e até o diretor da Agência da Casa, da Tv Globo, Alexandre Machado, marido e partner da escritora Fernanda Young. Uma rapaziada que fazia a diferença na noite carioca desta época. Nas picapes, uma figuraça, o DJ Don Pepe, um negão altíssimo, que usava bubu e barrete africanos e que adorava tocar ‘Pata Pata’, o super sucesso de Miriam Makeba, homenageada suprema neste Back 2 Black.
Foto: Vinícius Pereira
Nestes mesmos meses, foi possível conhecer suprassumos da música africana como Fela Kuti, o pai de Femi, que se apresentou nesta edição do festival ao lado da banda The Positive Force. Ou, ainda, outra instituição da música afro, Manu Dibango. Lembro que, completamente extasiado com essa nova sonoridade (ou com a descoberta recente de um velho tipo de música), arregimentei um time de amigos para assistir, no finado Canecão, no Rio, o show de Dibango. Os rapazes – que ainda não haviam entrado nessa – acharam um saco o show e, vendo que eu não parava de sacolejar na pista, resolveram tirar um sarro, dizendo que paguei uma nota preta para ver o Manu Dibango e que, na hora agá, só encontrei o “mano de Bangu”. Nem liguei. Pouco me importei e até hoje fico completamente enlouquecido com esse som que faz o povo sonhar com a África em eventos como o festival.
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