*Por Simone Gondim
A amizade de Ângela Leal e Fafá de Belém é daquelas cheias de histórias, como convém a uma relação que já dura mais de 40 anos. Em live promovida pelo Teatro Rival Refit, as duas lembraram dos tempos em que faziam o eixo Copacabana-Ipanema-Leblon tremer com uma turma tão animada quanto eclética, que incluía o diplomata Fred Meyer, o diretor Jorge Fernando e o ator Lauro Corona, entre outras pessoas. “Todo mundo andava a pé. Primeiro, íamos no Pizzaiolo. Depois, no Acapulco. E terminávamos dançando no Sótão, boate gay na Galeria Alaska”, recorda Fafá. “Era uma farra. Voltávamos para casa caminhando pela Avenida Atlântica, de madrugada”, acrescenta Ângela.
Ângela e Fafá chegaram a dividir um apartamento com a atriz Leila Cravo, antes de a carreira da cantora deslanchar. Fafá lembra bem do primeiro convite para cantar, feito na praia pelo ator David Pinheiro. “Ele perguntou se eu cantava e disse que estavam precisando de uma backing vocal para se apresentar com o Zé Rodrix no Monsieur Pujol. Fui lá fazer o teste e fiquei”, conta Fafá. “Fico arrepiada até hoje lembrando de você cantando ‘Índia’, que era sucesso da Gal Costa, na sala da minha casa. Era tão lindo”, derrete-se Ângela.
Ângela Leal confessa que as duas eram apaixonadas por José Wilker e, como boas tietes, batiam ponto no Teatro Ipanema por causa do ator. “Ele era unanimidade”, concorda Fafá. “Era quase um cordão rumo ao teatro. ‘Hoje é dia de rock’, ‘A China é azul’, ‘O arquiteto e o imperador da Assíria’. Víamos tudo”, diverte-se Ângela.
As duas ressaltam que, embora se divertissem, os tempos não eram fáceis, pois o Brasil estava em plena ditadura militar. “A gente não imaginava que era tão feliz porque era uma época muito dura. Questionávamos tudo”, diz Ângela. “Era um período muito complicado, muito difícil, onde as pessoas tinham que achar meios para falar e viver”, completa Fafá.
Fora da questão política, os momentos desagradáveis são lembrados com humor. As amigas gargalham como duas adolescentes ao recordarem como Ângela quebrou a perna em uma das muitas noites de diversão de uma turma que não se desgrudava. “Era a época de botas até o joelho e eu usava isso. Fomos a uma boate dançar e meu pé torceu. Na verdade, quebrou, mas, como eu estava de bota, não percebi na hora”, explica Ângela. “Depois, seguimos para a Fiorentina. Lembro que pensei: meu deus, está doendo essa perna, não vou tirar a bota. Cheguei em casa e a perna estava roxa”, conclui, em meio às risadas de Fafá.
Entre as várias coisas que unem as duas, está o amor pelas filhas. Tanto Leandra Leal quanto Mariana Belém não têm irmãos ou irmãs, mas as duas já deram netas para as mães coruja. “Somos duas mulheres com filhas talentosas”, ressalta Ângela. “Palmas para a gente, filhas lindas, bacanas e boas de cabeça”, orgulha-se Fafá.
A cantora revela que Mariana está administrando sua vida profissional, especialmente nesse período de pandemia. “Fomos o primeiro setor a ser atingido e sabe-se lá quando a gente volta e em quais condições. Estamos na linha de frente, mas também ficou pesado para técnicos, carregadores de câmera, a produção, camareiras e contrarregras”, observa Fafá. “Fiz minha primeira live de música e foi uma loucura para conseguir um patrocínio. Somos invisíveis, porque temos mais de 50, 60 anos. Chegou uma hora em que eu falei que bancaria sozinha a live, porque não iria ficar passando o chapéu para ser julgada por uma equipe de marketing que tem 25 anos e só vê até os 40”, indigna-se. “Anunciei que teria a live e algumas empresas me ligaram. É preciso bater na nossa invisibilidade”, frisa.
Ângela deixa claro que abriu o palco do Rival em vários momentos levando em conta essa invisibilidade artística. “Pensei: vou chamar gente que não está iluminada pela mídia, mas permanece no coração das pessoas. Aí, vieram as cantoras do rádio, Luiz Melodia e outros. Você fica à parte e começa a deprimir. O gosto das pessoas não mudou, o que acontece é que está imposta uma outra qualidade”, argumenta a atriz.
Ainda especulando sobre como a cultura pode sobreviver no pós-pandemia, Fafá de Belém cita o que está acontecendo em Portugal. “Tem um grupo fazendo lives de vários modelos, cobrando muito barato para as pessoas terem acesso online. Como os lugares estão abertos, mas não podem vender todos os lugares disponíveis, um grupo paga a mais para assistir ao vivo, respeitando a capacidade reduzida de cada casa”, descreve. “Vou fazer isso no Rival e a primeira que vou chamar será você”, entusiasma-se Ângela. “Vamos lá. Somos tinhosas, não desistimos fácil. Já corremos da polícia e até apanhamos”, resume Fafá.
As duas voltam a lembrar do tempo em que moraram juntas e riem dos apertos que passavam. “Era época de ‘Calabar’. Vocês ficavam discutindo quem era Ana e quem era Bárbara. Para não atrapalhar, eu ficava do lado de fora, encostada na porta. Quando silenciava eu entrava”, narra Fafá. “Era depois do Pujol e você ficava esperando. O Pombal (como era chamado o apartamento onde elas viviam) não tinha elevador nem interfone. Para quem ia nos visitar, a gente tinha uma cesta, com uma corda imensa, em que colocávamos a chave”, recorda Ângela.
“Como ninguém tinha dinheiro, já fazíamos uma coisa que hoje é considerada chique. Nas reuniões, pedíamos para cada um levar uma garrafa de vinho. Quem levasse o garrafão de Sangue de Boi tinha entrada franca um tempão”, confessa Fafá, às gargalhadas. Ângela acrescenta que o imóvel era muito pequeno e o telhado era baixo: “No meu quarto, por exemplo, só tinha lugar para a cama. Era preciso cuidado para se levantar, a fim de não bater a cabeça”.
Atualmente, por conta da pandemia, Ângela e Fafá voltaram a ter as filhas em casa. “Não há nada mais gostoso do que colo de mãe e colo de filha. Elas são o novo e só temos a aprender com essa troca”, acredita Fafá. “E nós somos a sabedoria adquirida. É tão bom a gente ver a nossa vida andando na figura das filhas e das netas”, emociona-se Ângela.
De perfil independente, as duas amigas concordam que já eram mulheres que tomavam as rédeas das próprias vidas muito antes disso ser moda. “Empoderadas éramos nós, quando essa palavra ainda nem existia”, diverte-se Fafá. “Ficar sozinha não me incomoda muito, mas esse isolamento social foi um reaprender sobre o lugar onde moro. Há muitos anos não passava tanto tempo em casa”, afirma.
Fafá revela que está cozinhando muito e aproveita para ensinar a amiga a fazer arroz de cabeça de camarão com filhote, um peixe típico da Região Norte. “Assei o peixe na semana passada, Mariana não quis comer e acabei congelando”, conta. “Para a receita, tirei a cabeça do camarão e fiz um caldo. Nele, vou molhar o arroz. Quando o arroz estiver bem molhado e já pronto, coloco o camarão, os pedaços de filhote, muito azeite, pimenta, coentro e cheiro verde. Pego uma garrafa de vinho e pronto”, diz.
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